O “leão” também está sob a responsabilidade dos Estados

CEPESP  |  3 de setembro de 2020
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Por Juliana Reimberg e Maria Laura Gomes*

Na semana passada, uma fala da presidente do Fundo Social de São Paulo, Bia Doria, no evento de encerramento da Campanha Inverno Solidário 2020, circulou nas redes sociais. No vídeo ela relata que o vice-governador de São Paulo, Rodrigo García, já lhe orientou várias vezes: “não puxe este leão para cá que isso é problema das prefeituras”. O “leão” a que ele se refere é a população em situação de rua, mas a presidente do Fundo Social afirma que apesar de tais conselhos ela vem planejando ações voltadas a estes cidadãos.

O objetivo deste artigo é discutir o arranjo federativo brasileiro no campo da Assistência Social e qual é o papel dos Estados nas políticas públicas para esta população. Embora não se pretenda fazer uma avaliação específica das ações do Estado de São Paulo nas políticas para a população em situação de rua, o arranjo paulista nesta área será investigado face ao marco legal do arranjo federativo e em comparação a outras experiências estaduais.

Em primeiro lugar é preciso considerar que o campo da assistência social no Brasil é tradicionalmente marcado pelo assistencialismo, caridade e filantropia.  A assistência foi reconhecida como um direito social somente em 1988 com a Constituição Federal. No artigo 204, I da Constituição, estabelece-se que enquanto a coordenação e promoção de normas gerais cabe à esfera federal, a coordenação e execução dos programas é realizada nas esferas estadual e municipal.

Com a criação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e da posterior aprovação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), em 2004, as políticas de assistência social incorporaram os princípios e diretrizes de universalização, igualdade de acesso e atendimento, descentralização política-administrativa e responsabilidade do Estado na provisão dos serviços.

Em 2005, foi aprovada a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (NOB/SUAS) que  estrutura os serviços ofertados pela política de modo a atribuir as responsabilidades para os entes federativos, organizando principalmente os instrumentos de coordenação entre os mesmos. Desta forma, a implementação da assistência social enquanto política pública é caracterizada pela atuação conjunta entre União, Estados e Municípios. 

Com a validação de uma nova NOB/SUAS, em 2012, consolidaram-se os avanços identificados nos oito anos de implementação deste modelo de gestão, e reiterou-se a concepção de coordenação federativa com a (re)definição de papéis e responsabilidades dos entes federados. Em síntese, neste modelo, ao governo federal compete a normatização, elaboração de macro-estratégias, coordenação e repasse de recursos. Os municípios são responsáveis pela implementação dos serviços de básica, média e alta complexidade – sendo neste último onde se encontram as políticas para população em situação de rua. Já aos Estados compete a coordenação, apoio técnico e financeiro à rede socioassistencial municipal.

Consequentemente, no Brasil, a descentralização resultou no enfoque municipal na implementação de políticas sociais, em uma divisão de atribuições onde os Estados possuem ações limitadas na oferta direta. Mas esta limitação não significa que os Estados não possuem nenhuma atuação no campo da Assistência Social. Estudos mostram que aos Estados, no geral, foi atribuída uma função supletiva em relação à proteção especial, ocorrendo quando os custos ou ausência de demanda municipal justifiquem uma rede regional de serviços.

As normas e diretrizes existentes, bem como algumas experiências práticas, indicam que os Estados podem ter outras importantes funções na prestação de serviços da proteção especial. A Política Nacional para População em Situação de Rua (Decreto nº 7.053/2009) estabelece entre as suas diretrizes a articulação entre os três entes federativos, como também, prevê a possibilidade de repasse de recursos federais para os Estados promoverem uma rede de acolhimento temporário às pessoas em situação de rua. Ademais, a já mencionada NOB/SUAS estabelece que os Estados têm a função de assessorar os municípios no desenvolvimento de políticas sociais, bem como realizar o monitoramento e avaliação da política de assistência social em sua esfera de abrangência. 

Entre os exemplos na experiência nacional que mostram a importância da atuação estadual na garantia de direitos sociais da população em situação de rua, destacam-se os casos paranaense e mineiro. No Paraná há o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política da População em Situação de Rua (CIAMP RUA – PR), criado em 2015, com o objetivo de auxiliar na implementação de políticas para este público, em todas as esferas da administração pública presente neste Estado, e assegurar a proteção dos direitos destes cidadãos. Em Minas Gerais também há um Comitê Intersetorial no âmbito estadual desde 2015. Ambos os comitês são compostos paritariamente por membros da sociedade civil e governo, de modo a garantir a participação e controle social na efetivação de políticas estaduais para população em situação de rua.

No contexto da pandemia da Covid-19, por exemplo, a Secretaria de Desenvolvimento Social de Minas Gerais elaborou junto ao Comitê um plano para orientar os municípios sobre o atendimento e acolhimento das pessoas em situação de rua durante este período de enfrentamento da doença. 

São Paulo também tem políticas estaduais que são historicamente essenciais para a população em situação de rua, mesmo que não sejam voltadas exclusivamente para este público. Uma delas é o programa Recomeço, que estabeleceu em 2013 um Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas localizado na região da Cracolândia, disponibilizando atendimento 24h àqueles que buscam ajuda médica e psicológica. Nesse ponto, é importante destacar que a população em situação de rua é um grupo diverso que não corresponde necessariamente às pessoas em situação de dependência química. 

Há também, desde 2000, o programa Bom Prato, uma rede de restaurantes populares que oferece refeições ao valor de R$ 1 e que, no contexto da pandemia, concedeu o acesso gratuito à população em situação de rua. Outra ações paulistas importantes no enfrentamento à pandemia da Covid-19 foi o programa Solidariedade nas Ruas, que distribuiu 70 mil kits de higiene e proteção sanitária, e o Inverno Solidário, que distribuiu 5,5 mil kits de higiene e cobertores à população em situação de rua. 

Vale ainda mencionar que em 2017 foi aprovada a Política Estadual de Atenção Específica para a População em Situação de Rua no Estado de São Paulo (Lei nº 16.544/2017), que entre outras medidas prevê a criação de um Comitê intersetorial, similar às experiências paranaense e mineira. No entanto, passados quase três anos, o Comitê ainda não foi implementado. Sem este espaço de participação e controle social, articulação e pactuação com os municípios, nota-se que não há no Estado de São Paulo políticas sociais voltadas exclusivamente para população em situação de rua, para além de ações pontuais, como as já mencionadas. 

Segundos os dados do Censo Suas 2019 há no Brasil 114.502 pessoas em situação de rua e 71% desta população está na região Sudeste. O Estado de São Paulo possui 50.250 pessoas em situação de rua espalhadas entre 238 municípios, estando 48% desta população concentrada no município de São Paulo (24.344 pessoas). Comparando os dados da cidade de São Paulo do Censo PopRua de 2015 e 2019, nota-se que em quatro anos a população em situação de rua aumentou em cerca de 53% (em 2015, eram 15.905 pessoas). Ainda, estimativas recentes apontam que esta população já aumentou em decorrência dos efeitos da pandemia.

O crescimento acelerado da população em situação indica que a gestão municipal de São Paulo não consegue sozinha responder às necessidades desta população. Há déficit de vagas de acolhimento e moradia, bem como, poucas ofertas de políticas públicas de empregabilidade diante da grande demanda existente. Neste contexto, é evidente a importância da atuação supletiva do Estado na promoção de políticas para população em situação de rua. 

As políticas públicas estaduais para esta população não serão suficientes se forem ações apenas pontuais durante o período de baixas temperaturas e aumento da vulnerabilidade em razão da pandemia. É fundamental que o Estado de São Paulo construa uma política dialogada com a sociedade civil, com metas e objetivos no médio e longo prazo, sendo a instauração do Comitê Intersetorial um primeiro passo fundamental neste sentido. Caso contrário, o “leão” morrerá de fome.

*Juliana Reimberg é mestranda em Ciência Política na USP, graduanda na FGV Direito SP e pesquisadora no Cepesp/FGV; Maria Laura Gomes é graduada em Gestão de Políticas Públicas na USP e pesquisadora júnior do Centro de Estudos da Metrópole (CEM)


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