Partidos aplicaram novas regras de financiamento eleitoral para as mulheres?

CEPESP  |  27 de fevereiro de 2019
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Jota- Mulheres
Crédito: Roberto Jayme/Ascom/TSE

Por Catarina Barbieri, Ivan Mardegan e Luciana Ramos*

No Brasil, seria difícil encontrar duas eleições consecutivas com as mesmas normas de financiamento eleitoral. Poucas das diversas mudanças, no entanto, tiveram como alvo os obstáculos que candidaturas femininas enfrentam para competir de igual para igual com os homens. Tampouco foram suficientes para garantir representatividade equitativa entre os gêneros na política, especialmente na Câmara dos Deputados.

Para aumentar a participação de mulheres na política, o Brasil adotou cotas de gênero para cargos proporcionais em 1997. Mas, foi apenas com a reforma eleitoral de 2009 (Lei 12.034/2009 que alterou a redação do art. 10, § 3º da Lei 9.504/1997 – Lei das Eleições), que passou a ser obrigatório preencher o número total de vagas nas listas com o mínimo de 30% de candidaturas de mulheres.

A partir daquele ano, o TSE também passou a ser mais rigoroso na fiscalização do cumprimento da regra. Porém, a lei demorou a “pegar”. Só em 2018, duas décadas depois, superou-se o mínimo legal, chegando a 31,7% de candidaturas femininas para o cargo de Deputado Federal.

Tão importante quanto o cumprimento das cotas é a destinação de recursos para as candidatas. Costuma haver uma correlação entre recursos financeiros e desempenho eleitoral: sem dinheiro não se ganha eleição. Por isso, reformas na legislação de financiamento eleitoral têm sido foco dos que defendem melhores condições de disputa para as mulheres.  

Como há conflito de interesses entre o status quo da classe política para a qual aumentar a quantidade de recursos destinados às mulheres nunca foi prioridade e forças emergentes que buscam alterar as condições de disputa, o poder Judiciário tem surgido como um dos principais propulsores de mudanças. Nos últimos anos, reformas de impacto no financiamento eleitoral vieram pela via judicial: além da decisão do STF, na ADI 4650 que proibiu a doação de campanhas eleitorais por pessoas jurídicas responsável por suscitar debates sobre novas formas de financiamento eleitoral, há outros dois entendimentos de especial relevo que influenciaram  diretamente o uso de recursos eleitorais em campanhas de candidatas.

Em março do ano passado, o STF julgou a ADI 5617, referente ao uso do Fundo Partidário. Por maioria de votos, considerou inconstitucional o artigo 9º da Lei 13.165/2015, que previa que, do montante do Fundo Partidário destinado às campanhas eleitorais, os partidos reservariam no mínimo 5% e no máximo 15% para suas candidatas, incluindo os 5% já previstos no inciso V, do art. 44 da Lei 9.096/1995 relativos à criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres dentro dos partidos.

O STF decidiu, também por maioria de votos, dar interpretação conforme à Constituição ao art. 9º da Lei 13.165/2015, fazendo com que pelo menos 30% do montante do Fundo Partidário destinado a campanhas eleitorais seja alocado por cada partido ou coligação para candidatas a cargos em eleições majoritárias ou proporcionais, sendo que o percentual de recursos deve crescer proporcionalmente ao aumento do número de candidaturas femininas.

Na esteira desta importante decisão, um grupo de senadoras e deputadas federais interpelou o TSE por meio da Consulta nº 0600252-18.2018.6.00.0000 para indagar se a ratio decidendi da ADI 5617 também se aplicaria à distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), previsto nos artigos 16-C e 16-D, da Lei das Eleições, e ao tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão, regulamentada no art. 47 e seguintes do mesmo diploma legal.

Em um posicionamento que reitera a função da Justiça Eleitoral como assegurador do cumprimento da lei de cotas de gênero, a Relatora, Ministra Rosa Weber, concluiu que os recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV devem observar o percentual mínimo de 30% por gênero, crescendo na proporção do crescimento das candidaturas. Mais uma vez, esses critérios valem tanto para as candidatas aos cargos majoritários quanto proporcionais, diferentemente do que preconiza a lei de cotas, que se aplica apenas aos cargos de deputado federal, estadual, distrital e vereador.

Diante desses dois entendimentos, os partidos fizeram suas alocações estratégicas de recursos e agora cabe à Justiça Eleitoral fiscalizar seu cumprimento, o que não ocorrerá sem transpor alguns desafios.

O primeiro diz respeito ao modo como os partidos definiram a aplicação dos recursos de acordo com as regras impostas. As decisões judiciais usaram como referência o percentual de 30% previsto na lei de cotas aplicável às eleições proporcionais, mas abriram a possibilidade de uso dos recursos para proporcionais e majoritárias, sem estipular alocação específica entre esses tipos de candidaturas ou entre os níveis estadual e federal. Dada a ambiguidade, alguns partidos optaram por destinar os recursos para mulheres concorrendo a eleições proporcionais, outros a cargos majoritários, outros ainda preferiram dividir entre os dois. Pouco ou nada disseram sobre a distribuição entre os níveis estadual e federal.

Além disso, no caso do Fundo Partidário, não ficou claro como os partidos deveriam contabilizar os 30% quando fizessem parte de coligações, inclusive diante da possibilidade de um mesmo partido estar em uma coligação no nível estadual e em outra no nível federal. Ou seja, seguir o caminho do dinheiro ou o cumprimento do percentual mínimo de 30% do tempo de rádio e TV dentro da atual sistemática demandará um especial esforço da Justiça Eleitoral.

No caso do FEFC que totalizou, em 2018, mais de 1,7 bilhão de reais o repasse é feito diretamente aos partidos, sem envolver as coligações. Seguir o caminho do dinheiro é menos complexo e nos dá importantes pistas sobre a racionalidade por detrás da alocação de recursos pelos líderes partidários e a maneira como as agremiações interpretaram as decisões judiciais.

Para verificar o cumprimento das novas regras do FEFC, o requisito mínimo estabelecido pelo TSE aos partidos foi a obrigatoriedade de apresentar uma resolução expondo o modo de distribuição dos recursos. A resolução do TSE não previa análise de mérito. A única condicionante era indicar que gastariam o mínimo de 30% com suas candidatas. Todos os partidos que disseram que o fariam tiveram suas resoluções aprovadas.

Assim, dos 34 partidos que usaram o dinheiro do fundo, 7 (AVANTE, PATRI, PMN, PPS, PROS, PRP, PTC) indicaram que aplicariam os recursos somente em candidatas às eleições proporcionais ou prioritariamente nelas. Apenas 1 partido (PSTU) informou que aplicaria os recursos apenas em candidatas majoritárias. Dez partidos (MDB, PC do B, PCB, PCO, PMB, PODE, PP, PSC, PTB, PRTB) indicaram que fariam uma mescla entre proporcionais e majoritárias; e os demais, um número significativo de 16 partidos (DC, DEM, PDT, PHS, PPL, PR, PRB, PSB, PSD, PSDB, PSL, PSOL, PT, PV, REDE, SDD) informaram que cumpririam os 30% sem apresentar qualquer indicação de como se daria a divisão entre candidatas. O NOVO foi o único partido que optou por não receber recursos do FEFC e, portanto, não houve repasses para mulheres ou homens.

Essas resoluções, no entanto, não são garantia de que o partido efetivamente cumpriu com o prometido à Justiça Eleitoral. Dentre os que optaram por receber os recursos, chama a atenção que, na ausência de punições ao não cumprimento das resoluções e de maior detalhamento por parte da Justiça Eleitoral sobre a distribuição dos recursos, alguns partidos simplesmente apostaram na tese de que seria possível não apenas destinar os recursos para candidatas proporcionais e majoritárias cabeça de chapa, mas também para vices e suplentes, algumas destas inclusive concorrendo em chapas lideradas por um homem.

Foram 12 legendas (35,3%), dentre as quais as principais forças eleitorais dos últimos anos  que adotaram esta estratégia. Estes partidos só cumpriram a cota de destinação de recursos do FEFC para candidaturas femininas se, no cálculo, considerarmos válido incluir as candidaturas proporcionais, as candidatas cabeças de chapa em eleições majoritárias, as vices e suplentes.

Também 12 (35,3%) partidos  cumpriram com o mínimo de 30% apenas com as candidaturas proporcionais. Outros 7 partidos (20,6%) tiveram de incluir repasses às cabeças de chapa majoritárias para chegarem ao mesmo percentual. Há ainda 3 (8,8%) partidos  que simplesmente não cumpriram com a determinação do TSE de destinar 30% dos recursos do FEFC para as candidatas em nenhum dos 3 cenários anteriormente traçados.

Tabela 1 – Cumprimento do mínimo de 30% do FEFC para candidaturas femininas – Brasil – 2018
Cenário Partidos que cumpriram sob o cenário Proporção de partidos que cumpriram sob o cenário
Apenas proporcionais DC, PATRI, PCO, PMB, PMN, PPL, PRTB, PSD, PSL, PTB, PV, SDD 35,3%
Proporcionais e cabeças de chapa majoritárias PCdoB, PP, PPS, PROS, PSTU, PTC, REDE 20,6%
Proporcionais, cabeças de chapa majoritárias, vices e suplentes DEM, MDB, PCB, PDT, PHS, PR, PRB, PSB, PSC, PSDB, PSOL, PT 35,3%
Não cumprimento sob nenhum cenário AVANTE, PODE, PRP 8,8%
Fonte: TSE. Elaboração Própria

Assim, fica evidente que as posições do STF e do TSE, que visavam garantir maior financiamento para candidaturas femininas, tornaram-se amplas o suficiente a ponto de permitir diversas interpretações e estratégias. Algumas delas não favorecem o incremento do número de candidatas competitivas ao cargo de Deputada Federal ou Estadual: se, por exemplo, um partido resolveu aplicar os 30% apenas ou primordialmente em majoritárias, isto não contribui para eleição de mais candidatas proporcionais que, em última instância, é o objetivo da lei de cotas.

Mesmo com a elasticidade dos critérios e das potenciais dificuldades à fiscalização, há boas notícias: houve expressivo aumento do volume de recursos destinados às candidatas a Deputadas Federais: a proporção de toda a receita declarada por candidatos à Câmara dos Deputados que teve mulheres como destino saltou de meros 9,8% em 2014 para 22,2% em 2018; a média do total de receitas das mulheres passou de 104 mil reais por candidata para 150 mil reais entre as duas últimas eleições, um aumento de 44%.

Neste mesmo período, a média de receitas dos homens caiu de 373 mil reais para 241 mil reais por candidato. Esse aumento pode estar relacionado com o crescimento de aproximadamente 25% na proporção de eleitas em 2018.

Há entendimentos que determinam a destinação de no mínimo 30% de recursos partidários em dinheiro dos fundos ou tempo de rádio e TV, e não foram elaborados de modo preciso. Eles configuram um avanço institucional na busca por paridade de gênero na política.

Quanto mais recursos destinados às campanhas femininas, maior sua competitividade e chances de eleição. Assim, essa nova diretriz na normatização do financiamento eleitoral é fundamental para o desenvolvimento do nosso sistema político-partidário e para a democracia.

Para as próximas eleições, o principal desafio é aprimorar essas regras para evitar ambiguidades em sua interpretação e facilitar o processo de fiscalização e punição de eventuais descumprimentos e fraudes. Afinal, não se pode esperar mais duas décadas até que as mulheres tenham recursos necessários para construir campanhas eleitorais competitivas.

Texto publicado originalmente no site Jota.

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CATARINA BARBIERI — Doutora (2012) e mestre (2008) em Direito pela Universidade de São Paulo (área de Filosofia e Teoria Geral do Direito) e Fox International Fellow (2010-2011) na Universidade de Yale. Graduada (2003) em Direito também pela Universidade de São Paulo. Coordenadora da área de Publicações da FGV DIREITO SP. Foi consultora do PNUD no projeto “Pensando o Direito” da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (10/2008 – 03/2009) e chefe de gabinete da mesma Secretaria (08/2009 – 03/2010).

IVAN MARDEGAN  — Bacharel em Economia formado pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA USP – 2015). Mestrando do programa em Administração Pública e Governo da FGV EAESP, na linha de Política e Economia do Setor Público.

LUCIANA RAMOS  — Doutora em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo. Mestre em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Foi pesquisadora visitante na Rutgers University (New Jersey), em 2014.

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