A corrupção é percebida como um dos grandes problemas do Brasil. Esta percepção indica que a população vê o Estado como disfuncional e isso não acontece sem motivo. Denúncias e escândalos envolvendo autoridades povoam o noticiário nacional com tanta frequência que é difícil até para o mais alerta dos cidadãos acompanhar e fiscalizar a atividade dos políticos. Apesar da enxurrada de relatos, delações e evidências de crimes envolvendo o mau uso da máquina pública, há uma percepção por parte da sociedade de que ainda existem poucos debates sobre soluções de como acabar com a corrupção.
É nesse contexto que o cientista político e professor da FGV Sérgio Praça escreve seu mais novo livro: Guerra à Corrupção – Lições da Lava Jato.
Neste livro, Sérgio Praça faz uma interessante análise sobre a corrupção no Brasil e como a Operação Lava Jato trouxe inovações na forma de combate a este tipo de crime. O livro é fruto de uma esmerada ação investigativa, feita através de análise documental e entrevistas, e traz como importante contribuição colocar no centro do debate a importante questão de como a corrupção tem sido combatida no Brasil e quais foram os aprendizados da Operação Lava Jato.
O livro é dividido em quatro partes em que são tratados diferentes aspectos da corrupção brasileira. O autor primeiro discute a compra de votos. Na sequência, aborda as licitações e os mecanismos da corrupção. Depois, Sérgio Praça discute os órgãos de controle e conclui seu livro tratando das inovações institucionais das delações premiadas e os acordos de leniência.
Praça começa descrevendo o que seria um dos principais destinos do dinheiro da corrupção no Brasil: financiar as eleições. Este dinheiro seria usado para “comprar” eleitores e cabos eleitorais a fim de obter maior votação. A origem dos recursos seria, em grande parte, de financiadores interessados em vantagens, como benefícios em contratos com o poder público ou a aprovação de leis, relação esta desenvolvida nos capítulos seguintes.
O autor descreve as entranhas da “compra de votos” por uma coligação nas eleições de Roraima, em 2002. A transação descrita envolvia a entrega de dinheiro para o eleitor em troca do voto e do empenho em fazer campanha para os candidatos da coligação. A garantia de que os eleitores entregariam os votos comprados era feita através de mecanismos de coação, como a ameaça de interrupção no provimento de benefícios sociais ou de outros tipos de punições, tornadas possíveis pela capacidade das lideranças locais em identificar os eleitores traidores.
O segundo capítulo, por sua vez, procura descrever a origem da corrupção, ou seja, como os recursos “sujos” ficam disponíveis para os políticos usarem nas suas campanhas. O meio principal escolhido pelo autor é a fraude em licitações de obras de infraestrutura. Por meio da formação de cartéis, superfaturamento de contratos e direcionamento de processos licitatórios, políticos conseguem garantir que recursos cheguem às empresas e estas pagam uma porcentagem aos respectivos partidos.
O capítulo traz muitos exemplos de como as grandes empreiteiras se associaram a burocratas, partidos e políticos para vencerem licitações, obterem contratos bilionários e, em troca, abastecerem os cofres das pessoas e organizações que proporcionaram esse feito. Essa parte do livro é bastante interessante nos detalhes que traz sobre as investigações da Operação Lava Jato e outras realizadas anteriormente. Ela proporciona uma viagem aos bastidores da política nacional como se tivéssemos a possibilidade de acompanhar as negociações como testemunhas oculares. De maneira tímida, o final do capítulo trabalha com o conceito de transparência e fortalecimento das instituições de controle como meios de coibir as fraudes nas licitações.
O livro continua sua análise partindo para os órgãos de controle responsáveis por combater a corrupção. O terceiro capítulo traz uma contextualização histórica e a diferenciação de atribuições dos principais órgãos que assumem o papel de fiscalizar, julgar e reprimir o (mau) uso de recursos públicos. São eles a Controladoria-Geral da União (CGU), o Tribunal de Contas da União (TCU), a Polícia Federal (PF), o Ministério Público (MP) e o Poder Judiciário, representado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
De acordo com a argumentação de Praça, a simples existência desses órgãos não significa muito em termos de combate à corrupção. É preciso que eles tenham autonomia, condições técnico-orçamentárias e integração para que consigam realizar suas atividades com qualidade e eficácia. Diante deste fato, o autor mostra como nossas instituições têm avançado no sentido de prover essas condições de trabalho aos órgãos de controle, citando a aprovação das leis Anticorrupção e de Lavagem de Dinheiro, o aumento no orçamento e no número de operações da Polícia Federal, o respeito à convenção de indicação do mais votado da lista tríplice para o cargo de Procurador-Geral da República; aumento da integração entre órgãos de controle representado pela criação da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Ativos (ENCCLA) e a diminuição de indicações políticas para o STF.
O capítulo é uma boa mistura de boas e más notícias aos leitores ávidos por soluções para a corrupção no Brasil. O autor descreve bem a atuação dos diversos órgãos de controle, suas capacidades e limitações e como vem desenvolvendo seu trabalho ao longo das últimas décadas. Porém, a questão central que perpassa todos os órgãos de controle: “quem controla os controladores?” é apenas discutida marginalmente. Assim, o autor não analisa os possíveis problemas que este fortalecimento dos órgãos de controle pode trazer para a democracia brasileira, como excessiva judicialização da política e falta de accountability destes órgãos.
Apesar da ausência de tal análise, o texto é uma boa referência para quem quer entender melhor o arcabouço institucional de controle do poder público do país.
O último capítulo entra em mais detalhes das investigações da Operação Lava Jato, em especial a instituição da colaboração premiada e dos acordos de leniência. O autor salienta a importância desses instrumentos, principalmente da colaboração premiada para o combate à corrupção, analisando este instrumento à luz da Teoria dos Jogos. Porém, capítulo peca novamente por ter uma carga excessivamente descritiva do andamento das investigações e pouca análise crítica sobre o uso dos novos instrumentos de controle.
Percebe-se uma inclinação por parte de Praça na defesa de regras mais flexíveis com relação à utilização desses artifícios. Quando fala sobre o uso da colaboração premida, o autor flerta com a possibilidade de usar prisões preventivas como instrumento que incentive os acusados a delatarem seus comparsas. Ao abordar estes novos instrumentos, Praça não os problematiza. O autor não discute as consequências negativas de um mau uso da delação premiada, como explicitado na delação de Joesley Batista da JBS. Faltou para o texto discutir os limites da delação premiada e do acordo de leniência.
De maneira geral, o livro acaba sendo algo diferente do que se propôs a ser em suas páginas introdutórias. A promessa inicial é a de uma análise sobre “o começo, meio e fim da corrupção” no Brasil, mas acaba entregando-a parcialmente. Os capítulos iniciais são uma boa introdução às origens dos problemas da corrupção no Brasil, porém Sérgio Praça tropeça ao não fazer uma definição precisa sobre o que é a corrupção, termo este que é vago e impreciso para muitos.
O primeiro capítulo é o melhor em termos de análise da conjuntura e proposição de soluções, mas escorrega em algumas simplificações e interpretações pouco precisas da realidade brasileira. É preciso entender que a definição de compra de votos é algo bastante complexo e não pode estar baseada em conceitos de origem moral. Há ainda uma confusão de conceitos sobre o que seria compra de votos, o que é clientelismo e o que é política pública distributiva. Considerar a forma de eleição de Deputados Federais, em especial a competição intrapartidária fruto do sistema proporcional de lista aberta, como o principal fator para a tal “compra de votos” é ignorar que a maior parte dos recursos para financiamento de campanhas gira em torno das campanhas majoritárias.
No segundo capítulo, falta também uma problematização do outro lado da moeda, ou seja, o papel e os incentivos encontrados pelos corruptores do setor privado e as maneiras existentes de contorna-los. A construção de uma narrativa que coloca os políticos e os partidos como principais algozes do combate à corrupção (e talvez de todo o sistema de controle do país) é uma perspectiva pouco aprofundada e talvez injusta, que tende a contribuir com a criminalização da política e o sentimento de repulsa da população por qualquer ente ou figura pública.
Quando passa a falar mais especificamente sobre o combate à corrupção e sobre a própria Operação Lava Jato, o livro é demasiadamente descritivo e pouco questionador. Parece que as lições que ficaram da Lava Jato são somente positivas, pouco se discute sobre seus erros e problemas.
A parte que descreve as origens, capacidades e atuação dos órgãos de controle é o ponto alto da obra, pois, mesmo dentro de uma narrativa descritiva, consegue apontar alguns problemas e questionar os limites de atuação dos órgãos. O livro ganharia em muito se também contextualizasse a atuação dos órgãos de controle sobre os problemas descritos nos capítulos anteriores, além, é claro, de discutir sobre a legitimidade e responsividade de tais órgãos.
Já o último capítulo decepciona quem tem expectativas de saber quais as “lições da Lava Jato”, pois traz apenas uma descrição de como foram conduzidos alguns dos inúmeros processos de colaboração premiada e uma crítica à tentativa de alteração da regra de leniência para empresas. Esperava-se que houvesse maior reflexão sobre o papel da Operação Lava Jato no controle da corrupção no Brasil (algo mais do que dizer que ela representa um marco e que é de extrema importância).
Por que ela é tão importante? O que pode ameaça-la? Será que só políticos tem interesses em diminuir os poderes dos órgãos de controle? Será que todos os políticos têm esse interesse? O que será daqui para frente? O que deve ser feito para que o controle da corrupção não dependa apenas da lisura e do empenho dos profissionais encarregados dessa tarefa? O que deu certo na Operação Lava Jato? E o que deu errado? O leitor esperava uma elaboração sobre essas perguntas, mas ainda ficam no ar ao fim do livro.
Talvez por se tratar de uma operação ainda em andamento, com desdobramentos ocorrendo no presente momento, a ambição de levantar as lições do combate à corrupção da Operação Lava Jato tenha sido precipitada. No entanto, isto não tira da obra o mérito de ser um importante registro e conter excelentes descrições de como o combate à corrupção evoluiu no Brasil dos últimos anos, sendo uma leitura interessante para entender a realidade brasileira.
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Texto de Ivan Mardegan e Arthur Fisch, pesquisadores assistentes do CEPESP, na FGV em São Paulo.