Consumo de crack, estigma e marginalização

CEPESP  |  16 de outubro de 2018
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Baixa autoestima pode prejudicar a evolução do tratamento da dependência química

crack jota
Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil

O consumo de crack e de derivados correlatos da pasta de coca fumados representam hoje um dos mais relevantes problemas de saúde pública no país.

Nos últimos anos, diversas alternativas vêm sendo discutidas para responder a essa questão, que envolvem desde medidas de inclusão social e de atendimento em saúde, como os Centros de Atenção Psicossocial e consultórios na rua, versus ações repressivas e de internação compulsória. Mas pouco se discute sobre a discriminação e estigmatização do usuário de drogas e suas consequências.

Pessoas que fazem uso de substâncias costumam ser mais estigmatizadas do que pessoas que apresentam outros transtornos mentais. Isso porque, na maioria das vezes, a dependência química não é entendida como uma questão de saúde, mas como uma escolha pessoal ou uma falha moral.

Geralmente, essas pessoas são responsabilizadas por sua condição sem que haja uma reflexão sobre o que as levaram a sua escolha. Além disso, por vezes, são vistas como perigosas, e por isso deveríamos evitar o convívio social com elas.

Uma das etapas da Pesquisa Nacional sobre Crack, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz, em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, analisou a percepção e o comportamento de usuários de crack em nove capitais, valendo-se de uma metodologia qualitativa; um total de 63 entrevistas em profundidade e grupos focais.

Relatos de preconceito e discriminação por parte da sociedade de um modo geral e de alguns profissionais de saúde foram um dos aspectos mais sensíveis e recorrentes relatados pelos usuários

Inúmeros casos de desrespeito em serviços de saúde e assistência social foram citados, como profissionais que evitaram tocar no usuário de crack, pessoas que se negaram a dar informação por medo ou que usaram expressões degradantes e pejorativas ao se referir ao usuário.

Por exemplo, um usuário entrevistado no Piauí nos fez o seguinte relato:

“Eu saí agora porque eu estava me sentindo muito discriminado, porque eu era de rua (…) Eu percebi, assim, que o grupo não queria escutar. (…) Eu contei para um psicólogo que chamou todos do grupo de ‘merda’, seus ‘merdas’, chamou de ‘bosta’ e aquilo me… aí depois foi falar comigo e eu falei ‘não venho mais!’. Ele pediu para eu conversar com ele. ‘eu não vou conversar com você não, naquele dia você chamou todo mundo de bosta lá’. (…) Lá estava aumentando a minha abstinência e abalando o meu psicológico”

Estudos sugerem que a discriminação pode causar sentimentos de vergonha e desvalorização que dificultam e/ou impedem as pessoas e suas famílias de buscar ajuda para tratamento de saúde e serviços sociais.

A baixa autoestima pode prejudicar a evolução do tratamento da dependência química, e as atitudes negativas dos profissionais de saúde, tais como o uso de linguagem inadequada, dificultam a reinserção do usuário (ou ex-usuário) na sociedade; por exemplo, para conseguir um emprego.

Com isso, vivemos situações paradoxais. Por exemplo, o SUS disponibiliza os medicamentos mais modernos para o tratamento da hepatite C, uma comorbidade comum entre usuários de crack. Entretanto, esses usuários somente terão acesso aos remédios se conseguirem, de fato, acessar o sistema público de saúde.

Um trabalho apresentado no International Symposium on Hepatitis Care in Substance Users (INHSU) 2018 mostra que usuários de drogas que receberam tratamento para hepatite C em clínicas de tratamento da dependência química nos Estados Unidos obtiveram melhor aderência no tratamento para deixar o uso de drogas.

Desta forma, integrar o tratamento da hepatite C, assim como de outras morbidades, à assistência ao dependente químico, pode eliminar barreiras de acesso aos serviços de saúde.

Algumas iniciativas cruciais para amenizar a questão são: sensibilização e capacitação dos profissionais de saúde, particularmente dos que atendem usuários e suas famílias, sobre as consequências da discriminação; promoção de campanhas de prevenção ao uso de drogas de forma a evitar percepções degradantes das pessoas que não querem ou não conseguem, num determinado momento, parar de usá-las.

Principalmente, é imperativo informar a população e os meios de comunicação para evitarem expressões pejorativas que podem aumentar o medo e estigma em relação a essas pessoas.

A experiência de um programa australiano que foi apresentado no INHSU 2018 reporta um caso bem-sucedido, em que foram desenvolvidos cartazes sugerindo trocar o uso de expressões como “adicto” por “pessoas com dependência em…”, “limpo” e “sóbrio” por “pessoas que deixaram de usar drogas”. O uso de linguagem menos ambivalente, mais consciente, pode ser um primeiro passo para reduzir a marginalização e o estigma em relação aos usuários de drogas.

A discriminação dos usuários de crack torna ainda mais difícil o acesso destas pessoas aos serviços de saúde e assistência social. Consequentemente, as ações do governo serão menos efetivas. Se há um interesse da sociedade e do Estado na recuperação dos usuários de drogas, o primeiro desafio é enfrentar o estigma e o preconceito.

Texto originalmente publicado no site Jota.

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ELIZE MASSARD DA FONSECA – doutora em política social pela University of Edinburgh, Reino Unido, e pesquisadora do Centro de Estudos em Política e Economia do Setor Público.

LIDIANE TOLEDO – doutora em epidemiologia pela Escola Nacional de Saúde Pública e pesquisadora associada do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnologia em Saúde (ICICT), ambos da Fiocruz.

FRANCISCO I. BASTOS – médico, doutor em epidemiologia, pesquisador 1A do CNPq. É pesquisador sênior do ICICT/Fiocruz e coordenador da Pesquisa Nacional sobre Crack.

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