Apelos pela volta da ditadura, ou em menor grau por uma intervenção militar que “liberte o país dos políticos (em sua maioria corruptos) ”, têm sido frequentes nas manifestações públicas dos últimos anos. Desde as marchas de 2013 até a mais recente paralisação de caminhoneiros, a decepção com a democracia parece continuar. Mas será que em meio a tanto pessimismo não existem boas notícias sobre a democracia brasileira?
O estudo aqui resumido se prestou a avaliar os efeitos do voto retrospectivo de uma particular política pública na cidade de São Paulo: o popular Bilhete Único, cartão eletrônico de transporte público da cidade. Colocado de maneira simples, o estudo procura mostrar que há indícios de que o mecanismo eleitoral produz um incentivo correto para os políticos. Ou seja, eles recebem um prêmio em votos quando produzem boas políticas. Isso é uma boa notícia porque significa que a democracia, ao menos no caso estudado, consegue dar o sinal correto aos governantes que, em troca, melhoram o bem-estar da sociedade através de boas políticas públicas.
O voto retrospectivo faz parte de uma literatura mais ampla a respeito dos estudos sobre o funcionamento das democracias. Alguns gostam do termo em inglês “democratic accountabiliy” para designar essa literatura, pois na tradução para “contabilidade democrática” perde-se o sentido mais amplo do termo em inglês, ficando-se apenas com o sentido contábil da expressão, que não é preciso. O pressuposto básico do voto retrospectivo é o de que os eleitores são razoavelmente racionais, ou seja, apesar de estarem sujeitos a cometerem erros ou mesmo possuírem vieses cognitivos, eles são capazes de avaliar a performance de seus governantes.
Pelo fato de existirem eleições, as democracias seriam capazes de produzir um sistema de sanções e de seleção de melhores governantes. O mecanismo eleitoral é simples: quando um determinado político entrega uma política pública ruim ou faz uma má gestão, ele sofre a sanção de não receber mais votos na eleição subsequente. Visto de outra maneira, há um sistema de seleção que diminui os efeitos de risco moral e seleção adversa, dois problemas muito comuns em situações de assimetria informacional, quando uma das partes tem mais informação que a outra. Como costuma acontecer em eleições, somente o candidato sabe quais são suas reais intenções ao concorrer ao cargo e é difícil para os eleitores ter informação completa sobre cada candidato.
O risco moral é quando, uma vez eleito, o governante não tem mais nenhum incentivo para atuar da melhor maneira possível, da mesma forma como quando ao contratar um seguro de veículo o segurado não tem mais incentivo a evitar transitar por vizinhanças inseguras, pois mesmo em caso de roubo, o valor de seu veículo será ressarcido. A seleção adversa é quando não é possível distinguir o bom político do mau político, da mesma forma como não é possível distinguir um carro usado em boas condições de um carro usado em más condições. Sem a informação precisa, eleitores e compradores de carro podem fazer escolhas ruins.
Assim, o voto retrospectivo é a forma pela qual eleitores consideram informações sobre a performance passada dos governantes para, a partir delas, tomar decisões futuras, chancelando as boas práticas ou punindo as ruins. Quando funcionam adequadamente as democracias teriam a capacidade de selecionar governantes melhores. Entretanto, vieses cognitivos adversos dos eleitores, bem como certas instituições que não funcionam bem, podem atrapalhar o mecanismo de seleção e, ao mesmo tempo, dar incentivos perversos aos políticos.
Estudo de caso
O Bilhete Único paulistano foi o primeiro cartão eletrônico do Brasil. A partir de sua implementação foi possível para os usuários de ônibus da cidade de São Paulo pegar até quatro ônibus pelo preço de um. Além do benefício de não mais precisar carregar dinheiro em espécie, os usuários poderiam economizar uma quantia substancial ao fim do mês, principalmente aqueles que moravam longe do centro e faziam várias baldeações.
A política foi implementada pela gestão Marta Suplicy (2001-2004) em 2004, no ano das eleições municipais. Apesar de ser lançada tão próxima ao calendário eleitoral, a política já fazia parte dos planos de governo desde o princípio do mandato, como ponto central de uma série de medidas de mobilidade urbana (corredores de ônibus, terminais e reordenamento de linhas). Era central porque somente com o Bilhete Único seria possível realizar o objetivo final do plano de mobilidade: a integração completa do sistema público de transportes.
Apesar do forte apelo eleitoral, graças ao benefício pecuniário o Bilhete Único era fundamental sob o ponto de vista técnico. Conforme averiguado nas pesquisas qualitativas, era um projeto antigo da burocracia da SPTrans (empresa pública da prefeitura de São Paulo) para melhorar o sistema.
O programa teve início oficial (para o público amplo) em 18 de maio de 2004, mas alguns grupos de usuários já passaram a receber o cartão em janeiro. A taxa de aprovação do governo Marta Suplicy começa a ter uma alta justamente no período próximo ao lançamento da política, como é demonstrado no gráfico abaixo:

A melhora na aprovação não pode ser atribuída somente ao Bilhete Único, mas a correlação temporal chama a atenção. Para reforçar o ponto, é possível ver na tabela abaixo como a desaprovação da área de transporte coletivo melhorou bastante ao longo de 2004. Por outro lado, a desaprovação da saúde aumenta substancialmente. Saúde era considerada a pior área do governo Marta Suplicy para 8% dos entrevistados em dezembro de 2003, mas em dezembro de 2004 esse percentual aumenta para 34%, enquanto transporte coletivo era considerado o pior desempenho do governo para 11% dos entrevistados, em dezembro de 2003 e, em dezembro de 2004, cai para 3%.

Apesar do desempenho ruim em saúde, o governo Marta Suplicy termina o mandato com um percentual de aprovação maior do que desaprovação, algo um tanto raro nos grandes centros urbanos do país. Entretanto, ela não foi capaz de traduzir essa boa aprovação em votos suficientes para ser reeleita, tendo perdido no segundo turno para o ex-ministro da saúde do governo Fernando Henrique Cardoso, José Serra.
Mesmo assim, ainda é possível verificar estatisticamente se houve algum efeito positivo do Bilhete Único no seu desempenho eleitoral entre 2000 e 2004. Agregando os dados eleitorais nas zonas da pesquisa Origem e Destino (1997-2007), é possível comparar regionalmente o efeito que a política tem nas diferentes partes da cidade. É de se esperar que o Bilhete Único tenha efeito maior nas regiões mais distantes do centro, onde os usuários fazem mais baldeações e, portanto, são mais beneficiados pela política. Se houver uma melhora na votação acima da média nas regiões onde o Bilhete Único é mais intenso, isso pode ser atribuído ao programa, feitos os devidos controles estatísticos e utilizando as melhores técnicas de estimação conhecidas.
Os resultados preliminares indicam que o Bilhete Único teve retorno eleitoral estatisticamente significante, mas apenas nas regiões onde o número de estudantes é maior do que a média. Concomitante à pesquisa quantitativa foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa, para ajudar na interpretação dos resultados estatísticos.
A partir de entrevistas com gestores e políticos e de uma análise documental, descobriu-se dois fatos que ajudam a explicar o fenômeno. O primeiro é que alguns grupos de usuários receberam o cartão antes do lançamento oficial. Idosos, estudantes e trabalhadores que tinham vale-transporte começaram a receber cartões desde janeiro de 2004. Mas destes três grupos deve-se considerar que apenas estudantes (e seus pais) de fato economizam dinheiro com o Bilhete Único, já que idosos são isentos de tarifa e trabalhadores têm suas viagens pagas pelos empregadores.
O segundo fato é que a forma de entrega dos cartões variou de grupo para grupo. Os estudantes e os usuários de vale-transporte receberam os cartões nas escolas e locais de trabalho, respectivamente. Os demais usuários de transporte público eram obrigados a se deslocarem até os postos de entrega. Mas a rede de postos de entrega não era grande no começo e a penetração nos locais mais distantes da cidade só ficou completa com o tempo e possivelmente só depois das eleições.
Com esses dois fatos fica mais fácil compreender porque os efeitos foram encontrados somente para estudantes e suas famílias. A explicação mais provável é que o “timing” da política e a forma como foram entregues os cartões favoreceram as famílias com estudantes. Esse público teria sentido os efeitos da política a tempo de converter a satisfação com o governo e com a política pública em votos na hora da eleição.
Outros públicos não teriam proferido o voto retrospectivo, pois não sentiram o efeito da política até o momento de votar. Isso pode ter acontecido por dois motivos: ou porque a economia de valores monetários não recaía sobre si (caso dos idosos isentos e trabalhadores, cujos custos de transporte e consequente economias recaem sobre o empregador), ou porque tinham dificuldade de conseguir o cartão eletrônico nos pontos de entrega, impossibilitando os efeitos do programa. Como estudantes receberam o cartão nas escolas e num período bastante anterior à data das eleições, eles e suas famílias puderam realmente perceber a grande economia que o cartão representava e puderam recompensar o governo por isso.
Ainda, é possível especular que, caso a política fosse feita um pouco antes e de maneira ainda mais eficiente (com uma rede de entrega saturada no “timing” certo), o retorno eleitoral para Marta Suplicy poderia ter sido ainda maior, pois teria atingido um público mais amplo com tempo de folga antes das eleições. Apesar do lançamento do Bilhete Único ter sido em maio, isso não significa que todos os usuários já possuíssem o cartão, muitos foram recebendo ao longo do segundo semestre, já na véspera ou até depois dos dias de votações.
Uma notícia boa
Governança democrática tem um apelo normativo porque eleições são um meio de melhorar o bem-estar público. O voto retrospectivo no caso do Bilhete Único de São Paulo indica que, apesar de não ser tão abrangente como esperado, o efeito da política foi positivo para o desempenho eleitoral da ex-prefeita. Considerando que os cartões eletrônicos são de uma maneira geral políticas que melhoram substancialmente o bem-estar nas cidades, pois otimizam o sistema de transporte como um todo, o caso estudado é uma boa notícia para a democracia brasileira.
Ao recompensar os governantes pelos méritos de suas gestões, os eleitores estão contribuindo para o bom funcionamento da democracia, pois a cada ciclo eleitoral existe a possibilidade de ajuste de rumos, conserto de erros e a oportunidade de melhorar olhando-se para a experiência passada, diminuindo os efeitos da assimetria de informação.
Marta Suplicy pode não ter sido reeleita (por diversos motivos possíveis), mas o Bilhete Único virou uma marca de sua gestão. O sucesso da política foi tão grande que diversas outras cidades passaram a adotar cartões eletrônicos depois da experiência de São Paulo – inclusive, em muitas dessas cidades adotou-se o mesmo nome para o cartão: Bilhete Único. Foi justamente o caso de um voto retrospectivo proporcionando um sinal positivo para que novos governantes adotassem esse importante avanço tecnológico. Uma notícia boa para a democracia do Brasil.
Texto originalmente publicado no site Jota.
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