CEPESP  |  17 de agosto de 2017
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Deputados armados com pistolas e metralhadoras escondidas (mas nem tanto) debaixo de capas de chuva caminham sob o sol inclemente na direção da casa do Legislativo, onde são aguardados pelos oposicionistas. Todos os servidores foram liberados da sessão, mas alguns jornalistas estão presentes. Em análise no dia está o impeachment. Antes mesmo da votação ser iniciada, a guerra começa: os parlamentares entram, tiram as capas e começam a disparar balas nos oposicionistas que, por seu lado, devolvem os ataques com mais tiros. Mesas são viradas para proteção, cadeiras são despedaçadas, deputados são feridos. Três parlamentares e um jornalista foram atingidos e um deputado morreu, alvejado no tórax. Depois de toda essa violência dentro do espaço público, promovida por representantes eleitos, a votação sequer foi iniciada. Foi retomada dias depois, dentro da igreja principal da capital, com proteção militar quando, enfim, o impeachment foi votado – e aprovado.

Parece ficção, mas a história aconteceu exatamente assim.

Foi no Brasil, em setembro de 1957, pleno governo Juscelino Kubistchek, enquanto a Bossa Nova era criada no Rio de Janeiro, a cidade de Brasília era construída e a seleção de futebol estava prestes a conseguir a glória máxima na Copa do Mundo do ano seguinte. O impeachment em votação era do governador de Alagoas, Muniz Falcão, e o relator do processo era o deputado estadual Teotônio Vilela, que vinte e três anos depois ajudaria a fundar o PMDB.

Deputados Teotônio Vilela e Antônio Gomes de Barros (armado), em sessão do impeachment em Alagoas, 1957

Muita coisa mudou no Brasil de lá para cá, por óbvio. Mas a Lei do Impeachment é a mesma que servira de base para o afastamento do então governador alagoano e que provocara o selvagem tiroteio de Maceió. Invocada mais recentemente, há exatamente um ano, pelo Congresso Nacional para sustentar o afastamento da então presidente Dilma Rousseff (PT), a Lei do Impeachment continua aquela mesma sancionada nos anos 1950.

Agora, um ano após o impeachment de Dilma, o país continua a protelar um debate necessário em seu quadro político: como deve ser o marco legal para o afastamento formal do chefe do Executivo? Esta é uma questão importante para conferir estabilidade ao sistema político. De fato, não é fácil encontrar um ponto ótimo entre a necessidade de dispor de instrumentos para afastar um presidente ou governador eleito e a importância de manter o sistema funcionando, sem que o impeachment paralise completamente o país e, em particular, a administração pública. Mas atrasar o debate não torna o quadro melhor.

Por que a Lei do Impeachment é do jeito que ela é?

A lei surgiu do enorme esforço do deputado federal Raul Pilla, gaúcho e filiado ao Partido Libertador, no imediato pós-Segunda Guerra Mundial. Autor da Emenda Constitucional que transformaria o regime presidencialista em parlamentarista, Pilla era um ferrenho opositor de Getúlio Vargas. A emenda parlamentarista quase foi aprovada em 1949, mas saiu derrotada. Ao perceber, no entanto, que tinha boa parte do Congresso com ele, o parlamentar bancou então a Lei do Impeachment, que tramitou entre 1948 e 1949, e foi aprovada no último ano do mandato do presidente Eurico Gaspar Dutra, em abril de 1950. É ela, a Lei 1.079, que continua em vigor até hoje.

Foi com base na Lei 1.079 que os opositores alagoanos, liderados por Teotônio, afastaram o governador sete anos mais tarde, após o tiroteio fatal. Foi também com base nela que o Congresso Nacional afastou Fernando Collor em 1992, dois anos depois de ter sido eleito presidente da República. Foi também a Lei 1.079 que fundamentou o relatório do senador mineiro Antônio Anastasia (PSDB) aprovado há um ano pelo Senado Federal, que resultou no afastamento da presidente Dilma Rousseff, reeleita em 2014.

A Lei 1.079 foi feita de forma abrangente, propositalmente, de modo a permitir que o Legislativo pudesse afastar o chefe do Executivo e impedir a repetição da sangrenta ditadura do Estado Novo, que Vargas liderou de 1937 e 1945. Em seu artigo 4º são elencados os pontos, todos abrangentes, que ditam sobre os “crimes de responsabilidade” que sustentariam o afastamento do presidente. Entre eles estão claros ecos do Estado Novo, como o atentado ao “livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados” e também “o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais”. Lá também estão atentados contra a “probidade na administração”, invocado no impeachment de Collor, e contra “a lei orçamentária”, base do afastamento de Dilma.

Mas na primeira vez que a Lei do Impeachment serviu de base para um processo, a história não terminou com o afastamento do chefe do Executivo. Logo depois de sua sanção, ainda em 1950, Getúlio Vargas voltou à Presidência (desta vez pelo voto, ao vencer as eleições realizadas no final daquele ano). Assumiu em 1951 e imediatamente começou um mandato instável, com forte oposição. Apenas três anos depois, um processo de impeachment foi aberto contra Vargas, em junho de 1954, tendo como fundamento a Lei 1.079. Foi a primeira prova da (então) nova lei. Um acirrado debate foi promovido no Rio de Janeiro, que era a capital federal. O presidente colocou seu ministro da Justiça para defende-lo politicamente no Congresso. Era o mineiro Tancredo Neves. A votação foi tensa: contou com troca de farpas acirradas entre os parlamentares, incluindo o líder do governo, Gustavo Capanema, e opositores. Mas terminou com vitória de Vargas, que, apesar das dificuldades de governo e tendo sua legitimidade questionada pela imprensa e por parcela crescente da população, ainda detinha soberania sobre o Congresso. O impeachment não passou, mas o país entrou no mês seguinte, julho, paralisado. A crise política pioraria ainda mais em agosto quando, no dia 24, Vargas cometeria o suicídio.

Enterro de Getúlio Vargas, com João Goulart e Tancredo Neves à frente, São Borja (RS), agosto de 1954. (CPDOC-FGV)

Três anos mais tarde, em 1957, a Lei 1.079 ressurgiria, em Alagoas, na história recontada no início deste texto. Tinha o então deputado Teotônio Vilela como relator e uma situação de calamidade local. O tiroteio ocorreu numa sexta-feira 13, em setembro, e o impeachment acabou aprovado somente dias depois. Apesar disso, o governador afastado moveu toda a sua força para os tribunais, revertendo a decisão dos deputados, e voltando ao poder em fevereiro de 1958, aumentando o drama no Estado. Apenas cinco anos mais tarde, parlamentares alagoanos voltariam a se envolver com armas dentro de um espaço público: os senadores Arnon de Mello (pai de Fernando Collor) e Silvestre Péricles trocaram tiros dentro do Senado Federal, já em Brasília, e outro senador, o acreano José Kairala, que estava em sua última sessão, foi morto, atingido por uma bala perdida.

A Lei do Impeachment hoje

O que é possível depreender da análise histórica? Fica claro que a Lei 1.079 impõe ao chefe do Executivo que tenha controle político sobre o Legislativo. Pode até, no limite, não ter o apoio popular, como ocorre com o atual presidente da República, Michel Temer (PMDB), que assumiu formalmente o cargo há um ano, porque era o vice-presidente de Dilma. Mesmo com baixos índices de aprovação (e vivendo uma espécie de “sarneytização”), Temer ainda detêm relativo poder sobre o Congresso, o que o protege, por enquanto, da queda – seja por meio da denúncia criminal feita pela Procuradoria Geral da República (PGR) seja até de um pedido de impeachment, como o formulado por parlamentares da oposição em maio, depois da revelação das escutas do empresário Joesley Batista e o presidente da República.

Situações semelhantes – de baixa popularidade, porém de controle político sobre o Congresso –  ocorreram com Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que mesmo em seus momentos de menor popularidade (em 1999, após a crise do câmbio, e em 2005, após o mensalão, respectivamente), ainda detinham controle sobre o Congresso, o que afastou completamente a chance de a Lei 1.079 ser invocada. Foi assim também com Dilma, durante seu primeiro mandato (2011-2014), e com José Sarney (1985-1990).

São diversos os debates que a sociedade precisa fazer, frente à pior recessão econômica já registrada, às revelações das relações entre agentes públicos e empresários por conta de operações como a Lava Jato e, no meio de tudo isso, tendo de lidar com as restrições fiscais do setor público. Por certo, discutir a Lei do Impeachment também deveria estar na ordem do dia, no âmbito da reforma política agora tocada no Congresso Nacional.

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Texto de João Villaverde, pesquisador assistente do CEPESP, na FGV em São Paulo. 

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