Pandemia de Covid-19 expõe vulnerabilidades estruturais da população em situação de rua

CEPESP  |  13 de abril de 2020
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Por Juliana Reimberg*

O cenário que o Brasil e outros tantos países no mundo estão vivenciando diante da pandemia de covid-19 colocou em pauta questões de saúde básica e de bem-estar social, que são direitos fundamentais assegurados no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos desde 1948. A pandemia escancarou carências que existem nas políticas públicas de atendimento à população em vulnerabilidade que não são novas no Brasil. Pontos que hoje são destaques nas manchetes dos jornais – como a falta do acesso universal ao saneamento básico – são fragilidades apontadas há anos por movimentos sociais, grupos de voluntariado e pesquisadores. Apesar do contexto, os desafios no combate e prevenção ao coronavírus entre os mais vulneráveis são problemas estruturais, e não conjunturais.

No caso da população em situação de rua, a pandemia é um agravante aos desafios cotidianos que este grupo sofre. Não há dados oficiais que indiquem quantas pessoas estão em situação de rua no Brasil, porém algumas pesquisas permitem estimar a dimensão deste problema. No Cadastro Único, em março de 2019, 119.636 famílias estavam registradas nesta situação. Já na cidade de São Paulo, o Censo PopRua de 2019 contabilizou 24.344 pessoas, entre as quais 11.693 estavam acolhidas em centros da Assistência Social e 12.651 viviam no logradouro público. Esta fragilidade de dados gera distorções na formulação e implementação de políticas públicas, sendo fundamental em uma pandemia que as respostas das autoridades governamentais sejam rápidas e assertivas. No mesmo sentido, até o momento, não há uma contabilização do número de pessoas em situação de rua com suspeita ou confirmação de contaminação pela covid-19.

Entre os principais desafios vivenciados por este grupo, principalmente neste momento, está a falta de acesso à higiene básica, sobretudo para as pessoas que não estão nos serviços de acolhimento institucional. O fechamento de parques, shoppings, bibliotecas e outros locais de atendimento ao público limitou o acesso destas pessoas a fontes de água potável e sabão. Em São Paulo, estima-se que há onze pontos de água potável em espaços públicos abertos, sendo esta uma quantidade baixíssima se pensarmos que a cidade possui 1.521km2 de extensão e abriga mais de 12 milhões de pessoas.

Censo 2019: mais de 24 mil pessoas em situação de rua na cidade de SP/ foto Jorge Araujo/Fotos Publicas

Outra consequência da pandemia sentida pela população em situação de rua é a redução da renda. Grande parte dessas pessoas estão entre os milhões de trabalhadores informais prejudicados pela adoção de medidas de distanciamento social. É comum que homens e mulheres em situação de rua façam pequenos trabalhos como entrega de panfletos em farol, vigia de carros estacionados na rua, atividades de artesanato para comercialização, entre outras atividades. O valor recebido por trabalhos é uma das principais fontes de renda dessas pessoas, geralmente complementada pelo Bolsa Família ou Benefício da Prestação Continuada. Diante da recomendação para a população permanecer em casa, as atividades que estas pessoas faziam perderam a clientela. O mesmo raciocínio, neste ponto, é aplicável àqueles que não trabalham, mas dependem da mendicância para sobreviver. Sem pessoas circulando nas ruas, não há a quem pedir um “trocado” ou um marmitex para não passar fome.

Os que não estão nas ruas, mas encontram-se nos centros de acolhida, apesar de receberem refeições e terem acesso a banheiros, também experimentam grandes desafios neste período. Um primeiro ponto é que os equipamentos de acolhida exclusivos para idosos ou pessoas convalescentes não são suficientes para atender à demanda. Consequentemente, é comum conviverem pessoas no grupo de risco junto com pessoas em idade e condições de saúde que a princípio não apresentam grande probabilidade de sofrerem complicações com a covid-19. Esta interação aumenta as chances das pessoas no grupo de risco serem contaminadas. Ademais, por estes centros de acolhida serem locais de alta densidade humana – abrigando entre 50 a 200 pessoas nas grandes cidades – há um grande risco destes espaços tornarem-se clusters de contaminação.

Deve-se também mencionar a vulnerabilidade que este contexto impõe aos trabalhadores que atuam nos serviços da assistência social atendendo a população em situação de rua. Denominados na literatura de políticas públicas como “burocratas de nível de rua”¹, exatamente por serem servidores atuando pelo Estado na ponta da implementação de políticas, estes funcionários precisam ter acesso a medidas de proteção – como máscaras, luvas e álcool em gel. Garantir a proteção destes agentes que prestam um serviço essencial é fundamental para a segurança não só deles e de seus familiares, mas também, dos usuários dos serviços socioassistenciais.

A partir destes desafios, surge o questionamento sobre  as medidas que os governos têm adotado para responder a estes problemas. Primeiro, destaca-se a abertura de centros emergenciais para acolherem pessoas que vivem nas ruas. Estádios esportivos, autódromos, estruturas do Sesc, entre outros locais, estão sendo utilizados por várias cidades para acolherem esta população. Algumas, inclusive, estão destinando centros específicos para aqueles que estão contaminados e outros para os estão com suspeita de terem contraído o vírus. Contudo, como já discutido, apenas o serviço de acolhimento não é suficiente para reduzir a vulnerabilidade desta população frente à pandemia. Além disso,  a quantidade de vagas emergenciais também não atende toda demanda.

No caso de São Paulo, cidade com o maior número de infectados pelo covid-19, foram abertas até o momento 650 novas vagas, o que atende somente cerca de 5% da população que vive hoje nas ruas. Para os que já estavam acolhidos em serviços socioassistenciais, a prefeitura transformou as vagas que eram de meio período (16h) em vagas de 24h, de modo que estas pessoas possam ficar integralmente nos centros de acolhida. A cidade também contratou um novo funcionário para cada 50 pessoas acolhidas, aumentando  a capacidade de atendimento.

Em relação ao auxílio financeiro, a principal resposta existente no momento é a Renda Básica Emergencial, benefício de 600 reais que será pago por três meses pelo governo federal. Para ser contemplado com este auxílio é preciso estar registrado no CadÚnico ou realizar um cadastro no site ou aplicativo da Caixa Econômica Federal, não podendo este valor ser acumulado com o benefício do Bolsa Família. Como implementar esta política entre a população em situação de rua? Como estas informações chegarão até elas? Como quem está na rua, sem acesso à internet, fará este cadastro? Será que todas as pessoas têm as informações necessárias – como o número de celular e CPF regular – para preencher o cadastro? Apenas estas perguntas já ilustram que existem desafios para além de Brasília para que a população em situação de rua seja contemplada com este auxílio emergencial.

Diante dos problemas que a pandemia apresenta à população em situação de rua, alguns deputados apresentaram projetos de lei propondo políticas emergenciais específicas para este grupo. Este é o caso do PL nº 156/20, apresentado na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo pela deputada Erica Malunguinho (PSOL), que propõe um Plano Intersetorial Emergencial para a PopRua. Além de reforçar as medidas de higiene e prevenção, o plano veda a adoção de medidas de internação compulsória e proíbe que os pertences desta população sejam retirados por agentes governamentais. No mesmo sentido, no Congresso Nacional também aguardam votação projetos de lei² que preveem políticas como auxílios financeiros emergenciais,  obrigatoriedade dos atendimentos de saúde e de assistência social para aqueles que não tem comprovante de residência, aumento dos pontos de água potável nas cidades, ampliação do número de vagas de acolhimento e, excepcionalmente, uso de determinados espaços privados para isolamento de pessoas.

Estas iniciativas legislativas avançam nas medidas de proteção à população em situação de rua durante a pandemia, ao considerarem as especificidades deste público e proporem políticas centradas nas necessidades desta população. Porém, é preciso ter consciência de que estes PLs foram apresentados há semanas, por deputados da oposição ao governo, e, até o momento, não foram votados. A situação de vulnerabilidade em que estas pessoas se encontram exige respostas urgentes, que podem não ser compatíveis com o tempo dos processos legislativos.

A pandemia de covid-19 evidenciou fragilidades que afetam cotidianamente os mais vulneráveis há muitos anos. Uma das críticas que se pode fazer às políticas de assistência social no Brasil para a população em situação de rua é que ela olha prioritariamente para os indivíduos que estão abrigados nos centros de acolhida, deixando desamparados aqueles que vivem nas ruas. Nesse sentido, o contexto atual evidencia que, mais do que nunca, é o momento de pensarmos nos indivíduos que estão fora da rede de acolhimento socioassistencial, uma vez que somente a criação de vagas emergenciais não protegerá essas pessoas da covid-19. Embora a face estrutural dos problemas nas políticas sociais no Brasil tenha ganho destaque nesta conjuntura, a busca por soluções perpassa o planejamento de políticas que não sejam apenas momentâneas ou emergenciais, mas que de fato visem reduzir vulnerabilidades e trazer mais justiça para os que estão vivendo nas ruas.

Referências:

MINISTÉRIO DA CIDADANIA. População em Situação de Rua no Brasil: o que os dados revelam?. 2019. Disponível aqui. 

NATALINO, Marco A. C. Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil. Texto para Discussão, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Brasília. 2016. Disponível aqui

¹ Ver Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços públicos. Michael Lispky; tradutor, Arthur Eduardo Moura de Cunha. Brasília: Enap, 2019. Disponível neste link

² Ver PLs nº 707/20, 788/20, 1694/20 e 989/2020

* Juliana Reimberg é mestranda em Ciência Política na USP, graduanda em Direito na FGV e pesquisadora no Cepesp/FGV. 

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