Pandemia aprofunda desigualdade social- solução exige foco em políticas para público específico

CEPESP  |  23 de outubro de 2020
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Seja na saúde, na educação, na economia ou na violência- doméstica e nas ruas – está claro em estudos de diferentes áreas que os principais impactados pelos cerca de seis meses de pandemia na América Latina têm perfil: as populações periféricas, negros e indígenas. O fortalecimento do SUS e o investimento em políticas voltadas a públicos específicos foram enfatizados como as principais soluções para o problema da intensificação das desigualdades sociais decorrente da crise atual.

O jornal digital Nexo promoveu esta semana, como parte de uma série especial de webinars, o encontro que discutiu a exposição das desigualdades sociais preexistentes que a pandemia trouxe à tona, mas também o seu aprofundamento a curto, médio e longo prazo e os caminhos para uma sociedade mais protegida de suas consequências. 

A cientista política Lorena Barberia, professora e pesquisadora da USP e do FGV Cepesp e coordenadora científica da Rede de Pesquisa Solidária, foi uma das três especialistas convidadas para o evento. Barberia disse que o contexto anterior dos países magnifica as consequências da pandemia e que faltou, e ainda falta, no Brasil coerência e centralização nas políticas públicas. 

“Estamos em outubro!  Não é o primeiro mês da pandemia, já se sabia em fevereiro quem seriam os mais afetados dentro do país e tivemos mais de 6 meses para tratar desses desafios”, ressaltou a pesquisadora, reforçando a urgência de ações governamentais preventivas que garantam o controle da pandemia e a proteção específica dos grupos mais vulneráveis. Entre as ações preventivas, Barberia destacou o uso de testes diagnósticos do tipo RT-PCR, apesar de seu custo ser considerado alto. 

Emanuelle Góes, doutora em saúde pública que se dedica à relação entre saúde e racismo, também comentou sobre a fragmentação e ausência de uma ação marcante e unificada do Estado na resposta à crise causada pela doença. Góes explicou que as iniciativas coordenadas, idealizadas e aplicadas de forma independente por comunidades carentes de assistência médica e social veio da consciência sobre a ausência do Estado nessas regiões. “A comunidade agiu porque sabia que se não agisse iria morrer”.

 Góes também lembrou do aumento de feminicídios no Brasil e Argentina durante a pandemia e da violência policial contra negros mascarados que se encontram em posição obrigatória de atuar na rua, em empregos precarizados e “uberizados”.  A associação do uso da máscara alimentando ações racistas é corroborada por uma pesquisa americana em andamento e discutida pela agência de jornalismo Alma Preta, conforme citou a pesquisadora. 

A defesa do SUS no combate à desigualdade 

O aumento das desigualdades sociais causado pela pandemia de Covid-19, “é um retrocesso de décadas de conquistas sociais” em áreas como saúde e educação, afirmou a especialista em demografia de doenças infecciosas e pesquisadora de Harvard, Márcia Castro, terceira convidada para a mesa do evento. A pesquisadora citou a estimativa da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), organismo ligado à ONU, de que o PIB per capita de países da América Latina poderá se equivaler ao de dez anos atrás com o impacto da pandemia, e que os níveis de pobreza poderão retroceder ainda mais.

Castro afirmou ainda que a expectativa de vida dos brasileiros irá provavelmente sofrer impactos nos próximos anos, e citou como exemplo um estudo realizado recentemente nos Estados Unidos que diz que a expectativa de vida no país terá uma diferença aumentada para 30% entre brancos e negros, por causa da Covid.

Para a pesquisadora, a melhor ferramenta para combater esses dados e projeções, e que foi subutilizada este ano, é o SUS, o Sistema Ùnico de Saúde brasileiro. “Só que para isso é prioridade máxima na agenda fortalecê-lo agora(…) sem o SUS simplesmente não tem como reverter essa desigualdade”, comenta Castro.

Um ponto em comum nas falas das três especialistas é o da necessidade de estratégias de superação das desigualdades regionais e étnico-raciais através de políticas públicas destinadas a públicos específicos, especialmente dentro do SUS. Em uma sociedade desigual, “políticas que são para todos chegam primeiro aos que menos precisam ”, argumenta Márcia Castro, simbolizando que a falta de foco das ações nas populações mais vulneráveis implica que tais ações acabam não chegando aos que mais as necessitam. 

Esses grupos mais vulneráveis, como lembrou Emanuelle Góes, não são uma parcela minoritária da população. “A gente ainda discute a população negra, parda e povos tradicionais como minoria, quando, em sua soma, não o são”, declarou Góes, dentro do debate de medidas universalistas não darem conta de violências estruturais e demandas da sociedade latino-americana. 

Desinformação, envolvimento da população e os “3 Cs” 

Outro ponto em comum durante o evento foi o da importância da clareza nas mensagens de órgãos e instituições governamentais para a população e o combate à desinformação. Segundo Lorena Barberia,  a falta de coerência e a fragmentação das políticas adotadas, combinadas  com os conflitos entre o governo federal e os governos subnacionais, acabaram produzindo uma confusão generalizada na população sobre as melhores medidas profiláticas durante os primeiros meses de pandemia, que tende a continuar nos próximos. “A clareza na mensagem impacta diretamente na adesão às  políticas públicas”, concluiu.

Márcia Castro complementou que políticas de campanhas em massa de comunicação da saúde, conscientização e vacinação já foram exemplo de qualidade no Brasil, o que não é o caso com o atual governo. Como exemplo, lembrou que o índice de confiança em imunizações, que era em torno de 80% em 2015, caiu para 56% em 2019.

Por fim,  as três convidadas marcaram a importância do envolvimento da sociedade e pressão sobre lideranças governamentais para que o buraco da desigualdade não aumente ainda mais nos próximos anos. “O SUS começou como um movimento popular, não foi iniciativa original do governo”, lembra Castro.

Sobre a impossibilidade de se manter para os próximos meses um quadro de medidas de mitigação de impactos, como o auxílio emergencial e programas estaduais e municipais, Lorena Barberia comentou que o único modo de frear o aumento das desigualdades no campo das políticas públicas envolve que elas sejam “três 3 C’s”:  coerentes, claras e coordenadas. Pois, segundo a pesquisadora, é trágico começar a falar sobre os números da desigualdade apenas após serem declarados os óbitos.

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