Relato e questionamentos sobre o confinamento e o combate ao Covid-19 na França

CEPESP  |  25 de março de 2020
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“Quais os limites entre a ação individual e coletiva, entre o que é de ordem moral e de ordem política?”, reflete Andreza Davidian, doutoranda em Administração Pública e Governo da FGV EAESP e pesquisadora do Cepesp/FGV, neste relato sobre o confinamento em Paris e sobre como a França está enfrentando a pandemia do Covid-19.

Por Andreza Davidian* , de Montreuil, 25 de março de 2020.

Há duas semanas, no dia 12 de março, Emmanuel Macron fazia seu primeiro pronunciamento oficial sobre o que seria a crise sanitária mais grave que a França conheceria dentro do último século. Alertando que a epidemia estaria apenas no início, o presidente chamou os franceses a tomar medidas para retardar a propagação do vírus, apelando para que o sacrifício (leia-se, distanciamento social) fosse feito em nome dos valores de solidariedade e fraternidade que uniriam os franceses.

De concreto, ordenava-se, até novo aviso, o fechamento das instituições de ensino, estava prevista a organização adequada de creches em cada região para que se mantivessem trabalhando aqueles cuja atividade seja essencial para gerir a crise, e também foi anunciada a redução do tempo de funcionamento dos estabelecimentos, sob a promessa de um plano de recuperação nacional para compensar economicamente aqueles que tivessem seus negócios afetados. O presidente destacou ainda o papel da França na concertação de uma resposta internacional a esta crise, sinalizando que a Europa teria todos os trunfos para oferecer ao mundo o antídoto para o covid-19.

O presidente, cuja popularidade despencara com a eclosão do movimento dos gilets jaunes (coletes amarelos), em 2018, e que nos últimos meses vinha sendo denunciado nas ruas pela ofensiva aos direitos sociais de sua reforma previdenciária, concluiu seu discurso exaltando o estado de bem-estar francês ao apontar que a pandemia vinha revelar que certos bens e serviços devem ser colocados fora das leis do mercado. Todavia, o tom ainda não parecia o mais alarmante naquele momento, pois não se altera o calendário das eleições municipais, cujo primeiro turno estava previsto para aquele final de semana. Macron disse ter contado com a opinião de cientistas e também dos políticos para determinar que, observadas todas as recomendações sanitárias, nada impediria ninguém de ir às urnas, mesmo aqueles mais vulneráveis à doença, como idosos.

Dois dias depois, o primeiro-ministro, Édouard Philippe, anuncia o fechamento de todos estabelecimentos não indispensáveis à vida do país (cinemas, bares e discotecas). As votações, no entanto, são mantidas para dia seguinte. A emissão de sinais contraditórios pelo governo é flagrante: fiquem em suas casas, mas não deixem de ir votar no domingo. De fato, coordenar qualquer ação no interior de um governo, sob condições como estas, não é tarefa fácil – e se já não é aqui fico imaginando no Brasil agora. Resultado: registrou-se aqui um recorde de abstenções, que chegou a 56% em alguns distritos.

De todo modo, o que seria o último dia antes do confinamento – era sabido que no dia seguinte Macron iria novamente a público – foi um belo domingo de sol a ser disfrutado. Do caminho da minha casa até a maior área verde da região parisiense, o Bois de Vincennes – na década de 70 o bosque abrigou um centro universitário experimental que era fruto do movimento de Maio de 1968, por onde passaram intelectuais como Foucault, Deleuze e Guattari –  passei por dois mercados de rua, ambos bastante movimentados. O bosque estava repleto de pessoas fazendo pic-nic, adultos se exercitando, crianças brincando, idosos repousando e alguns até pescavam no lago.

Caminho entre árvores

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Bois de Vincennes, 15 de março, domingo
Uma imagem contendo edifício

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Na segunda, 16 de março, Carrefour de Montreuil.

Se no domingo aproveitou-se para estar ao ar livre, na segunda as pessoas pareciam ter se entrincheirado no mercado para abastecer suas casas. As prateleiras de macarrão e papel higiênico eram terra arrasada, e isso tudo parecia antes de mais nada uma resposta ansiosa à incerteza, pois qualquer confinamento preveria alguma forma de as pessoas irem às compras, já que a organização da provisão pelo Estado não é uma possibilidade. Na verdade, o que talvez não faça sentido é esperar muita racionalidade das pessoas nessas horas, e de fato a tensão seria presságio do segundo pronunciamento do presidente naquela noite do dia 16.  “Estamos em guerra”, declara Macron. Após agradecer todos aqueles que trabalharam para realização das eleições, o presidente diz que por orientação dos especialistas seriam reforçadas as medidas para evitar ao máximo o contato entre as pessoas, que novas regras se imporiam e que infrações passariam a ser punidas.

Uma imagem contendo pare, comida, placa, vermelho

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Publicidade do governo que diz “Salve vidas, fique em casa”

Como já era de se esperar, a tramitação da reforma previdenciária fica suspensa e se anuncia um projeto de lei que deverá permitir que o governo responda à emergência da crise. Quanto aos impactos econômicos, oferece-se às empresas garantias no valor de 300 bilhões de euros para os empréstimos contraídos com os bancos, assim como a suspenção dos aluguéis e contas de água, gás e eletricidade – “L’Etat paiera”, diz com contundência. Quanto aos hospitais, especificamente, promete-se a provisão de materiais, como álcool-gel e máscaras, que pela falta ficam reservadas prioritariamente aos locais mais afetados. Finalmente, adia-se o segundo turno que estava previsto para o último domingo (22) – e tenho escutado sobre a hipótese de que o primeiro turno seja anulado. 

As novas regras, estabelecidas em decreto, preveem os seguintes casos de deslocamento: entre a casa e o local de trabalho para aqueles cuja atividade é essencial e não pode ser realizada remotamente; para fazer compras de primeira necessidade nos estabelecimentos autorizados a funcionar; para realizar consultas que não podem ser adiadas ou feitas à distância; por razões familiares como a assistência a pessoas vulneráveis ou a guarda de crianças; por convocação judicial ou administrativa ou para participar em missões de interesse geral, a pedido das autoridades; e para atividades físicas individuais, excluídas quaisquer práticas esportivas coletivas, e por necessidade dos animais de estimação. Assim, desde então, para sair de casa é necessário portar um documento, a Attestation de Déplacement Dérogatoire, que pode ser escrita a próprio punho e deve ser refeita a cada vez.  As infrações ficam sujeita a uma multa de 135 euros, que pode ser aumentada para 375 a 1,5 mil euros em caso de reincidência.

Por um golpe de sorte, pouco antes disso tudo eu havia conseguido finalmente me instalar, na Ville de Montreuil, no banlieu parisiense (leia-se, subúrbio). Abro um parênteses para comentar sobre este tradicional reduto operário e de esquerda, que desde a década de 90 atrai a “burguesia boêmia” de Paris em razão das três estações de metrô que cortam seu território, do baixo preço dos imóveis e dos grandes espaços deixados vagos pela desindustrialização. A ocupação por artistas e intelectuais faz a cena cultural bastante viva – há um ótimo cinema acessível a preços populares, alta concentração de teatros e espaços artísticos e uma porção de lugares com propostas alternativas, como cooperativas e estabelecimentos autogestionados. Na casa dos 110 mil habitantes, há ainda aqui forte presença de imigrantes – uma grande comunidade de malianos, tunisianos, algerianos, sírios e por aí vai. Ao mesmo tempo, Montreuil guarda bem sua atmosfera de bairro.

Uma imagem contendo cerca, ao ar livre, grama, parque

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Parque Jean-Moulin Les Guilands, em 20 de março

Sem entrar no mérito de toda discussão sobre o processo de gentrificação em marcha aqui, o fato é que é um ótimo lugar para se estar agora. Moro em frente a um parque – que embora tenha sido fechado não deixou de ser acessado, como se vê na imagem acima – e da janela do meu piso térreo vejo o dia todo gente passando para praticar esporte, passear com as crianças ou dar uma volta com o cachorro, e isso não desapareceu totalmente na primeira semana do confinamento. Com efeito, ainda que o controle seja menos perceptível por aqui, que é uma região mais pacata, soube que tinham sido aplicadas cerca de 18 mil multas nos primeiros dias de confinamento, e que em certas regiões da França estavam sendo utilizados drones para reforçar para a população as regras de isolamento. Em razão da “teimosia” dos franceses, no último final de semana corria o boato de que nessa última segunda-feira o quadro se radicalizaria, em resposta ao apelo de sindicatos e associações de médicos por medidas mais drásticas como toque de recolher nacional, fechamento de mercados e diminuição dos transportes, reduzindo-se as atividades econômicas aos setores estritamente essenciais.

Uma imagem contendo edifício, cerca, banco, trem

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Domingo sem feira na Place De La Croix De Chavaux (22 de março)

A notícia que se teve, no entanto, foi que o confinamento se prolongaria para além do fim de março, que era a previsão inicial, mas que o Conselho de Estado havia rejeitado o cenário de confinamento total, sobretudo em consideração aos impactos no equilíbrio psíquico dos franceses. Discutiu-se sobre a dificuldade em delimitar o que é, de fato, essencial, já que a continuação das atividades dos profissionais da saúde e daqueles envolvidos na produção e distribuição de alimentos, implica a continuação de uma série de outras das quais se depende – em particular os transportes públicos. 

Uma imagem contendo edifício, mesa, vermelho, grande

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Farmácia com aviso onde se lê: “Favor respeitar as distâncias de segurança” .
Loja com porta de vidro

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Fromagerie com o aviso: “Para sua proteção e a de todos, não mais de três pessoas por vez e mantenham a distância de um metro”

Assim, o que houve foi a revisão das regras que vinham sendo consideradas demasiado abertas, notadamente a disposição sobre as atividades físicas individuais. Passou-se a especificar o limite de uma hora por dia, dentro do raio de um quilômetro ao redor da casa. Farmácias, mercados, tabacarias e boulangeries seguem funcionando, com os devidos avisos de que as pessoas mantenham distância umas das outas ou mesmo estipulando regras para que entrem uma de cada vez ou mesmo sejam atendidas do lado de fora. 

Para mim, em particular, o confinamento até que vem a calhar. Preciso me concentrar na escrita da tese e muito felizmente o laboratório ao qual me vinculo aqui (Laboratoire Printemps, ligado à Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines e ao Centre National de la Recherche Scientifique, que seria o equivalente francês da CAPES) tem oferecido todo o suporte possível e os colegas têm sido particularmente atenciosos e solidários comigo. Na verdade, cheguei aqui já em um momento tumultuado em razão das mobilizações que se organizavam desde dezembro contra a reforma da previdência. A universidade, em particular, vinha se mobilizando tanto contra o projeto de lei que institui o sistema de aposentadoria universal, como contra o projeto de programação de pesquisa plurianual (LPPR), que pretende incidir nas carreiras de ensino superior e pesquisa ao diminuir o financiamento público e ampliar formas de contrato precário. 

Se já de antes o contexto era de intenso debate e agitação política, o enquadramento do tema da pandemia não poderia ser outro. No âmbito interno ficam explícitos os limites do sistema de saúde e da proteção social como um todo. Com ou sem máscara, todos aqueles cuja sobrevivência e reprodução social depende diretamente do mercado, para usar os termos de Esping-Andersen, seguem trabalhando no ritmo desse contexto caótico. “O Monoprix [grande da cadeias de varejo francesa] nunca pára”, tenho escutado aqui. Outras questões subjacentes à “guerra sanitária” se referem ainda à xenofobia e ao racismo. No início da crise, o jornal local Le Courrier Picard trouxe em sua primeira página a fotografia de uma mulher asiática com os dizeres: ”alerta amarelo”. Desde então as situações de discriminação em lugares públicos e demais atraques, a exemplo da pichação de um restaurante japonês em Paris, como se a crise gerada pela propagação do vírus fosse obra dos asiáticos – estupidez que encontrou eco no Brasil

Percebo aqui que fazem mais parte do senso comum preocupações relacionadas à sustentabilidade do modo de produção e ao equilíbrio ambiental – tenho comentado desde que cheguei sobre o inverno estar sendo menos rigoroso do que eu esperava e sobre os sinais precoces de primavera, ao que me respondem, invariavelmente: é a tragédia do aquecimento global. Assim, tenho escutado aqui e acolá que essa “nova peste” vem na verdade revelar o colapso do sistema capitalista em nível mundial. 

Uma imagem contendo texto, placa, placar

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Detalhes de um muro de Montreuil; na segunda, 23: “Menos pânico, mais serviços públicos”

O fato é que aqui estamos, en confinement, já há dez dias. A coisa vai se estender, isso é nítido, mas por ora me parece que a China não será um modelo do ponto de vista das medidas mais radicais de isolamento social. Temi que as minhas corridas diárias fossem interditadas no início dessa semana, o que não aconteceu. Mas tampouco dá para prever qualquer coisa. Há pouco mais de três semanas fui ver o Lula ser recebido no Théâtre du Soleil, um dia após ter recebido o título de Cidadão Honorário de Paris da prefeita Anna Hidalgo – aliás, a candidata do Partido Socialista francês passou na frente no primeiro turno do dia 15. Nessa ocasião Lula arranca risada do público ao comentar sobre a orientação de se cumprimentar com os cotovelos em razão do vírus – isso antes de receber efusivos abraços daqueles presentes para homenageá-lo. Mal se sabia que uma semana depois tudo viraria de cabeça para baixo.

Li em uma das inúmeras mensagens que recebo de uma lista de discussão do métier dos cientistas políticos alguém argumentando que na França se trata antes de evitar o risco de pânico do que o risco biológico. Usa-se a metáfora de que aqui um piano visto cair de um edifício de vinte andares só acionaria o alerta máximo quando passasse do quinto piso, pois seria preferível aos franceses que as pessoas morressem esmagadas a que entrassem em estado de pânico. Sobre se tratar ou não de negligência, e quais os limites entre a ação individual e coletiva, entre o que é de ordem moral e de ordem política, essas são questões sobre as quais tenho refletido no meu confinamento. 

Por ora o que eu vejo é que a situação geral é sem precedentes e um tanto insólita na esfera pessoal de cada um. Parafraseando Muriel Perez [fotógrafa e produtora cultural]– que por sorte minha tem se tornado uma das minhas principais interlocutoras aqui, e que tem feito contribuições muito bacanas sobre esse momento para o jornal independente Mediapart – vale olhar para além das barras de nossa gaiola dourada para enxergar o que está lá fora. Fico aqui bastante aflita antecipando os desdobramentos no Brasil, já que coisa caminha com atraso um tanto mais dilatado do que aquele do fuso-horário, e o momento político não poderia ser pior (bate na madeira!) para se fazer frente a tamanha crise. Que esse período nos permita, no mínimo, fazer reflexões mais radicais, individuais e coletivas, sobretudo. 


*Doutoranda em Administração Pública e Governo na EAESP/FGV e bolsista CAPES PrInt no Laboratoire Printemps, da Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines, e pesquisadora do CEPESP/FGV e do CEBRAP.

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