Tornou-se platitude afirmar que as reformas políticas são um oxímoro: em uma democracia elas não deveriam acontecer nunca. Já que devem ser aprovadas por parlamentares eleitos sob as regras atuais, por que eles as mudariam pondo em risco sua própria sorte? Mas fato é que reformas acontecem.
A literatura de ciência política sustenta que as reformas só acontecem quando há um choque exógeno que altera o equilíbrio existente. Subjacente ao choque está a ideia de um “cálculo intertemporal”: o ator tem uma posição dominante no presente mas espera perdê-la no futuro. O choque ocorre, tipicamente, através de quatro mecanismos.
O primeiro é devido à entrada de um novo ator no jogo. O maior exemplo de um choque desse tipo foi a difusão do sufrágio universal no início do século XX . A perspectiva das elites incumbentes de vir a serem desalojadas do poder pelos partidos socialistas emergentes levou-as a implementar sistemas de representação proporcional. Ao contrário do voto majoritário (distritos uninominais) marcado pela lógica do winner takes all, a representação proporcional permitiria que os perdedores permanecem no jogo mesmo se deixassem de ser hegemônicos Em países nos quais a elite política estava dividida, a ameaça de novos partidos causou o abandono da regra majoritária então vigente nas democracias emergentes. Mas países com elites coesas, como a Inglaterra, mantiveram este sistema. Ou seja, a mudança só ocorre quando a ameaça é crível, forte e a elite está fraturada por clivagens religiosas, étnicas etc.
O segundo mecanismo são casos de choques abruptos devido à mudança de regime. Obviamente o caso mais dramático é quando a elite no poder é desalojada e sua ascensão é associada à regra eleitoral. Esse foi o caso da rejeição da representação proporcional após a derrocada do nazismo, ensejando a criação do sistema misto na Alemanha em 1949. O mesmo ocorreu no Brasil em 1932.
O terceiro mecanismo é similar: o choque afeta o equilíbrio do jogo institucional devido ao enfraquecimento repentino de um dos atores. O Caracazo na Venezuela e a operação mani pulite na Itália tiveram um efeito devastador nos principais partidos políticos –os italianos Partito Socialista e Democracia Cristiana, e o venezuelano Acción Democrática, por outro. Em ambos os casos, os chefes do Executivo foram defenestrados ou impeached. Em ambos os casos, a oposição patrocinou a mudança.
O fato de o distritão ter entrado na agenda e ter sido derrotado não é totalmente consistente com essa explicação, mas há elementos nela que ajudam a pensar o caso. A oposição não se beneficiaria, de forma inequívoca, pela janela de oportunidade criada. Dessa forma, não há uma contra-agenda a ser implementada porque os demais partidos grandes não obteriam claras vantagens com a mudança. O distritão não afetaria dramaticamente o PT. A proposta do governo – a lista fechada – foi fragorosamente derrotada. Isso é consistente com a teoria.
A tempestade perfeita que assolou o governo Dilma levou a um enfraquecimento inédito do Executivo. A agenda do governo é business as usual: o anúncio geral de uma intenção reformista seguido de inação. O que surpreende não é o desfecho da proposta do distritão mas o fato de que ela foi posta em votação. Isso só pode ser compreendido pelo fato curioso de que o governo perdeu o poder de agenda mas não sofreu impeachment. Ele ainda permanece com o controle do poder Executivo e está refém da agenda do Presidente da Câmara, cujas preferências são claras: ganhos reputacionais por aprovar uma reforma política (qualquer que seja) e inviabilizar partidos pequenos.
Mas por que a proposta foi derrotada? Para entender melhor vale lembrar o quarto mecanismo analisado na literatura: as pressões incrementais pró – reformas inclusivas, que baixem o custo da representação. Não se trata aqui de grandes choques mas incentivos incrementais e cumulativos resultantes da complexificação e pluralismo crescente das sociedades democráticas. Novos grupos tendem a surgir : imigrantes, minorias de todo o tipo como ambientalistas, religiosas, etc. Essas novas bases eleitorais têm provocado uma elevação geral da incerteza política na competição eleitoral. Os atores têm assim incentivos para adotar regras mais inclusivas de modo incremental, porque essas garantem sua sobrevivência mesmo quando estejam tendendo a perder votos e poder. Em outras palavras eles estão comprando um seguro político face à incerteza. Isso explica por que a vasta maioria das reformas eleitorais nos últimos 120 anos têm ocorrido pela mudança de regras majoritárias para sistemas mistos ou proporcionais, e não na direção contrária.
Durante a discussão da proposta do distritão, os atores envolvidos – parlamentares, mídia e opinião pública– assumiram a ideia de que a reforma tem caráter majoritário: teria viés pró-partido grande, levaria à diminuição do número de partidos e favoreceria campeões de voto. Para o parlamentar médi,o a taxa de incerteza associada a mudança é muito elevada. A aprovação da reforma iria de encontro ao argumento que prevê reformas apenas na direção majoritário para proporcional ou misto.
Mas o mote da discussão foi os votos desperdiçados e a incerteza gerada. Para além de seu real impacto, o que importa é como a reforma é percebida: como uma lógica majoritária. Embora prima facie tenha característica majoritária, seu impacto é proporcionalista devido ao fato de os estados terem número de representantes de uma magnitude sem paralelo no mundo. Mas o que interessa é o benefício esperado com a reforma para os atores. Os parlamentares optaram por um modelo cujos resultados são conhecidos e lhes beneficiam a um modelo cujos resultados são incertos – pouquíssimos países adotaram o distritão – e que eventualmente ainda poriam em risco sua sobrevivência.