Por Lucas Costa*
Artigo originalmente publicado no portal Jota
Em tempos que posições políticas se alteram, sem pudor, na velocidade de um tweet, é um esforço interessante se lançar em retrospectiva aos inconvenientes consensos que edificaram nossa Constituição há pouco mais de 30 anos, concedendo-lhe um espírito social que hoje parece quase anacrônico.
O eterno debate sobre o prazo de validade de uma constituição, inicialmente travado pelos federalistas norte americanos Thomas Jefferson e James Madison, há mais de 200 anos, está longe de ser resolvido por aqui, embora lá pareça ser tema há muito superado. Importante símbolo de orgulho patriótico, a Carta norte americana sustenta uma insuspeita aura imaculada.
Nossa Constituição, por outro lado, não parece celebrar a mesma popularidade, nem gozar da mesma segurança. Com efeito, encurralada, está sob constantes ameaças, dos mais variados signos ideológicos, patrocinados pelas mais diversas siglas partidárias. Até mesmo a controvérsia sobre a constitucionalidade da prisão após condenação em segunda instância revela-se suficiente para colocá-la sob suspeita, a ponto do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, sugerir, em entrevista concedida mês passado, sua incompatibilidade com os anseios populares e propor, consequentemente, a realização de uma constituinte com o fim de redigir uma nova constituição.
Propostas desta natureza têm sido comuns no debate político brasileiro. Não é necessário retroceder muito no tempo: os dois principais candidatos à presidência no ano passado, Fernando Haddad e Jair Bolsonaro, propuseram, em suas campanhas eleitorais, a elaboração de uma nova constituição. Depois voltaram atrás, mas a ameaça contra a Constituição ficou. O vencedor da disputa, Bolsonaro, já como presidente da República, não mede esforços em intimidá-la com ataques diretos às instituições e aos direitos constitucionalmente consagrados.
Entre os famosos slogans do presidente, um dos que se repete com frequência convida o trabalhador a escolher entre “menos direitos e mais empregos ou todos os direitos e o desemprego”. A proposição deste dilema é, por definição, anticonstitucional. A renúncia aos direitos sociais só pode decorrer, ou tem como condição, a renúncia da própria Constituição. Ela é um empecilho à agenda governamental laureada pelo voto popular. A Constituição parece distante da realidade política do país. Com efeito, quanto aos direitos sociais que assegura, ela é quase “bolivariana”. Literalmente.
A afirmação acima é baseada em resultados produzidos pelo Constitutional Social Score Model (CSSM), ferramenta que desenvolvi para avaliar e comparar o conteúdo social das constituições ao redor do mundo. Por meio deste modelo construí um banco de dados composto por todas as 194 constituições nacionais vigentes, atribuindo à cada uma um score próprio (o qual chamo de Constitutional Social Score – CSS), o qual expressa seu conteúdo social. O método de atribuição de scores considerou o nível de universalismo e de especificidade com que os direitos sociais são garantidos. A especificidade é medida por meio de uma adaptação da classificação de Peter Hall sobre os elementos da política pública (Policy Paradigms, Social Learning, and the State: The Case of Economic Policymaking in Britain. Comparative Politics, v. 25, n. 3, p. 275–296, 1993). Considero maior o nível de especificidade o quanto mais a constituição desce ao nível dos detalhes em seus dispositivos que ensejam a efetivação de um dado direito. Já o nível de universalismo diz respeito à extensão do público alvo de cada direito. Por exemplo, um direito social pode ser direcionado a todos os cidadãos sobre os quais se aplica a constituição nacional, ou a um grupo restrito, cujos limites podem ser estabelecidos pela idade, condição socioeconômica, ou outas características distintivas.
De forma resumida, um CSS maior significa que a Constituição impõe maiores constrangimentos em favor da efetivação dos direitos sociais por ela declarados.
A Constituição brasileira conta com o terceiro maior CSS do mundo, atrás apenas das bolivarianas Venezuela (1999) e Equador (2008), mas à frente da boliviana (2009). Este dado é bastante significativo, principalmente quando consideramos que a Constituição brasileira é a mais antiga das quatro e, portanto, potencialmente impactou a elaboração dos documentos de nossos vizinhos sul-americanos (fenômeno denominado de difusão pelos estudos sobre constitucionalismo).
Gráfico 1: Comparação do Constitucional Social Score (CSS) do Brasil

O Gráfico 1, acima, compara a Carta brasileira com as três constituições bolivarianas, bem como com o CSS médio de constituições mais recentes (elaboradas pós 1988) e mais antigas (escritas antes de 1988), enquanto o Gráfico 2, abaixo, mostra a distribuição dos scores sociais em uma escala de 0-70, entre as vinte constituições mais bem pontuadas.
Gráfico 2: vinte maiores CSS

As evidências parecem confirmar os temores e as objeções, especialmente apregoados pelos liberais, sobre o conteúdo de nossa Constituição. Com efeito, o cientista político italiano Giovanni Sartori, por exemplo, criticou duramente a Constituição brasileira, comparando-a com uma lista telefônica, repleta de detalhes triviais, “disposições quase suicidas e promessas impagáveis” (Comparative constitutional engineering: an inquiry into structures, incentives and outcomes. New York: New York University Press, 1997). Outras críticas mais comedidas, mas nem por isso pouco assertivas, chamaram atenção para o obstáculo imposto pela Constituição à governabilidade, uma vez que, dado seu alto nível de especificidade, obriga que as administrações se engajem em um processo constante de reforma constitucional, de elevado custo, de modo a colocar em prática suas agendas governamentais. Isto é, para lograrem sucesso na atividade de governar, precisam estar o tempo todo alterando a Constituição.
Mas qual é a implicação disso tudo em termos teóricos e práticos? Será que tem fundamento todo este alarde? O que é, afinal, a Constituição de 1988?
Ela é, sem dúvida, o produto do último suspiro de uma era – a Guerra Fria. Ela é velha para os padrões de nossa história (em média, cada constituição republicana durou treze anos, sendo as de 1946 e 1967, com exceção da Carta de 1988, as mais longevas, ambas duraram 21 anos). Ela é anacrônica? Ultrapassada? “Bolivariana”?
Pela sua própria natureza, o debate não pode se afastar por completo de interpretações com fundo ideológico. Mas parece ser incontroverso que ela se estrutura segundo um consenso social que a distancia da agenda governamental então vigente.
Mas não é para isso mesmo que servem as constituições? Para resguardar os direitos fundamentais das minorias, protegendo-as do ataque das preferências políticas de ocasião? A própria concepção de direitos fundamentais que elas consagram pressupõe proteção contra maiorias plebiscitárias, pontuadas no tempo. É inadmissível, por exemplo, propor a revogação de direitos políticos e civis, ainda que esta venha a ser, em algum tempo, a vontade popular majoritária. É concebível que a mesma lógica valha para os direitos sociais.
A Constituição, pois, caminha em um ritmo diverso da política ordinária. Embora em constante reconstrução, ela é essencialmente prospectiva, alheia às acaloradas polêmicas cotidianas, mas atenta às mudanças geracionais. Ela muda, mas em seu tempo. Bem verdade que a Constituição de 1988, ao incluir em seu bojo diversas questões que mais se identificam como policies do que normas propriamente constitucionais, gerou uma dinâmica singular quanto ao seu próprio processo de reformulação. Como se existissem duas constituições em uma só – a primeira marchando de forma lenta e contínua, conforme dita o rito tradicional do constitucionalismo; a segunda correndo conforme o compasso acelerado da legislação ordinária, modificando-se ao sabor das coalizões governamentais. Mantendo-se a exquisite sincronia desta dança, talvez tenhamos acidentalmente encontrado o verdadeiro samba constitucional brasileiro, cuja influência se espalhou pela América Latina. E, sendo samba, é atemporal.
* Cientista Político e Pós-doutorando Cepesp-FGV