Por Aline Herscovici, Catarina Barbieri e Luciana de Oliveira Ramos*
O debate sobre o fenômeno das candidaturas laranjas segue com muita força em 2020. Com as eleições municipais, estão em alta na mídia levantamentos do número de candidaturas potencialmente laranjas, visando a embasar iniciativas de punição e prevenção desse tipo de descumprimento das cotas eleitorais de gênero.
Contudo, nota-se que os critérios identificadores de uma candidatura laranja que esses levantamentos utilizam são significativamente diferentes entre si. Uns falam em recebimento de grande quantia de financiamento combinado com ausência de atos de campanha [1], outros falam em recebimento de grande quantia de financiamento combinado com votação baixa ou zerada [2]. Ainda outros se esforçam em listar diversos critérios como ausência de declaração de renda, escolaridade baixa, ausência de gasto de campanha declarado, baixo número de mulheres filiadas ao partido na cidade em que se disputa, baixo número de votos recebidos no pleito, promessa de benefício em troca e ausência de recebimento de verba pelo partido [3].

A indeterminação do que é uma candidatura laranja é sintomática e decorre do próprio silêncio da legislação eleitoral e da falta de uniformidade dos tribunais eleitorais. É esse o diagnóstico trazido no capítulo 2 do livro “Candidatas em jogo: um estudo sobre os impactos das regras eleitorais na inserção de mulheres na política”.
Como mencionado, candidaturas laranjas são uma forma de burlar as cotas eleitorais de gênero firmadas na Lei das Eleições [4]. Contudo, não há qualquer dispositivo na legislação eleitoral que defina o que seria uma candidatura laranja. Também não se prevê sanções aplicáveis ao descumprimento das cotas eleitorais de gênero.
A Justiça Eleitoral fica, então, com a missão de interpretar a legislação eleitoral de modo a preencher essa lacuna, à medida que é chamada a resolver conflitos do jogo político-eleitoral. Partidos, coligações e candidatos de oposição, e, principalmente, o Ministério Público Eleitoral [5] buscam a Justiça Eleitoral com alegações de que determinadas candidaturas seriam laranjas, pedindo a punição dos envolvidos. Tribunais eleitorais têm, então, de se pronunciar sobre o que é uma candidatura laranja e se a candidatura acusada no caso que julgam é ou não laranja, aplicando as devidas sanções em razão disso.
Assim, saber o que têm decidido os tribunais eleitorais é passo crucial para frear o fenômeno de candidaturas laranjas e garantir a efetividade das cotas eleitorais de gênero. Em nosso livro, analisamos os 93 processos julgados pela Justiça Eleitoral desde a entrada em vigor da previsão legal das cotas eleitorais de gênero até novembro de 2018 que discutem a existência ou não de candidaturas laranjas. Vale destacar que todos esses processos tratavam de candidaturas de mulheres em eleições municipais, o que mostra a relevância dessa análise para compreender esse fenômeno no contexto das eleições de 2020 e em pleitos futuros.
Desses 93 processos, apenas 6 reconheciam a existência de candidaturas laranjas. Estes últimos foram investigados de maneira mais aprofundada para compreender quais critérios a Justiça Eleitoral têm utilizado para definir o que seriam candidaturas laranjas.
Contudo, encontramos uma Justiça Eleitoral sem clareza e sem uniformidade em seus critérios decisórios, criando uma verdadeira loteria judicial sobre candidaturas laranjas no Brasil.
Há, no total, 23 elementos de caracterização diferentes, que aparecem de maneira dispersa entre os processos – e em alguns casos até de maneira contraditória:
É possível perceber o alto grau de dispersão dos elementos entre processos quando notamos que quase metade (10) dessa longa lista de elementos aparece somente em 1 dos 6 processos. Temos, portanto, julgadores que decidem com base em critérios muito distintos entre si. Assim como vemos acontecer com os levantamentos de potenciais laranjas que têm ganhado voz na mídia hoje, cada caso julgado pelos tribunais eleitorais traz seu conjunto próprio de critérios identificadores de uma candidatura laranja.
Apenas 4 dos 23 elementos de caracterização de candidaturas laranjas estiveram presentes na maioria dos casos analisados: (i) aspecto subjetivo da conduta; (ii) votação zerada ou baixa; (iii) ausência de atos de campanha em favor próprio; e (iv) realização de campanha em favor de outra/o candidata/o. Mas olhando mais de perto para como esses elementos “majoritários” foram articulados nos casos analisados, vemos que estes não servem como parâmetros claros e uniformes: metade deles não basta por si só para identificar candidaturas fictícias; e a outra metade aparece de forma contraditória entre um processo e outro.
O elemento de “votação zerada ou baixa”, bem como o de “ausência de atos de campanha em favor próprio” não são suficientes para, por si só, identificar uma candidatura como laranja. Isso porque existem inúmeras razões plausíveis e lícitas que expliquem por que a candidata não fez campanha ou por que teve resultados pífios nas urnas – como a falta de experiência e a falta de recursos informacionais e financeiros por parte do partido. Os próprios tribunais eleitorais tendem a reconhecer a insuficiência desses elementos ao tratarem deles como “meros indícios”, ou seja, como indicativos da possibilidade de se tratar de uma candidatura laranja, mas não como prova definitiva de sua existência.
Ainda, os tribunais disputam os elementos de “aspecto subjetivo da conduta” e “realização de campanha em favor de outra/o candidata/o”. Alguns entendiam que esses eram de fato critérios de identificação de uma candidatura laranja – e então verificavam se a candidatura em questão tinha ou não essa característica, e, em caso afirmativo, a reconheceriam como laranja. No entanto, outros entendiam o contrário: rejeitavam explicitamente esses fatores, considerando-os irrelevantes para identificar se a candidatura em questão era ou não laranja. A mensagem que fica para as/os participantes do jogo político-eleitoral é, portanto, ambígua. Uma mesma conduta – como realizar campanha em favor de outra pessoa – poderia tanto “não dar em nada”, quanto acabar em reconhecimento da candidatura como laranja e sua consequente punição, como a cassação de mandato e a declaração de inelegibilidade por 8 anos consecutivos. E o que define de qual lado a moeda cai é a pura sorte ou azar de o caso ser julgado por esta ou aquela pessoa.
Não só apresentam elementos distintos e contraditórios para caracterizar uma candidatura laranja, os tribunais eleitorais sequer concordam sobre a premissa básica de que candidaturas laranjas são um ilícito eleitoral, ou seja, um descumprimento da legislação eleitoral, no que tange às cotas de gênero. Dos 6 casos analisados, 2 (Caso de Porto Alegre e o Caso de Biguaçu) desafiam essa premissa, descolando o reconhecimento da existência de candidatura fictícia do descumprimento da lei. Declararam que só haveria descumprimento das cotas de gênero se a exclusão da candidatura laranja da contagem de candidaturas apresentadas pela agremiação tivesse como consequência direta o não preenchimento matemático do percentual mínimo de 30%. Essa interpretação é problemática: significa dizer que é possível que uma candidatura laranja seja lícita, isto é, que seja permitida pelo direito, sem que se aplique qualquer sanção aos envolvidos – o que, lembramos, compreende não só a candidatura em questão, mas os partidos políticos e seus dirigentes.
Isso nos mostra que, até o momento, não há um conceito de candidatura laranja claro nem uniforme construído pela Justiça Eleitoral. O que temos é um cenário de loteria judicial. A aplicação de critérios pela Justiça Eleitoral é feita de maneira errática. Vai de quem julga o processo adotar esse ou aquele conjunto de critérios identificadores de candidaturas laranjas, reconhecendo ou não a candidatura em questão como laranja e, ainda, punindo ou não os envolvidos. Um mesmo comportamento durante o jogo político-eleitoral pode ou não ser entendido como um descumprimento da lei, por motivos obscuros, aleatórios e muitas vezes ilegítimos.
Só que esse jogo de sorte ou azar sai muito caro para as mulheres candidatas. Diferentemente dos partidos políticos, que se veem legitimados a testar os limites da impunibilidade, as mulheres candidatas têm muito mais a perder: o espaço político que, com muita luta, vêm conquistando até então. Sem qualquer parâmetro para evitar ou se defender de um processo judicial que venha a ser aberto contra elas, podem ser desestimuladas a entrarem para o jogo político ou até retiradas deste espaço, considerando as sanções de cassação de mandato e inelegibilidade. Há, portanto, uma verdadeira erosão das cotas eleitorais de gênero em movimento. Precisamos freá-la; e a Justiça Eleitoral tem um importante papel a cumprir nesse sentido.
Aline Herscovici, graduada em direito pela FGV Direito SP; Catarina Barbieri e Luciana de Oliveira Ramos são professoras da FGV Direito SP e pesquisadoras do CEPESP/FGV.
[1] Ver: AGÊNCIA ESTADO. Eleições 2020: 6,3 mil mulheres recebem um ou zero voto na eleição. Correio Braziliense, 21 nov. 2020. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2020/11/4890397-eleicoes-2020-63-mil-mulheres-recebem-um-ou-zero-voto-na-eleicao.html>. Acesso em: 16 dez. 2020.
[2] Ver: BRAGON, Ranier; MATTOSO, Camila. Negros e mulheres puxam lista de potenciais laranjas da eleição de 2020. Folha de S. Paulo, 19 nov. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/11/negros-e-mulheres-puxam-lista-de-potenciais-laranjas-da-eleicao-de-2020.shtml>. Acesso em: 16 dez. 2020; AGÊNCIA ESTADO. Eleições 2020: 6,3 mil mulheres recebem um ou zero voto na eleição. Correio Braziliense, 21 nov. 2020. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2020/11/4890397-eleicoes-2020-63-mil-mulheres-recebem-um-ou-zero-voto-na-eleicao.html>. Acesso em: 16 dez. 2020.
[3] Ver: TURTELLI, Camila; GOMES, Bianca. Estudo indica ao menos 5 mil candidatas laranjas nas eleições 2020. Estadão, Brasília/São Paulo, 13 nov. 2020. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,estudo-indica-ao-menos-5-mil-candidatas-laranjas-nas-eleicoes-2020,70003512533>. Acesso em: 16 dez. 2020.
[4] O artigo 10, §3º, da Lei das Eleições (Lei 9.504/97) estabelece que “[…] cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo.” [1] Conforme apontamos em nosso livro, o Ministério Público Eleitoral foi o protagonista da grande maioria dos processos que discutiam candidaturas laranjas julgados pelos tribunais eleitorais desde a implementação das cotais eleitorais de gênero até novembro de 2018.
[5] Conforme apontamos em nosso livro, o Ministério Público Eleitoral foi o protagonista da grande maioria dos processos que discutiam candidaturas laranjas julgados pelos tribunais eleitorais desde a implementação das cotais eleitorais de gênero até novembro de 2018.
Este é o sexto e último artigo da série “CANDIDATAS EM JOGO” que aborda (e em alguns casos atualiza para as eleições de 2020) temas presentes na pesquisa “Democracia e representação nas eleições de 2018: campanhas eleitorais, financiamento e diversidade de gênero”, da FGV Direito SP e do CEPESP/ FGV, que deu origem ao livro “Candidatas em Jogo”.