
Ao longo dos últimos trinta anos, a população brasileira aumentou, a taxa de fecundidade caiu e a população envelheceu. Neste período, “a expectativa de vida ao nascer avançou em quase 10 anos, enquanto a taxa de mortalidade infantil diminuiu em 70%, de aproximadamente 44 para 13 óbitos de crianças de até um ano por mil nascidas vivas” e estes ganhos sociais estão diretamente relacionados à construção do Sistema Único de Saúde. Mas mesmo antes da pandemia da Covid-19, tornava-se cada vez mais claro que o sistema de saúde do Brasil “navegará por águas turbulentas”. O alerta é do professor da FGV, Rudi Rocha, que assina o capítulo 13 do livro “O Futuro do Brasil”, organizado por Fábio Giambiagi. Rocha também é pesquisador do Centro de Política e Economia do Setor Público (FGV Cepesp) e coordenador de pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).
Logo no início, Rocha acrescenta que “se nós, como sociedade, não nos mobilizarmos agora para participar desta travessia e contribuir para a contínua construção deste sistema, quem o fará? A saúde no Brasil se aproxima de tempos difíceis e, como muitas vezes acontece no país, se deixarmos a história correr sozinha e decidir por nós, o futuro que nos aguarda poderá ser mais desigual e com mais distorções na alocação de recursos”

Ao longo do artigo _ cujo título é “A Saúde na Década de 2020: Navegar é Preciso”, o pesquisador faz um rápido diagnóstico do sistema de saúde no Brasil, seus ganhos ao longo dos últimos 30 anos e uma comparação com outros sistemas públicos de saúde no mundo. Uma segunda parte do estudo é dedicada a mapear os desafios. Para Rocha, “existe grande potencial para ganhos de eficiência a partir de ajustes tópicos em regras de pagamento, de financiamento e de acesso”. E ele destaca que nas regras de acesso “é fundamental aprofundar o papel da atenção básica como vetor de coordenação ao longo de todo o cuidado, da prevenção ao acesso a serviços de mais alta complexidade”. Outro destaque do texto de Rocha é que ele também discute a integração dos sistemas público e privado e, embora destaque os desafios do SUS (onde são atendidos 75% dos brasileiros), também aponta os problemas que existem no SUS, no segmento privado e na interseção dos dois.
O texto foi finalizado no fim de abril de 2020, quando a pandemia da Covid-19 ainda estava no início no Brasil. Mesmo assim, o professor aponta que “a Covid-19 pode ser capaz de mudar escolhas sociais e eventualmente antecipar a agenda de discussões necessárias para garantir o futuro da saúde no país. A pandemia tem nos mostrado, de modo súbito e acelerado, algo que demoraríamos muito a perceber — a importância do SUS, seus problemas e suas virtudes; bem como a importância de contarmos com um sistema de saúde resiliente e que garanta o acesso a saúde de qualidade para todos.”
Rocha organiza os problemas a serem enfrentados em três grandes desafios, copiados, de forma resumida, abaixo:
Primeiro desafio: mais recursos, uso mais eficiente
Alocar mais recursos na Saúde, de forma cada vez mais eficiente, ao menos para recompor o hiato entre gastos e necessidades crescentes de financiamento e assim evitar retrocessos. As necessidades de financiamento do setor público requerem um aumento de gastos em torno de 1,6 pontos do PIB em 2060. Devido à sua escala, pela capacidade de coordenação da prevenção e promoção da saúde através da atenção básica e pelo enorme potencial para ganhos de eficiência, o SUS poderia contribuir para a sustentabilidade do sistema, mesmo sob um espaço fiscal restrito. Com relação ao setor privado, o marco legal deverá continuar evoluindo de tal modo que permita a proteção aos beneficiários e o incentivo a inovações e ganhos de eficiência das firmas, sem premiar a ineficiência e a sobrevivência daquelas que não tenham escala ou capacidade para operar no setor.
Segundo desafio: priorizar o aprimoramento das regras de acesso
Isso precisa ser feito desde a prevenção até os serviços de mais alta complexidade. Em particular no SUS, o primeiro ponto de contato entre pacientes e o sistema deve preferencialmente ocorrer por meio de equipes da atenção básica, cujo trabalho deve ser o mais resolutivo possível – e a quem deveria caber a coordenação da referência a serviços de mais alta complexidade. Como em todo sistema de seguro público universal, é fundamental racionalizar este fluxo de acesso por meio de filas de espera – integradas, transparentes e eficientes. No segmento privado, o regulador pode criar incentivos para que seguradores/operadoras de saúde estruturem serviços nesta direção e fortaleçam ações de prevenção e promoção da saúde. Com relação a regras de financiamento, em tempos de recursos escassos, é preciso priorizar a captação, de modo a preservar o máximo possível a equidade. Neste sentido, seria importante rever o quadro de renúncias fiscais e converter subsídios ao setor privado em investimentos no setor público.
Terceiro desafio: racionalização do rol de bens e serviços de saúde
A Constituição de 1988 prevê integralidade na atenção à saúde, que se reflete na garantia de acesso a bens e serviços de saúde em todos os níveis de atenção. A interpretação do Judiciário, no entanto, muitas vezes entende o conceito de integralidade como um direito de acesso a todos os bens e serviços de saúde. Estima-se que o gasto do Ministério da Saúde com demandas judiciais tenha aumentado 13 vezes em 7 anos, até atingir um valor da ordem de grandeza de 2 bilhões de R$ em 2017. Esta tendência, se mantida, poderá levar a uma contestação do princípio da integralidade. A preservação deste princípio, por outro lado, dependerá da capacidade de Executivo e Judiciário em firmar parcerias de modo a subsidiar tecnicamente as decisões e em conformidade com o que é ou pode ser ofertado no SUS. Mas a decisão sobre a atualização do rol de bens e serviços de saúde coberto pelo sistema deve ser a mais técnica possível, levando em conta o custo e o benefício que novas drogas ou procedimentos trazem para a população. Deve ficar claro, em particular, que a alocação de mais recursos em saúde, principalmente no setor público, demandará recursos de outras áreas do governo ou da sociedade, na forma de mais impostos ou menos subsídios e renúncias fiscais.
O livro “O Futuro do Brasil” está disponível para venda online nesse link.