Cláudio Couto: Reformas acontecem a conta-gotas

CEPESP  |  30 de julho de 2013
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Apesar do ambiente favorável a reformas criado pelas manifestações populares de junho, é difícil determinar quais foram os resultados concretos dos protestos.

Entrevista publicada no jornal DCI, em 30 de julho de 2013, com o pesquisador do Cepesp Cláudio Couto.

Roberto Dumke

Apesar do ambiente favorável a reformas criado pelas manifestações populares de junho, é difícil determinar quais foram os resultados concretos dos protestos.

Uma das respostas dadas pelo Palácio do Planalto para acalmar os ânimos foi propor um plebiscito para fazer uma reforma política, que, ao menos em tese, melhoraria o sistema e combateria a corrupção. Porém, sem o apoio da Câmara e do Senado, a reforma pode ser engavetada.

Para o cientista político Cláudio Gonçalves Couto, professor do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), a ideia da reforma política acabou virando “um mantra”, como se houvesse uma fórmula mágica para solucionar todos os problemas da política brasileira de uma só vez. Ele afirma que, mesmo em parte estacionada, a reforma tem acontecido “a conta-gotas”, com mudanças como a reeleição, a fidelidade partidária e a Lei da Ficha Limpa.

Couto diz que, inicialmente, as manifestações pareciam ter criado condições para que mudanças na política e no sistema eleitoral de fato acontecessem. Mas, com o tempo, “tudo está voltando ao normal”. Segundo ele, a reforma não interessa aos políticos. “É difícil alguém mudar a regra eleitoral com a qual se elege.”

A saída poderia vir de meios que pudessem aproveitar a insatisfação popular com o sistema político, como uma cidadania eletrônica. Se iniciativas populares de lei pudessem ser feitas e votadas pela internet, diz o professor, então haveria pressão e cobrança suficientes para que mais projetos como o que instituiu a “Ficha Limpa” fossem aprovados.

Por outro lado, ele destaca que a chamada reforma política pode não resolver os problemas do sistema brasileiro. “Pelo contrário, nada impede que as mudanças sejam para pior”, acrescenta.

A seguir, a entrevista.

DCI – Após as manifestações, fala-se muito da reforma política. Em que pontos a reforma trava?

Cláudio Gonçalves Couto – Podemos começar com o financiamento público das campanhas eleitorais. Temos formas de financiamento público, como o fundo partidário, que financia os partidos, mas não a campanha. O horário eleitoral gratuito também entra nisso. O Estado gasta ao comprar o tempo de televisão. Então, na realidade, há alguma forma de financiamento público na competição política. Mas não houve avanço real na proposta de estabelecer o financiamento público no Brasil. É um tema muito controverso. A imagem que a população tem é aquela velha história: “Vamos ter que dar dinheiro para políticos fazerem campanha?”. Parece um tiro no pé, mas é a proposta mais razoável do mundo. No sistema atual, a disputa pelo dinheiro dos empresários é talvez a principal disputa entre os políticos. Mas é difícil convencer as pessoas disso. Existem até setores da classe política que são contra o financiamento público. Aqueles que já possuem meios para obter recursos não querem criar um sistema de financiamento público exclusivo, que lhes tiraria a vantagem.

DCI – Mas os recursos não seriam distribuídos com base no tamanho de cada partido?

Couto – Pode-se criar um sistema que não seja completamente proporcional à representação do passado, o que seria mais razoável. Dar o mesmo montante de dinheiro para partidos grandes, como o PSDB, PMDB, PT, e para um partido nanico não faz nenhum sentido. Os três partidos têm muito mais representatividade do que o pequeno. Algum critério de passado ditando presente é importante, mas só isso também é problema, porque não permite que novos partidos cresçam.

DCI – Por outro lado, não há partidos demais no sistema?

Couto – Por isso acho que o financiamento público deveria ser combinado com algum tipo de cláusula de barreira, que regularia um pouco a entrada de novos partidos. Na metáfora do futebol, o sistema político brasileiro tem 40 times na primeira divisão. Será que o campeonato fica melhor com 40 times? Ou se criarmos um critério mais rigoroso de entrada e fizermos várias divisões ficaria melhor? Acho que ficaria melhor com menos times. Não tem que fechar a competição: o partido pode crescer primeiro e depois entrar. Ganha eleições nos municípios, depois nos estados e cria musculatura. Depois, entra no Congresso. Isso obriga os partidos a ter um mínimo de robustez. O que esses partidos pequenos agregam ao sistema? Nada. Só geram ruído. Por isso, a cláusula de barreira é uma medida incrível. A aprovação da medida foi uma das poucas reformas importantes que o Congresso conseguiu. Mas ela foi barrada pelo Supremo Tribunal Federal em 2006. É um tema altamente discutível do ponto de vista de ser constitucional ou não. Porém, no contexto da época, logo na sequência do mensalão, a lógica era a de aumentar a competição entre partidos. Então o Judiciário decidiu barrar. Matou uma das reformas importantes do sistema político.

DCI – Mas de que forma o grande número de partidos é negativo?

Couto – A disputa fica com competidores de condições muito diferentes. Acaba sendo uma falsa competição. Os partidos pequenos não têm condições de competir com os grandes. A segunda razão é a cacofonia. Ou seja, é informação demais para ser processada pelo eleitor. É como um cardápio que tem 60 tipos de pizza. O cliente até começa a ler o nome e a descrição de cada uma. Mas quando chega na 13ª, já desiste e pede uma marguerita. É muita informação. Às vezes, existe um sabor em destaque, então o cliente escolhe aquele. Mas se não há, desiste e pede o que conhece. E o resultado da cacofonia é a redução do interesse pelo processo político. Sem interesse, o eleitor vota naquele com a propaganda mais vistosa, ou em quem já conhece. Às vezes, menos informação é mais.

DCI – Isso, de certa forma, se relaciona com o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados 14/2013, que restringe a abertura de novos partidos?

Couto – Eu até acho que esse projeto em si não é ruim, porque vem em linha com o que eu estou defendendo, que é ter mais disciplina na entrada de novos partidos. Insisto: isso é bom. O problema é que se sabe que este é um projeto feito contra a possível candidata à Presidência no ano que vem, Marina Silva. É um casuísmo. E alguém já foi beneficiado pelas regras atuais: o Gilberto Kassab, do PSD. Surgiu um novo partido, que foi beneficiado pegando tempo na televisão e dinheiro do fundo partidário, por interpretação do Supremo Tribunal Federal. Mas isso já foi, pouco importa. Se fizermos a leitura mais literal da lei, a rigor, novos partidos não deveriam pegar esse dinheiro, nem ter acesso ao tempo na TV. Mas o fato é: alguém se beneficiou desta ação do Supremo. Então, cria-se outro partido, dentro desse período, para disputar as mesmas eleições que o PSD vai disputar, e para um a regra valeria, mas para o outro, não. A legislação é positiva, ao disciplinar a entrada de partidos, mas não pode valer para o próximo período eleitoral. Caso contrário, teremos dois competidores que disputam o mesmo jogo, mas com regras diferentes. Porém, quando começar outro campeonato…

DCI – Em sua opinião, o projeto é uma manobra para prejudicar a Marina Silva, que tenta fundar o partido Rede Sustentabilidade?

Couto – Claro que é. E as pesquisas mostram que há razões para essa preocupação. As projeções apontam que a Marina iria ao segundo turno na disputa presidencial. Se isso vai acontecer de fato é outra história. Até a eleição do ano que vem existe muita água para passar debaixo dessa ponte. Sabe-se que todas as campanhas só começam depois do horário eleitoral gratuito. É só observar o que aconteceu com Dilma Rousseff antes da eleição, com o prefeito Fernando Haddad ou com o Gilberto Kassab. Enfim, há vários casos em que o candidato só cresce depois. Embora a Marina seja lembrada pelos eleitores porque já foi candidata, estou pensando mais nos outros, no senador Aécio Neves, do PSDB, e no governador de Pernambuco, Eduardo Campos, do PSB, este mais atrás nas pesquisas. O Aécio tem um partido grande, tem estrutura no País, a chance de ele crescer é muito considerável. A Marina está em segundo, mas nada garante que não seja ultrapassada.

DCI – Voltando para a questão da reforma política, em quais pontos houve progresso?

Couto – Temos uma série de reformas que vão acontecendo a conta-gotas, mas que são importantes. Vamos voltar para 1994. Houve a mudança no mandado presidencial, que foi de cinco para quatro anos. Com isso, ficam casadas as eleições para o governo estadual, para o Congresso e para a Presidência da República. Foi uma mudança muito importante. A reeleição foi outra. Apesar de ter sido uma mudança casuística, é uma boa instituição. Há efeitos positivos disso: se o eleitor prefere não trocar o certo pelo duvidoso, deve ter essa oportunidade. Outra: governantes que podem disputar a reeleição tendem a ser mais responsáveis no trato das contas, para não armar uma bomba para si mesmo. “Ah, mas o governante usa a máquina pública para se reeleger.” Os políticos já usavam a máquina pública para eleger sucessor. Esse argumento é um espantalho, uma bobagem. Enfim, a reeleição dá mais uma alternativa para o eleitor. Quatro anos não é muito, e oito anos também não. Por outro lado, um mandato de seis anos é demais para um governo ruim. Houve também outras reformas: o fim do candidato nato – o partido pode negar legenda ao candidato à eleição -, a fidelidade partidária – mandato passou a pertencer ao partido -, a verticalização das coligações – partidos deveriam fazer as mesmas alianças nos níveis estadual e federal, por exemplo, mas a medida foi derrubada -, a mudança na tramitação das medidas provisórias – que não podem mais ser reeditadas infinitamente pelo Planalto – e a Lei da Ficha Limpa, que impede reeleição de condenados pela Justiça.

DCI – E por que outras reformas, como a do financiamento público ou do sistema eleitoral, ficaram estacionadas?

Couto – É difícil alguém mudar a regra eleitoral com a qual se elege. Os políticos teriam mais incerteza. Essa é a consequência para eles. Isso vale para as regras do financiamento público e para o sistema eleitoral. Se o Brasil mudar para o voto distrital, será que os mesmos políticos vão se eleger? Ou será que serão outros, que hoje não têm chance? Por que alguém mudaria as regras do jogo que está ganhando? Quem é eleito está ganhando o jogo.

DCI – Mas as manifestações de junho não criaram um ambiente para que essas mudanças acontecessem?

Couto – Aparentemente criaram, no momento inicial. Mas aos poucos as coisas vão voltando ao normal. Havia, inicialmente, uma tentativa de dar resposta. A presidente falou, dividiu a responsabilidade com o Congresso. Mas então os parlamentares sugeriram que o Planalto diminuísse os ministérios. E a batata quente vai de um lado para o outro.

DCI – Fazer uma consulta popular, seja referendo ou plebiscito, viabilizaria a reforma?

Couto – Não acho que viabiliza em si. Dá mais legitimidade, coloca certa pressão para decidirem essas questões. É uma pressão positiva: os parlamentares sabem que vão ser submetidos a um referendo e que as pessoas podem votar contra. Acho que seria saudável fazer uma reforma política no sentido de aumentar as possibilidades de participação popular. Veja o caso da Lei da Ficha Limpa, que veio de uma iniciativa popular de lei. O apoio da população gerou pressão, a mídia entrou no jogo, deu respaldo, e aí o projeto passou. Sem essas condições, ninguém teria aprovado. É uma grande reforma política. Agora, o que seria interessante é aproveitar o clima das redes, da internet, como meio para novas iniciativas populares. Cada cidadão poderia ter uma cidadania eletrônica, com seu título de eleitor, e poderia assinar projetos de lei, tudo pela internet, com auxílio do Tribunal Superior Eleitoral. O eleitor poderia propor um projeto de lei para tal assunto, e todos os que quiserem assinar poderiam fazê-lo pela rede. Poderia até ser um número maior de assinaturas do que é exigido hoje. O processo eletrônico não exigiria a checagem de assinaturas, conforme é feito hoje. É um absurdo você ter que certificar assinatura, não faz mais sentido você ter assinatura em papel e ter que certificar que é um eleitor.

DCI – Então, essas iniciativas populares por meio eletrônico poderiam aumentar o engajamento dos eleitores com a política?

Couto – A meu ver a viabilização da cidadania eletrônica é uma questão crucial porque isso geraria uma pressão constante em termos de iniciativa, acompanhamento. Os eleitores poderiam sugerir leis, receber os alertas do andamento de cada projeto. Isso faria os políticos se mexerem. Também aumentaria a visibilidade do sistema e o engajamento dos eleitores. As pessoas poderiam espalhar pela rede “deputado tal está sentado em cima do projeto e não relata”. É isso que eu estou querendo dizer. Seria um incômodo para os políticos profissionais. Essa insatisfação popular tem que encontrar meios de se viabilizar. E esse é um. Mas ninguém menciona. Ouve-se a frase “reforma política”, que é uma coisa sem muito conteúdo específico. Qual reforma política? Quais sistemas? O termo virou um mantra. “O mundo vai melhor depois da reforma política.” Podemos fazer uma reforma política que piora as coisas. Ela em si não quer dizer nada.

Entrevista publicada no jornal DCI, em 30 de julho de 2013: http://www.dci.com.br/especial/entrevistapara–claudio-goncalves-couto,-politicos-nao-querem-mudar-as-regras-do-jogo-id357364.html

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