
Com mais de 71 milhões de infectados ao redor do mundo, 700 mil deles no Brasil, e 400 mil mortes anuais no planeta, a hepatite C é uma das doenças mais desafiadoras da atualidade.
O seu combate tem se tornado cada vez mais uma prioridade em diversos países, e o Brasil possui uma política que é referência, diferente da de diversos países. É o que afirma ao New England Journal of Medicine a pesquisadora do Cepesp/FGV, Elize Massard.
Ao lado dos pesquisadores Kenneth Shadlen e Francisco Bastos, ela analisa a política de combate brasileira, destaca o motivo do seu sucesso e como ela pode, e deve, ser estudada por outros países.
Histórico de combate
O artigo lembra que a política brasileira de combate à hepatite C não é a única de destaque. O do HIV/AIDS é considerado pioneiro em relação ao resto do mundo, e se tornou uma referência ao combinar a conscientização da sociedade civil, ações voltadas à população em situação de vulnerabilidade, produção local de medicamentos e uma centralização na atuação do Ministério da Saúde para a formulação de estratégias de prevenção.
Já em relação à hepatite C, Massard comenta que o combate às hepatites no país não é algo recente, mas passou por mudanças: “Há muitos anos, o Ministério da Saúde oferece tratamento para essa enfermidade. O que aconteceu é que, em 2014, surgiu uma nova classe de medicamentos, revolucionária, com taxas de cura superior a 90%”.
O novo tratamento é bem mais eficiente que o usado anteriormente (que apresentava muitos efeitos colaterais). A partir de 2015, ele passou a ser oferecido pelo SUS, mesmo com um custo elevado para sua efetivação.
Hoje, o Ministério da Saúde já disponibiliza os medicamentos usados nesse tratamento (os DAAs, em inglês), para todos os casos associados à doença, independente da gravidade, e reduziu os gastos.
Outro ponto importante é que, recentemente, o Brasil se comprometeu com a meta da Organização Mundial de Saúde de eliminar a hepatite C como problema de saúde pública até 2030.
A estratégia
O artigo caracteriza a política brasileira como algo a ser considerada em análises. A pesquisadora do Cepesp/FGV comenta que ela demonstra eficácia, mesmo tendo algumas limitações. Uma delas é a dificuldade de diagnóstico da doença, apesar dos esforços do governo em ampliar os testes e aumentar a conscientização da população sobre o assunto.
Os autores do artigo destacam um elemento importante para a efetividade da política de combate à hepatite C no Brasil: um custo menor das medicações usadas nos tratamentos.
Em outros países, como os Estados Unidos, os medicamentos DAAs são mais caros e não há flexibilidade para negociação de preços. Assim, o tratamento adquire um alto custo e torna-se proibitivo para muitas pessoas.
O baixo custo desses medicamentos é possível, entre outros fatores, à PDP ( Parceria para o Desenvolvimento Produtivo). Essa política visa internalizar e fomentar a produção de medicamentos, permitindo a criação de genéricos.
Assim, cria-se uma concorrência em relação aos remédios vendidos por empresas do exterior, que então reduzem os preços de seus produtos e contribuem para uma diminuição do valor do tratamento ofertado à população, permitindo sua expansão.
Um elemento essencial nesse processo, segundo Massard, é o tratamento dado às patentes de medicamentos. É possível, pela lei brasileira, negar patentes caso o remédio tenha uma importância estratégica. Isso permite a produção de genéricos, gera concorrência e reduz os preços. No caso específico da hepatite C, a patente de uma das principais DAAs usadas foi concedida no Brasil para a empresa criadora, mas empresas brasileiras conseguirem criar novos métodos de formulação, sem infringir a patente.
Massard destaca que a principal lição do Brasil é que é “possível oferecer terapias modernas, que estejam disponíveis para todos que precisam, mesmo em um contexto de proteção de patentes.” A realidade brasileira não consegue ser simplesmente copiada por outros países, já que uma série de questões jurídicas e logísticas devem ser consideradas em cada localidade.
Desafios
Para a pesquisadora, os principais desafios no combate à hepatite C hoje são “reduzir o custo do tratamento, a logística de compra e distribuição dos medicamentos, diagnosticar os casos (particularmente em populações vulneráveis) e garantir uma adesão adequada ao tratamento”.
Ela destaca que, mesmo em meio a crises recentes e fortalecimento de grupos conservadores, as políticas de combate a várias doenças, como as hepatites e o HIV/AIDS, continuam e apresentam uma estabilidade, apesar do crescimento de uma oposição às ações do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das ISTs, do HIV/AIDS e das Hepatites Virais (DIAHV), órgão do Ministério da Saúde que é o principal ator público no combate dessas doenças.
O artigo pode ser lido aqui.