“Como avaliar o Minha Casa, Minha Vida?” – continuando o debate

CEPESP  |  28 de agosto de 2020
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Por Tainá Pacheco*

O programa Minha Casa Minha Vida foi eficaz? E como avaliar a eficácia desta política pública? Esse foi o ponto de partida do artigo de Samuel Pessoa, no jornal de Folha de S. Paulo, e as mesmas perguntas motivaram o longo fio que escrevi no Twitter, questionando os argumentos de Pessoa. O colunista, então,  publicou uma réplica no blog do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) e neste artigo eu retomo nosso debate. 

Samuel Pessoa e eu concordamos que o Programa Minha Casa Minha Vida não foi adequado para resolver a questão da habitação popular no Brasil. Discordamos, contudo, em relação à como essa avaliação deve ser  feita e até  que ponto podemos nos apoiar unicamente no déficit habitacional agregado para chegar à conclusão de que o PMCMV não foi eficaz.

Ele propõe olhar e avaliar o PMCMV pelo impacto no déficit habitacional. Se a crítica ao programa é por esse lado, não acredito que sejam “acessórias” as informações sobre a composição do indicador, ainda que Pessoa tenha espaço limitado na coluna. Tal análise é importante, principalmente para o grande público, pois tem implicações na maneira como decide-se fazer políticas públicas.

Minha crítica à sua proposta de fazer uma avaliação definitiva e binária do programa a partir unicamente do déficit habitacional agregado está amparada em dois motivos: o indicador não mostra o sucesso ou o fracasso do programa, e não há uma relação causal clara entre os números do déficit habitacional e os números do PMCMV.

Primeiro, digamos que o PMCMV tivesse de fato reduzido o déficit na mesma magnitude do total de unidades habitacionais construídas. Poderíamos falar que o programa teve êxito e que o dinheiro público foi bem empregado? Não poderíamos, pois como algumas referências citadas no meu longo fio no Twitter mostram, o PMCMV teve efeitos secundários perversos na vida de muitos/as beneficiários. As pessoas poderiam ter uma moradia, mas num lugar que não lhes conferia acesso a oportunidades nem segurança. Os efeitos do PMCMV são heterogêneos, e as avaliações precisam levar isso em consideração.

Segundo, a base do argumento de Pessoa é de que o déficit habitacional não foi alterado pelo PMCMV. Interpreto que dada a variação dos componentes do indicador, conhecidas por ele, a hipótese fundamental por trás de sua argumentação, implícita na frase “Se os aluguéis não caíram é porque algo de muito errado ocorreu no desenho do programa” é de que o PMCMV causou a sobrevalorização do preço dos ativos do mercado de casas populares. Se o desenho do programa fosse correto, então o aumento da oferta no mercado, para uma mesma demanda, deveria ter reduzido o preço dos aluguéis, e não aumentado. Dessa forma, o impacto no déficit habitacional seria duplo, por aumentar o acesso a quem compra e por reduzir o preço para quem aluga. 

É nítido que desde o início do acompanhamento de preços do mercado imobiliário pelo FIPEZAP, em 2008, a valorização das moradias se dá acima da valorização real da renda. Diversas pressões pelo lado da demanda e também pela oferta, não necessariamente relacionadas ao PMCMV, podem ter levado ao aumento de preços, ou a uma escalada maior no aumento de preços, e por uma maior procura por moradias nos últimos anos. Consigo pensar em algumas:

  • Ampliação do crédito imobiliário no período, para além do PMCMV, por conta do bom momento econômico da economia brasileira;
  • Aquisição de imóveis como investimento;
  • Legislação urbana inadequada (por não permitir adensamento em áreas centrais, por exemplo);
  • Pressão por moradias pela mudança dos arranjos familiares e mudança demográfica da população, e não apenas por crescimento populacional;
  • Centros urbanos mais maduros possuem terrenos mais escassos.

Para afirmar que o déficit habitacional não foi alterado pelo PMCMV precisamos nos perguntar: o que teria acontecido nesse mercado tivesse o programa nunca existido? O déficit habitacional seria o mesmo, teria um ligeiro ou grande crescimento/queda? Que variação teriam tido os preços de imóveis (compra e aluguel) nos principais centros urbanos?

A resposta à essas perguntas nos permitiria entender o impacto no PMCMV sobre o déficit habitacional e o preço dos imóveis nos grandes centros urbanos. Para além disso, nos permitiria investigar quais outras políticas afetam a dinâmica do mercado imobiliário das famílias com rendimentos de até três salários mínimos. 

Em dois dias de pesquisa não encontrei nenhum trabalho que buscasse identificar o efeito causal do PMCMV sobre o déficit habitacional e sobre o preço dos imóveis urbanos, apesar de serem pontos de crítica recorrente ao PMCMV. Se Pessoa tiver interesse, podemos pensar em uma estratégia de identificação que nos permita afirmar qual o impacto do PMCMV sobre o déficit habitacional e o preço dos aluguéis urbanos.

Entender essa dinâmica tem uma relevância enorme para o planejamento das cidades. Se a pressão sobre o preço dos aluguéis for explicada muito mais por uma legislação urbana inadequada, então temos que rever nossas legislações; se a pressão sobre os ativos imobiliários é uma pressão por conta dos investimentos, então temos que rever a regulação desse mercado; se o PMCMV foi responsável pelo aumento do preço das moradias, então é preciso pensar num desenho de programa que minimize essa externalidade negativa.

Por isso, discutir os itens que compõem o déficit habitacional e o impacto do PMCMV em cada um desses itens é pensar em uma política habitacional e, no limite, em uma política urbana que traga menos danos à vida das pessoas. Esse é um debate que deve ser levado ao público mais amplo, e não ser tratado como “acessório”.  Propor uma avaliação definitiva do programa a partir de um único indicador agregado reforça uma solução única para o problema habitacional.

Para além do debate sobre o déficit habitacional, gostaria de retomar o ponto de concordância: o Programa Minha Casa Minha Vida não foi adequado para resolver a questão da habitação popular no Brasil. Não tenho dúvidas de que ele representou um avanço, justamente por incluir a parcela mais vulnerável da população no mercado formal de habitação. No entanto, o incentivo à redução de custos por parte das construtoras, que se traduziu em más localizações, baixa qualidade das construções e falta de instalação de serviços básicos, como iluminação, água e esgoto, fez com que a entrega da habitação gerasse custos externos expressivos à essa população.

A discussão sobre a política habitacional precisa se aprofundar no que deu certo no PMCMV e no que deu errado, para que os mesmos erros, herdados desde os projetos do BNH, deixem de ser cometidos e os acertos mantidos. O braço Entidades, por exemplo, é tido como um arranjo com resultados interessantes por diversos/as pesquisadores/as. Para além disso, a política habitacional, precisa ser vista de maneira mais ampla, de forma que a moradia, além de um teto, seja um lugar que forneça acesso a oportunidades (emprego, saúde, lazer, educação..) e segurança às famílias. Mais ampla deve ser, também, a avaliação dos programas e políticas públicas.

*Tainá Pacheco é bacharel em economia pela FEA-USP, mestra em Administração Pública e Governo pela FGV EAESP e pesquisadora do Cepesp

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