As políticas públicas e a política externa no primeiro ano do governo Bolsonaro

CEPESP  |  12 de dezembro de 2019
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A influência da agenda de costumes sobre as políticas públicas e a política externa  foram os temas do segundo painel do seminário sobre o primeiro ano do governo Bolsonaro, realizado pelo Centro de Política e Estudos do Setor Público da  FGV (Cepesp/FGV) e pela Escola de Economia de São Paulo (FGV EESP). Para alguns, a influência crescente de grupos religiosos (especialmente os conservadores) pode afetar negativamente programas bem-sucedidos; para outros, o país escolheu uma agenda social-democrata em 1988 e essa agenda, entre idas e vindas, está avançando. Mas não é apenas o cenário doméstico que preocupa. Na política externa, está em curso uma das maiores guinadas da história brasileira.  

Participaram do segundo painel a professora e pesquisadora Elize Massard da Fonseca (FGV EAESP e Cepesp), o professor André Portela (FGV EESP e C-Micro) e Oliver Stuenkel (FGV RI), com mediação de Lara Mesquista, pesquisadora do Cepesp.

Da esqueda para a direita: Portela (de costas), Stuenkel, Lara Mesquita e Elize Massard

Três em um na política externa

Oliver Stuenkel, professor da Escola de Relações Internacionais (FGV RI), identifica três grupos se digladiando pela orientação da política externa do governo Bolsonaro. O primeiro é o pró- Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, no qual estão o próprio presidente, seu filho, Eduardo Bolsonaro, e o ministro das relações internacionais, Ernesto Araújo, e é ele que pauta o debate público, pelas redes sociais. O segundo grupo são os militares, encabeçados pelo vice-presidente Hamilton Mourão, que tem uma visão mais clássica e uma postura mais moderadora; e o terceiro, o dos economistas mais liberais, encabeçado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. “Esses três grupos têm visões profundamente diferentes. O primeiro é nacionalista, com instinto protecionista e reticente ao multilateralismo, e o terceiro com uma retórica pró-globalização, pró-abertura e pró-sistema multilateral”, pontua, acrescentando que tensão é a marca registrada da política externa do governo atual, complicada por uma atuação espalhada por várias partes do governo. 

Para Stuenkel, governo já vê China com mais pragmatismo

A posição em relação à China foi um dos pontos inicialmente de forte divergência entre os grupos. O primeiro, alinhado aos Estados Unidos, iniciou o governo com uma retórica anti-China, mas não foi acompanhado pelos grupos dois e três. Inclusive o vice-presidente foi importante em um movimento de contenção de danos. “E hoje a relação com a China é melhor do que em qualquer momento da história”, argumentou Stuenkel, ponderando que a área econômica quer o dinheiro do investimento o chinês e os empresários, especialmente do agronegócio, querem o mercado asiático.  O grande teste, contudo, será no leilão da tecnologia 5G. Trump pressiona abertamente para que o Brasil exclua a multinacional chinesa Huawei, mas a China, reservadamente, já avisou que se isso for feito, será considerado como uma atitude hostil ao país asiático. “A postura em relação a esse leilão vai determinar como a política externa do presidente vai entrar na história”, avaliou o professor.

Há um vai e vem entre esses grupos. Enquanto Venezuela e Israel também marcaram diferenças públicas entre eles, no caso dos incêndios na Amazônia, os grupos um e três se aliaram no confronto com o presidente francês, Emmanuel Macron, embora o grupo três tenha sido fundamental para manter o Brasil no Acordo de Paris.  Em função da questão ambiental, a reputação de Bolsonaro ficou irreversivelmente abalada na Europa, disse Stuenkel, prevendo que talvez o presidente nunca viaje para aquele continente durante seu mandato. 

Para Stuenkel, apesar do país ter finalmente assinado o acordo com a União Europeia (o que é uma boa notícia), o presidente é protecionista e por isso sua agenda na área externa se choca com a do seu ministro Paulo Guedes. Mas, pondera ele, embora o discurso (e até algumas atitudes) seja de muito alinhamento com os Estados Unidos, uma postura pragmática está prevalecendo em algumas áreas, como na relação com a China, onde o governo pediu para o país investir no leilão do pré-sal. Já com a Argentina, talvez seja mais complicado porque o vice-presidente, que foi fundamental para consertar a relação com o país asiático, já gastou seu capital político.

A agenda de costumes na saúde

A professora da FGV EAESP e pesquisadora do Cepesp Elize Massard da Fonseca usou a mudança do governo com relação à política de tratamento do HIV-AIDS como um exemplo do risco de que a agenda de costumes do presidente e a influência crescente dos grupos evangélicos na política brasileira afetem boas políticas públicas na área de saúde. Antes mesmo de Bolsonaro assumir o governo, o futuro ministro da Saúde deu uma declaração dizendo que as campanhas de prevenção ao HIV-AIDS e uso de drogas não poderiam constranger as famílias, e o país deveria alterar estas campanhas, lembrou Fonseca.

A política de HIV-AIDS sempre foi usada como um emblema de uma política pública bem sucedida e o Brasil foi o primeiro país em desenvolvimento a aliar prevenção e tratamento, disse a professor, ponderando que “hoje em dia pode parecer uma coisa óbvia, mas há 30 anos atrás não era.” O sucesso, explica, está relacionado a três pontos: campanhas bastante progressistas e que respeitam os direitos humanos, programa de tratamento universal para o HIV-AIDS, com remédios que mesmo sendo patenteados são ofertados no sistema público de saúde, e a centralização e a coordenação das ações no departamento de HIV-AIDS do Ministério da Saúde, que hoje em dia já não tem mais este nome. 

Os resultados foram bastante expressivos, informou Fonseca. Houve uma  redução muito grande na transmissão mãe-filho (algumas cidades eliminaram essa transmissão vertical),  além de um declínio muito importante na hospitalização e na mortalidade associada ao HIV-AIDS, e um aumento na expectativa de vida das pessoas infectadas, de cinco  anos em 1996 para mais de 12 anos, segundo o último dado do Ministério da Saúde, que é de 2014. 

Elize Fonseca: influência religiosa é crescente

De acordo com a professora, a influência dos grupos evangélicos no Ministério da Saúde começou ainda no último mandato da presidente Dilma Rousseff, cresceu na presidência de Michel Temer e se intensificou no atual governo, quando algumas áreas foram transformadas. Reestruturação é normal, mas o que aconteceu foi que o nome DST-AIDS foi retirado no nome do Departamento, explicou a pesquisadora, lembrando que há um estigma por trás destas doenças e quando você não fala, é mais difícil o combate e a prevenção. Além disso, um site específico sobre AIDS foi fechado e seu conteúdo redirecionado para dentro do ministério. No começo dos anos 80, lembra Fonseca, Brasil e África do Sul estavam no mesmo patamar epidemiológico da doença, mas hoje em dia, menos de 1% da população brasileira é afetada pela epidemia, enquanto 18% da população sul-africana é portadora do vírus, o que mostra a importância de campanhas de esclarecimento e prevenção. Por isso, uma nova preocupação da pesquisadora, é o risco de que a proposta de desvinculação das despesas em saúde reduza os gastos que os prefeitos fazem em prevenção, por exemplo.

A agenda da social democracia brasileira

Na avaliação de André Portela, professor da FGV EESP e coordenador do C-Micro, muito do que o Brasil está vivendo ainda é parte da agenda de democratização do país e está sendo parcialmente afetada pela agenda do governo Bolsonaro. Ele destacou dois pontos da agenda social: a reforma da Previdência e a educação.

Andrè Portela: Brasil levou 30 anos para elevar sua expectativa de vida de 50 para 70 anos

A mudança demográfica no Brasil foi muito forte e acelerada e esse é um dos grandes gargalos do país, parcialmente encaminhado com a reforma da Previdência, ponderou Portela. Enquanto o Japão levou 50 anos para reduzir sua taxa de fecundidade de três para dois filhos, o Brasil levou apenas 17 anos; além disso, o Brasil demorou 50 anos para aumentar sua expectativa de vida de 50 para 70 anos, só perdendo para a Coreia, que fez essa mudança em 30 anos.

Neste contexto de forte crescimento da expectativa de vida, com mais gente para receber e menos pessoas para contribuir, uma reforma da Previdência com aumento da idade mínima, era inevitável, ponderou Portela. Por isso ele questiona o quanto dessa reforma pode ser creditada ao governo Bolsonaro. Na sua avaliação, a seguridade social do Brasil vem sendo construída e reformada ao longo de 30 anos. “O que aconteceu agora é mais uma etapa da longa construção da nossa social democracia, com suas idas e vindas”, argumentou, lembrando que ela começou em 1988, depois já foi reformada em 1993, 1998-1999, aí de novo no primeiro ano do governo Lula, e mais uma mudança no governo Dilma. “O Bolsonaro não lutou para isso, mas não precisava, isso estava na agenda da sociedade e batia na porta de qualquer prefeito ou governador”, defendeu.

O segundo ponto da agenda social tratada por Portela foi a educação. Ele mostrou que os resultados do Brasil no Pisa (prova internacional que mede leitura, matemática e ciências), indicando que o país cresceu de 2003 a 2012 e desde então está estagnado. O crescimento, diz ele, veio pela redução da distância entre idade-série, mas uma vez ajustada essa defasagem, o país só vai avançar quando melhorar, de fato, a aprendizagem. Para ele, também aqui o Brasil vive uma etapa da construção da sua social democracia depois de decidir, em 1988, que a educação seria um direito social e, a partir daí, estabelecer uma série de medidas para garantir recursos para a área. O primeiro exame nacional para medir o aprendizado dos alunos foi em 1995, quando os professores fizeram greve contra, lembrou, para reforçar seu ponto de que o projeto está em construção. 

Em 2020, há três pontos importantes do que Portela chama de agenda da social-democracia na área de educação e que podem ser afetados pela agenda de costumes: a reformulação da lei do Fundeb, a reforma do Ensino Médio e as bases nacionais curriculares, que implica em formação de professores e revisão de livros textos. “Mas esta é uma agenda que está andando e é influenciada pela sociedade e não apenas pelo governo de plantão”, ponderou. 

Questionado pela plateia se essa agenda pode andar mesmo sem o governo, ou como ela ficaria se o governo resolver pautá-la de acordo com sua agenda de costumes, Portela avaliou que 2020 pode ser um teste para a agenda na área da educação, mas lembrou  que uma parte importante depende também da dinâmica e do interesse de Estados e municípios, e por isso confia que ela vai andar. 

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