Por Juliana Reimberg*
Recentemente difundiu-se nas redes sociais a seguinte fala de Bia Doria, presidente do Fundo Social do Estado de São Paulo e primeira-dama do Estado, em uma conversa com a socialite Val Marchiori: “as pessoas que estão na rua, não é correto você chegar lá na rua e dar marmita e dar porque a pessoa tem que se conscientizar que ela tem que sair da rua. Porque a rua hoje é um atrativo, a pessoa gosta de ficar na rua”. Esta declaração chocou o público e diversas críticas circularam nas redes sociais.
Esta fala, de fato, mostra um total desconhecimento da realidade da situação de rua, sobretudo ao afirmar que as pessoas gostam de estar na rua. No entanto, um pensamento central neste diálogo é que as doações nas ruas desencorajam a ida das pessoas aos centros de acolhida (equipamentos voltados para repouso, higiene e alimentação de pessoas em situação de rua). Este posicionamento não é novo: em 2016, quando estagiava na Coordenação de Políticas para População em Situação de Rua na prefeitura de São Paulo, ouvi alguns servidores públicos adotarem visão parecida. A declaração de Bia Doria é apenas mais uma das faces de um extenso debate sobre o papel da sociedade civil nas políticas sociais.
Primeiro, não se pode esquecer que a política de Assistência Social no Brasil foi planejada com a participação da sociedade civil. A Constituição de 1988, no artigo 204, prevê a participação da sociedade civil, por meio de organizações, na formulação e controle das políticas sociais. Esta previsão constitucional reflete a atuação filantrópica que historicamente grupos da sociedade civil, em grande parte ligados à Igreja Católica, desenvolveram para amenizar as vulnerabilidades daqueles que viviam à margem da sociedade. Neste sentido, a partir da Constituição de 1988 nota-se uma grande participação da sociedade civil nos fóruns de discussão da política de Assistência Social – como, por exemplo, na composição do Conselho Nacional da Assistência Social instituído em 1993 (Lei nº 8.742/1993), com representação paritária entre membros do governo e da sociedade civil.
A Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (NOB/SUAS), publicada em 2005, também estabelece bases para a relação entre Estado e sociedade civil, delimitando que, apesar do Governo assumir a primazia na política social, a sociedade civil atua como parceira, de forma complementar às políticas públicas. No caso da cidade de São Paulo (conforme a Portaria 46/2010/SMADS), assim como em diversos municípios brasileiros, não se pode esquecer que a gestão dos centros de acolhida para pessoas em situação de rua é feita através de convênios com Organizações Sociais sem fins econômicos. Assim, a política de acolhimento institucional a pessoas em situação de rua é executada pelos governos municipais por meio da delegação desta atividade a organizações da sociedade civil.
A relação cooperativa existente entre o poder público e a sociedade civil na promoção de políticas sociais reflete o papel histórico que diversas organizações que hoje gerenciam centros de acolhida desenvolveram com projetos filantrópicos destinados à população em situação de rua. Ou seja, os atores que hoje mobilizam doações às pessoas em situação de rua, podem no futuro ser gestores nos centros de acolhida por meio de organizações sociais. Portanto, é ilógico propagar um discurso de cunho competitivo entre sociedade civil e governo, sustentando que as doações vão na contramão da política de acolhimento socioassistencial, uma vez o Sistema Único de Assistência Social foi pensado considerando a parceria com a sociedade civil.
Segundo, é preciso analisar os dados de acolhimento da população em situação de rua. Atualmente não há dados específicos sobre o perfil desta população no Estado de São Paulo, mas recentemente foi publicado o censo PopRua 2019 da capital do estado que é pertinente para esta análise. O censo indica que havia na cidade São Paulo 24.344 em situação de rua, destas 11.693 estavam em centros de acolhida. Assim, mais de 50% desta população não estava acolhida na rede socioassistencial. Ademais, pesquisadores apontam que hoje na rede socioassistencial há cerca de 13 mil vagas de acolhimento, ou seja, há um déficit de mais de 11 mil vagas de acolhimento.
A rede de acolhimento socioassistencial não será duplicada da noite para o dia, mas da noite para o dia pessoas em situação de rua podem vir a falecer – sobretudo no período atual de baixas temperaturas e maior vulnerabilidade em razão da pandemia do Covid-19. Desta forma, as doações da sociedade civil são instrumentos fundamentais para, muitas vezes, assegurar um mínimo existencial às pessoas que vivem nas ruas. A demanda por políticas sociais para população em situação de rua atualmente é maior do que as políticas públicas ofertadas, assim, os grupos sociais que mobilizam doações de alimentos, roupas e materiais de higiene às pessoas que vivenciam a situação de rua tornam-se atores fundamentais.
Neste contexto, ao invés de travar uma disputa com a sociedade civil, sustentando que as doações são a razão pela qual as pessoas não estão nos centros de acolhida, postura que o poder público poderia adotar é reconhecer a importância destas doações para a sobrevivência da população em situação de rua e implementar políticas para aumentar a eficiência desta prática. Por exemplo, seria interessante que fossem pensadas comunicações institucionais orientando formas de armazenar e preparar as refeições distribuídas nas ruas, em conformidade com um plano de segurança alimentar voltado à população em situação de rua. Outra política que poderia ser adotada é o desenvolvimento de ferramentas de diálogo e interação com estes grupos da sociedade civil com objetivo de coordenar os locais em que as doações serão realizadas, de modo a garantir que na mesma noite não haverá um excesso – e eventualmente um desperdício – de doações nas regiões centrais, enquanto há um desabastecimento em regiões mais periféricas.
Em linhas gerais, enquanto representantes do poder público adotarem uma postura competitiva em relação às mobilizações da sociedade civil, a população em situação de rua estará ainda mais vulnerável. É urgente a ampliação da rede de acolhimento institucional, mas enquanto não houver vagas para todos, o Estado deve reforçar o seu compromisso constitucional e atuar em parceria com a sociedade civil – incluindo os atores sociais que fazem doações nas ruas.
Juliana Reimberg é mestranda em Ciência Política na USP, graduanda em Direito na FGV e pesquisadora do Cepesp.
Referência bibliográfica:
LIMA, Júlia C. F. B (2020). Avaliação da Fase I da Implementação do Empreendimento Asdrúbal do Nascimento II: Projeto Piloto de Locação Social para a População em Situação de Rua no Município de São Paulo. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Programa de Pós-graduação em Gestão Pública do Insper.