Texto publicado originalmente no Portal Jota
Por Luísa B. Arantes*
A alteração na estrutura organizacional do Ministério da Saúde, em maio de 2019, gerou surpresa e repúdio dos movimentos de HIV/Aids. Surpresa porque o renomado Departamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis, Aids e Hepatites Virais passou a se chamar Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI). Essa reestruturação não foi mencionada nas reuniões da Comissão Nacional de IST, HIV/AIDS e Hepatites Virais e da Comissão Nacional de Articulação com Movimentos Sociais, que deliberam sobre grandes temas de enfrentamento à Aids no país e que aconteceram poucas semanas antes dessa decisão. E repúdio porque a mudança organizacional representaria o fim do Programa Brasileiro de AIDS, uma das mais bem-sucedidas iniciativas de saúde pública do país.
Para entender as consequências dessa reestruturação organizacional, é preciso considerar seus elementos de forma distinta. Primeiro, a integração de novas patologias à estrutura institucional do departamento de AIDS. Segundo, e mais preocupante, são: a alteração no nome do departamento, as modificações no processo de compra de medicamentos e a intervenção em campanhas de prevenção voltadas para população vulnerável.
Uma das principais alterações determinadas pela nova administração do Ministério da Saúde é a inclusão da hanseníase e tuberculose nas responsabilidades do novo departamento. Essa decisão causou um debate acalorado. Unificar a gestão das políticas de prevenção e controle das infecções relacionadas ao HIV/Aids é uma recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) com objetivo de melhor atender os pacientes e facilitar o tratamento conjunto dessas enfermidades. É importante ressaltar que essa era uma demanda antiga dos próprios movimentos de HIV/Aids. Portanto, parece razoável unir, no mesmo departamento, HIV e tuberculose, pois a última é uma co-infecção frequente em pessoas vivendo com HIV e é a principal causa de morte desses pacientes. Já no caso da hanseníase, segundo argumentos do Diretor do DCCI, Gerson Pereira, a incorporação ao departamento justifica-se pela semelhança entre os condicionantes sociais das enfermidades: ambas são estigmatizadas na sociedade. As ONGs de HIV/Aids, no entanto, estão apreensivas quanto a essa união, pois as formas de transmissão e os fatores epidemiológicos e sociais da hanseníase são completamente distintos das IST. A união de patologias tão diferentes não necessariamente promoverá maior integração entre elas. Pelo contrário, poderá causar disputa por recursos, além de minar esforços no combate ao HIV/Aids.
Esse complexo debate remete a uma discussão de 2009 por ocasião da integração do Programa de Hepatites Virais ao então Departamento de DST e Aids. Na época, a mudança foi comemorada pelos movimentos das hepatites virais, que a enxergaram como uma oportunidade de impulsionar as ações governamentais e sociais no combate às hepatites com a experiência e o conhecimento do Programa de HIV/Aids. Entendia-se que a hepatite B seria a maior beneficiada, por ser comumente associada à Aids; porém temia-se que a incorporação da hepatite C a uma pasta de IST levasse à interpretação, por parte da população, de que se trata de uma doença de transmissão sexual (embora os casos no país sejam, majoritariamente, de transmissão parenteral), estigmatizando os pacientes, assim como ocorre com HIV/Aids. Passados dez anos, os resultados dessa decisão não poderiam ser melhores.
Em 2014, com a chegada da “cura da hepatite C” ao Brasil — isto é, o sofosbuvir, antiviral de ação direta (DAA) que apresenta chances de cura de mais de 90% para pacientes vivendo com hepatite C — foi crucial o fato dessa patologia estar integrada ao Departamento de AIDS. Graças à capacidade de negociação de preços do Departamento, adquirida durante décadas de acordos para redução dos custos dos antirretrovirais, os DAA puderam ser rapidamente disponibilizados nos serviços de saúde. Como consequência, o Brasil entrou para o seleto grupo de países signatários da meta de eliminação das hepatites virais da OMS que de fato estão mobilizados para atingi-la. Sem a experiência adquirida durantes anos de negociação com as indústrias farmacêuticas multinacionais, seria mais difícil para o Programa de Hepatites estabelecer sozinho acordos de preço que permitissem ampliar o acesso a esses medicamentos.
Portanto, as consequências da inclusão dessas patologias à estrutura organizacional do departamento de Aids são incertas. É possível que as disputas internas por recursos e a fragmentação de políticas dificultem o cotidiano das ações; porém é bastante plausível que as respostas às diferentes doenças se complementem, com trocas de experiência e boas práticas, como foi no caso da hepatite C com o HIV/Aids.
O segundo conjunto de alterações — mudanças no nome do departamento, no processo de compras de medicamentos e nas campanhas de prevenção — é ainda mais preocupante. A retirada das palavras “HIV/Aids e hepatites” do nome do departamento vai muito além de uma alteração semântica. Pode ser entendido como algo grave, pois reforça o estigma contra essas doenças, como algo que não pode ser falado.
Com relação à alteração do sistema de aquisição de medicamentos, que passou a ser responsabilidade do Departamento de Assistência Farmacêutica — vinculado a outra secretaria no Ministério — coloca-se em risco toda a expertise adquirida pelo Departamento ao longo de décadas de negociação de preço de antirretrovirais protegidos por patentes. O Departamento de Aids é reconhecido mundialmente por sua tenaz capacidade de oferecer os protocolos clínicos mais avançados para o tratamento da AIDS e da hepatite C a preços inferiores ao mercado internacional. Em 2015, por exemplo, o Departamento conseguiu uma redução de mais de 90% no preço do sofosbuvir em relação ao preço praticado nos Estados Unidos.
Excluir os técnicos do Departamento ou limitar sua participação nas negociações de preço pode trazer consequências indesejáveis para o próprio Ministério da Saúde, que perderá um conhecimento relevante de barganha de preços. A recente declaração do Ministro da Saúde sobre a sua posição absolutamente contrária ao licenciamento compulsório sugere que o governo não está mais disposto a questionar os elevados preços de medicamentos protegidos por patente.
Por fim, destaca-se as intervenções nas campanhas de conscientização para população vulnerável, como homens e mulheres transexuais, gays, profissionais do sexo, usuários de drogas, dentre outros. A declaração do Ministro de que o Estado não deve invadir “o ambiente familiar” e ofender as famílias com campanhas de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis reproduz bem a identidade conservadora da atual gestão. Essa orientação pode prejudicar em grande medida a realização de campanhas de prevenção voltadas a populações mais afetadas pela epidemia.
Neste cenário de incertezas, é difícil fazer projeções ou compreender o impacto dessas decisões. Porém, espera-se que os movimentos de HIV/Aids e hepatites continuem a monitorar as alterações organizacionais e suas consequências, e que consigam manter o Ministério da Saúde responsável (accountable) por suas obrigações com a resposta às epidemias. A experiência do Brasil com a política de Aids reorientou as iniciativas internacionais para o controle do HIV; do mesmo modo, o país tem dado passos importantes para a eliminação do vírus da hepatite C como problema de saúde pública. É imperativo que os gestores do DCCI mantenham sua autonomia para propor e formular ações progressistas de prevenção e acesso a medicamentos inovadores. Isso será possível se conseguirem manter um bom diálogo com os movimentos sociais, e, sobretudo, com o próprio Ministério da Saúde e com a coalizão de apoio do atual governo.
*Luisa B. Arantes (luisa.bolaffi@e-campus.uab.cat) é aluna de graduação em administração pública na Fundação Getúlio Vargas e visitante na Universidade Autônoma de Barcelona, desenvolve pesquisa de iniciação científica sobre as políticas de enfrentamento à hepatite C no Brasil e na Espanha com bolsa da Fundação de Amparo a Pesquisa de São Paulo (processos 2018/19737-7 e 2019/08888-7) . É pesquisadora assistente do Cepesp/FGV