Cláudio Couto: A política da distinção

CEPESP  |  19 de novembro de 2013
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A prisão dos dirigentes petistas condenados no processo do “mensalão” tem suscitado reações muito apaixonadas, boa parte delas manifestada no âmbito da subopinião pública das redes sociais da internet, mas também no âmbito da grande mídia. Essas reações contribuíram para criar um debate bipolar – maniqueísta mesmo – que tem servido para obliterar aspectos importantes não só do processo, mas também de motivações existentes por trás das reações. Vou traçar aqui o que me parecem alguns dos aspectos principais das visões mais extremadas que pude notar – embora haja também versões mais amenas, embora ainda dentro da bipolaridade. As aspas referem-se a termos que identifiquei nesse debate.

Para um lado dessa polarização, a prisão dos líderes petistas é um fato alvissareiro, pois finalmente (quase que pela primeira vez na história deste país) indivíduos “poderosos” foram encarcerados por corrupção, não só fazendo-se justiça, mas também sinalizando à sociedade que nossas instituições funcionam e é possível, portanto, acreditar nelas. Ainda mais considerando-se que o mensalão teria sido “o maior escândalo de corrupção de nossa história”, em que os “larápios” petistas foram mandados para o xilindró, sendo inaceitável e incompreensível sua tentativa de fazer-se passar por vítimas ou heróis.

Para o outro lado da contenda, tratou-se apenas de uma imensa injustiça, já que o mensalão nada mais teria sido do que uma construção falaciosa feita pela mídia conservadora (o P.I.G., “partido da imprensa golpista”), resultado de uma denúncia absurda feita por um político corrupto ressentido (Roberto Jefferson), sem quaisquer provas, num julgamento “de exceção” em que juízes mancomunados com as elites conservadoras teriam criado inovações judiciais descabidas. Essa seria uma forma de tentar estigmatizar o PT e lançar por terra todas as conquistas sociais que o governo do partido obteve ao longo dos últimos anos.

Entendo que essas duas visões extremadas – cuja expressão, contudo, está longe de ser excepcional – são caricaturas da realidade. E, como toda caricatura, contêm alguns elementos de verdade, os quais devem ser considerados. Entretanto, se não se separa a realidade das coisas do exagero da caricatura, corre-se o risco de apenas reforçar a espiral de irracionalidade que tem alimentado esse debate maniqueísta, pois a cada absurdo que se diz de um lado, surge uma reação igualmente absurda (embora com sinal trocado) do outro.

Primeiramente, cumpre dizer que é insustentável supor que não tenha havido corrupção, sendo tudo mera invenção de uma “mídia golpista” e de promotores e juízes canalhas. Todavia, ao mesmo tempo, mesmo considerando tudo o que foi apresentado no julgamento, parece-me ser também uma construção mítica a ideia de que o dinheiro desviado para os parlamentares da base governista tenha sido o meio através do qual se construiu uma maioria parlamentar. Ainda mais sob o argumento de que teria sido a forma de compensar para os aliados o pouco espaço dado a eles pelo PT na partilha dos postos ministeriais. E isso por duas razões.

Primeira, porque se a finalidade do dinheiro fosse comprar apoio de outros partidos para o governo do PT, então porque também se deu dinheiro a parlamentares do próprio PT? Seria por acaso o PT comprando o próprio PT, para compensar o espaço que o PT não deu a quem não era do PT? Ora, isso não faz qualquer sentido.

Segunda, porque o padrão de votações dos partidos aliados do governo não variou ao longo do tempo – antes, durante e depois do escândalo do mensalão, ao longo de todo o governo Lula. Ora, se era o dinheiro que comprava o apoio, porque com a interrupção do esquema o apoio não se esvaiu?

Em suma, parece-me que o ponto aqui é que a relação causal é a inversa daquela propugnada pelo mito do “mensalão”, conforme sua versão jeffersoniana. Isto é, deu-se dinheiro a aliados porque já eram aliados, não para que se tornassem aliados. Foi uma operação ilícita, sem dúvida, não só por se tratar de recursos não contabilizados, como também por serem obtidos de forma ilícita (e não só por meio de empréstimos no Banco Rural, avalizados por Genoíno e quitados pelo PT). Entretanto, carece de sentido a ideia da compra de votos parlamentares, que talvez fosse a razão mais palpável para que alguns quisessem dar ao malfeito o caráter de “maior escândalo de corrupção da história do país”.

Todavia, isto importa menos para o argumento que pretendo desenvolver. Há algo politicamente mais complicado, relacionado às motivações por trás de parte das reações polarizadas.

No caso dos militantes da esquerda, que veem na construção do mensalão simplesmente uma invenção da mídia, a questão é mais simples e a história mais antiga. São as velhas reações esquerdistas à mídia conservadora, tomando como conspiração por ela urdida qualquer divulgação de informações que não sejam de seu agrado. Porém, ainda que haja isto, é mister também reconhecer que a cobertura intensa, acalorada e parcial sobre o caso – que efetivamente a grande mídia produziu – teve papel importante nesta história. Em primeiro lugar, ao exasperar ainda mais os ânimos do público: uns por verem nos exageros uma conspiração, outros por comprarem certas estórias acriticamente. Em segundo lugar, porque tal cobertura manteve os juízes sob pressão constante, induzindo-os a uma postura mais dura do que poderiam eventualmente ter num ambiente menos conflagrado. Porém, em relação a este segundo aspecto, pode-se simplesmente admitir que “é do jogo” da disputa da opinião numa democracia em que o acesso aos recursos de informação é bastante desigual.

Já no caso particular da opinião pública e da subopinião pública antipetistas, houve algo mais complexo e mais novo, que não pode ser explicado apenas como reação justamente indignada à corrupção. Se fosse só isto (e houve também quem tivesse apenas tal motivação), estaríamos no âmbito de um conflito político menos acerbo e menos perigoso. Só que se fosse só isto, teríamos que ter encontrado reação igualmente iracunda contra outros escândalos de corrupção, perpetrados por outros atores políticos – o que simplesmente não aconteceu.

Com efeito, o que se notou foi o surgimento de empedernidos críticos da corrupção na pele de antigos apoiadores de políticos popularmente distinguidos como símbolos dela – como é o caso de Paulo Maluf. Ora, por que será que antigos malufistas (para ficar por ora só no exemplo deles), que faziam vistas grossas à sua péssima reputação nesse âmbito, assim como deram de ombros a seu apoio ao governo tucano de FHC, de repente passaram a criticá-lo? Está na resposta a essa questão ilustrativa uma chave para entender todo o problema.

O velho Maluf, mesmo que reputado como corrupto, era claramente um político conservador. O novo Maluf, menos poderoso e ainda com a péssima reputação de antes, tornou-se o apoiador de governos liderados por um partido de esquerda. E aí já não servia mais. Menos poderoso, não ganharia eleições e, consequentemente, não seria capaz de produzir governos conservadores. Pior, além de não produzi-los, passou a apoiar governos que não são conservadores – pelo contrário. O que sobrou para ele, portanto, foi a reputação. E o que sobrou para seus neoaliados de esquerda foi o pecado de terem se aliado a um corrupto. O velho malufista viu-se então na contingência de chutar seu antigo cachorro morto e também o detestado cachorro vivo, que lambia as feridas do cadáver.

Ao ver-se tragado por um escândalo de corrupção de grandes proporções, tendo de dar explicações públicas esfarrapadas e despencando do pedestal de vestal da nação que houvera construído em seus tempos de oposição nacional, o PT tornou-se uma presa fácil da opinião e da subopinião públicas conservadoras. Não só pela incongruência entre seu velho discurso e sua nova situação no campo da moralidade pública, mas também porque o “novo corrupto” tinha um pecado adicional: era de esquerda (embora moderadíssima). E se os corruptos de direita do passado eram aceitáveis, pois entregavam o serviço esperado, o corrupto de esquerda do presente era um anátema. Afinal, entregava o que não se queria e ainda roubava! Intolerável!

A corrupção do PT não se tornou apenas um elemento adicional de rechaço, agregado ao esquerdismo como fator de critica e estigmatização pelos conservadores. Ela se tornou, na realidade, o elemento justificador. Afinal, não seria tão fácil condenar o esquerdismo moderado do governo liderado pelo PT, com suas políticas sociais que tiveram de ser incorporadas pela oposição (como ficou ainda mais claro nas recentes declarações de Aécio Neves sobre o Bolsa Família). A dificuldade reside justamente na impossibilidade da oposição partidária vociferar contra as políticas sociais. Se o fizer, aliena parcela do eleitorado sem a qual não ganha eleições. Não o fazendo, cria uma incongruência entre seu discurso e aquele formulado pela opinião e pela subopinião pública conservadoras. E como estas últimas precisam alinhar-se à oposição partidária (sem a qual não há como remover legalmente o PT do poder), é necessário criar algo que os unifique, algum elemento mais claro de vinculação entre os dois âmbitos. Esse elemento é o discurso sobre a “corrupção do PT”.

Há dois grandes trunfos desse discurso sobre a corrupção petista. Um é o fato de que ele dispensa explicações. Afinal, quem vai ser a favor da corrupção? O outro trunfo é o de que, ao condenar a corrupção do PT, produz-se uma metonímia e se condena o PT em sua integralidade como partido – o que acaba por incluir suas políticas, inclusive as sociais, as quais nada têm a ver com a corrupção. Deriva daí a importância retórica de converter todo petista em “petralha” – como em particular o faz a subopinião pública conservadora. Afinal, um petista não pode ser simplesmente mandado para a cadeia, por ser um petista; mas um “petralha” não só pode, como deve. E assim, equiparando-se todo petista a um “petralha”, cria-se a justificativa para que se proscreva da política nacional essa “quadrilha travestida de partido” [sic].

Se parece clara esta operação semântica, com suas implicações políticas, há uma outra questão que ainda demanda maior reflexão e pesquisa. Por que, afinal, detestam tanto o PT e seu governo? A resposta simples (talvez simplista) seria: porque são de esquerda (embora moderada) e os direitistas não tolerarão qualquer governo de esquerda. Embora isto possa ser verdade de um modo geral, há algo mais. O ódio que se dirige a Lula e ao PT por certos segmentos da opinião e da subopinião pública conservadoras é grande demais para ser explicado unicamente por divergências ideológicas de fundo.

O que me parece crucial é que, numa sociedade desigual e hierárquica como a brasileira, causa horror a certos segmentos de nossa elite socioeconômica a possibilidade de que sua distinção seja perdida. Políticas de redução da desigualdade, diminuição da pobreza e inclusão de segmentos antes segregados em nichos exclusivos causam desconforto – para dizer o mínimo. Ao passarem a conviver com “gente diferenciada” em espaços nos quais antes apenas havia “gente bonita”, horrorizam-se. Para ilustrar a que me refiro, menciono o caso de uma jovem acadêmica dessa elite socioeconômica, que numa mesa de almoço há algum tempo queixou-se de que o problema dos aeroportos brasileiros hoje é de que neles, agora, “há muito pobre”. Mas nem tudo é tão simples, ainda.

Decerto terão dificuldades para verbalizar tão desabridamente essa sua concepção muitos desses conservadores raivosamente antipetistas, que veem em qualquer membro do PT um “petralha”. Mais frequentemente, camuflam essa perspectiva segregacionista sob o manto do discurso meritocrático, que serve para muita coisa: para criticar os “vagabundos” do Bolsa Família, que recebem o peixe em vez de aprenderem a pescar; para lastimar a politica de cotas (sociais ou étnicas) que levam para as universidades e outros nichos de excelência “gente despreparada”, além de promoverem “racialismo” e negligenciarem a “competência”; para fomentar o desemprego entre as empregadas domésticas etc.. Em suma, enquanto “nós” nos esforçamos, “eles” são beneficiados por políticas “demagógicas”, “eleitoreiras”, “paternalistas”, que equivalem a uma “compra de votos” etc..

É por isto mesmo que tais conservadores tiveram na figura de Joaquim Barbosa um ícone do herói. Embora negro, chegou aonde chegou por “méritos próprios” e não por cotas. Embora nomeado por Lula, postou-se como o guardião da moralidade pública, contra a corrupção, mandando para a cadeia os corruptos petistas. A figura de Barbosa torna-se um acalento para esses segmentos, pois ao mitificarem-no lançam uma indulgência sobre seu próprio elitismo excludente. Afinal, se ele, um negro vindo de baixo, condena com tanta veemência esses petistas corruptos, quem haverá de dizer que “nós”, gente tão distinta, também não devamos fazê-lo?

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP e pesquisador do Cepesp

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