VOTO A VOTO: Políticas de transporte e eleições: o que as propostas (não) trazem

CEPESP  |  3 de novembro de 2020
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Versão resumida deste artigo foi originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo

Por Ciro Biderman e Leonardo Bueno*

“Democracia é complexa, populismo é simples”(R. Dahrendorf)*

Como já ficou usual, transporte tem um grande destaque nas campanhas e programas dos candidatos a prefeito de São Paulo. Há pelo menos 20 anos esse tema está entre os três mais debatidos pelos candidatos. Não é à toa. Nova pesquisa da Rede Nossa São Paulo publicada na semana passada  mostra que essencialmente nada mudou. Não obstante o aumento da malha cicloviária, as bicicletas ainda representam uma pequena parcela das viagens; as pessoas continuam levando aproximadamente duas horas e meia para chegar no trabalho; o espaço para o pedestre segue totalmente reduzido e a integração modal mostra avanços pífios.

Em resposta a essa situação os candidatos continuam propondo mais do mesmo: corredores e auditoria nos contratos de concessão. Talvez a novidade, que ainda aparece um pouco tímida, seja a tarifa zero e os veículos elétricos e/ou combustíveis menos poluentes. Ninguém propõe mexer na forma como o sistema funciona hoje em dia, no que denominamos de governança do sistema. Para as propostas dos prefeitos na área de transporte valeria a máxima de que há propostas boas e há propostas novas, mas as boas não são novas e as novas não são boas.

Evidentemente não é apenas o fato de que “nada mudou” na qualidade do serviço prestado pelos usuários do sistema de ônibus de São Paulo que leva os candidatos a dedicarem recursos de campanha no tema. Em muitas outras áreas a oferta de serviços públicos permanece no mesmo padrão (ruim) de vários anos atrás. O problema é que transporte é uma área com muito apelo eleitoral. A população é extremamente sensível a esse serviço. Dilma e o Chile que o digam. Russomano, novamente candidato, deve lembrar bem do início de sua derrocada em 2012 quando propôs a cobrança por quilômetro que prejudicaria pesadamente a periferia. E Haddad, que se aproveitou dessa imprudência no programa de governo de Russomano, virou alvo com a campanha “São Paulo não pode parar” de João Doria, em 2016, que criticava a redução de velocidade máxima empreendida pelo seu antecessor em sua campanha não obstante essa seja a medida isolada mais efetiva para redução de acidentes de trânsito .

Em geral, é muito difícil encontrar evidências de que investimentos em transporte redundem em ganhos eleitorais. No entanto, aproveitando a implementação do Bilhete Único (BU) em 2004 e o fato de que esse mecanismo beneficiou as zonas da cidade de maneira diferente, é possível estimar se houve ganho eleitoral para um dos tipos de benefício desse bilhete: a possibilidade de integração gratuita. Essa medida permitia uma economia de R$1,70 por viagem para as pessoas que precisavam tomar dois ônibus no sistema anterior. Estimamos que esse benefício atingiu cerca de 5% dos eleitores, alterando a decisão de voto a favor de Marta Suplicy, a incumbente, em cerca de 6,8% desses. Como a parcela de beneficiários em termos monetários foi pequena, o  ganho eleitoral foi de apenas 0,34 ponto percentual dos 35,8% de votos que Marta obteve no  primeiro turno.  De qualquer forma, mesmo o efeito sendo relevante entre beneficiários, o pequeno efeito geral talvez explique a falta de imaginação dos candidatos para o setor.

O BU fazia parte de um plano muito mais amplo e podemos dizer que foi a última mudança relevante no sistema de transportes por ônibus em São Paulo. O fato de não se cobrar por integração era chave não eleitoralmente, mas para permitir uma futura racionalização da rede de transportes que implicaria em um aumento do número de conexões. Ele também conseguiu acabar com o transporte clandestino na cidade, pois os antigos perueiros, entrando no sistema formal, ganhavam direito a esse benefício para os seus usuários. Não encontramos nenhuma relevância dos outros benefícios do BU nos votos recebidos por Marta.

Acompanhamos as peças da campanha de reeleição de Marta Suplicy, em 2004, e não notamos que todo esse projeto de mudança no transporte público tenha recebido grande destaque na mesma. O BU aparece em apenas 2,3% dos minutos de televisão, ainda que o tema transportes tenha ocupado 14,3% do tempo de TV da candidata em 2004. Provavelmente os responsáveis pela campanha não sabiam como mostrar aos eleitores a reforma que estavam empreendendo em profundidade. É possível que essa análise histórica nos ajude a entender a pobreza das propostas atuais dos candidatos para a área de transportes.

Os cientistas políticos chamam de “pork-barel” as políticas localizadas territorialmente e financiadas com dinheiro federal para conseguir suporte da população. Esse suporte pode ser na forma de votos ou de contribuições de campanha. Como o transporte, até o momento, tem pouco dinheiro federal, o termo não é exatamente aplicável. No entanto, é conhecido que transporte afeta tanto o apoio eleitoral (pelos cidadãos) como o suporte às campanhas (pelas empresas concessionárias do serviço). O grande problema é que, muitas vezes, os interesses desses dois grupos divergem. Há uma série de propostas circulando entre os ativistas de transporte, nas câmaras municipais, nos programas dos candidatos, entre outros fóruns, propondo um apoio federal ao setor dadas as perdas geradas pela pandemia. Curiosamente (ou não) as propostas se referem à pandemia, mas procuram criar um mecanismo permanente de subsídio federal ao transporte público. A característica de pork-barel desse serviço estaria consolidada.

Vickerey**, ganhador do prêmio nobel de economia pelo seu trabalho com leilões, é provavelmente quem inaugura a área de estudos de Economia dos Transportes. O autor tem uma afirmação** que deveria ser o mantra das pessoas preocupadas com a gestão do transporte público: “Em nenhuma outra área importante, as práticas de preços são tão irracionais, tão desatualizadas e tão favoráveis ao desperdício quanto no transporte urbano.” No entanto, o que notamos é justamente o contrário. As propostas de mudança parecem caminhar mais no sentido oposto, como é o caso da tarifa zero encampada por diversos candidatos.

Sem entrar no detalhe de que não se sabe de onde virão os recursos para financiar tal empreitada (fora a teoria da conspiração de que as empresas estão ganhando fortunas no seu negócio onde haveria margem para reduzir o custo do transporte pela metade), a proposta gera uma distorção ainda maior na precificação do setor. Se não considerarmos que o dinheiro virá “da viúva”, toda população deve pagar por essa política pública; inclusive os que andam a pé ou de bicicleta. Toda a população terá direito ao benefício independente da sua renda, ou seja, é uma política social sem nenhum foco. 

Uma consequência da tarifa zero que mostra como ela gera distorção é uma de suas consequências: seria necessário parar de distribuir o Vale Transporte (VT) diretamente para os usuários. As propostas, evidentemente, não querem perder esse recurso precioso então propõem implícita ou explicitamente que esse valor seja entregue diretamente aos operadores de ônibus. Sem entrar no detalhe de como operacionalizar essa proposta (o que fazer com quem mora fora da capital mas tem VT?) notamos que estaríamos trocando uma política focada (garante que nenhum trabalhador formal gaste mais do que 6% da sua renda em transporte público) por uma política sem foco. 

A grande crítica ao VT é que ele atende apenas aos trabalhadores formais. Não há como discordar dessa crítica ainda que a existência de informalidade não pode ser atribuída ao VT (que pode ter uma pequena contribuição, se algo). Se esse é o problema então por que não procurar generalizar essa proteção de 6% da renda? Se fosse possível garantir que ninguém gastaria mais do que 6% de sua renda em transporte, aumentar a tarifa não colocaria em risco o bem estar da população e seria possível cobrar a tarifa eficiente para a operação do sistema sem ampliar a alta desigualdade que observamos na cidade. Adicionalmente, ficaria transparente o valor recebido pelas empresas e não escondido nos subsídios. O motivo pelo qual uma política como essa não seria viável, uma vez mais, é político. Mesmo que um candidato estivesse disposto a assumir uma bandeira como essa, não sobreviveria a nenhum grupo focal. O que a população quer é tarifa baixa. Entender essa política é altamente complexo.

Outra política urgente que poderia de fato alterar o status quo do transporte público é a criação de um pedágio urbano (melhor denominado de “taxa por congestionamento”). Hoje em dia os usuários de veículos particulares não pagam pelo viário que usam,  quem dirá pelos congestionamentos que produzem. Essa seria a melhor maneira de financiar os transportes públicos, pois se estaria ao mesmo tempo desincentivando o uso do modo “transporte motorizado individual”. As justificativas para se subsidiar o transporte público em geral estão calcadas no fato de que esse uso é melhor para a sociedade do que o automóvel. Hoje em dia os aplicativos operando em São Paulo já pagam uma taxa com esse tipo de racionalidade por trás. Uma vez mais é difícil explicar essa taxa aos eleitores. Mesmo os usuários de ônibus, em geral não vêem com bons olhos esse tipo de política pois “amanhã” eles podem ser proprietários de automóveis (ou assim esperam).

Finalmente, é incrível que nenhum candidato esteja considerando que o transporte mudou significativamente nos últimos anos e seguem com o mesmo modelo de 30 anos atrás. A pandemia foi um teste ácido do modelo de negócios do transporte público – e o setor foi reprovado. A tecnologia permite que se crie um sistema muito mais flexível para atender à população. Seria possível ter veículos de diversos tamanhos operando no transporte público. Isso permitiria um ganho de eficiência bem como uma possibilidade de adaptação à possíveis mudanças inesperadas. Um evento tão extremo como a crise sanitária que assola o mundo não poderia ser resolvida com o ganho de flexibilidade factível; mas o impacto poderia ter sido muito menor. Basta ver como os aplicativos foram muito menos afetados pela covid-19 do que os outros modos de transporte público.

Assim, o que concluímos é que as políticas públicas propostas pelos candidatos são, em geral, simplistas e não atacam de fato o problema. As novidades podem ao fim e ao cabo (se implementadas de fato) prejudicar ao invés de ajudar na melhoria desse sistema. Mas a verdade é que o transporte público está em crise, agravada pela pandemia, e quem assumir a prefeitura vai ter que pensar de maneira mais profunda para resolver esse dilema. Ainda que seja bem mais simples se manter no comodismo…

Ciro Biderman é coordenador do FGV Cepesp e professor do mestrado e doutorado em Administração Pública e Governo da FGV

Leonardo Bueno é pesquisador do FGV Cepesp e doutorando de Administração Pública e Governo da FGV

A coluna VOTO A VOTO é uma parceria da Folha com o Centro de Política e Economia do Setor Público da Fundação Getúlio Vargas (FGV CEPESP).

* Dahrendorf, Ralf. “Acht Anmerkungen zum Populismus”. Transit 25, 2003.

** Vickrey, W.; “Pricing in Urban and Suburban Transport”; American Economic Review, Vol. 53, No. 2. pp. 452-465, 1963.

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