José Serra causou certo mal-estar entre os tucanos na semana passada ao declarar sua intenção de organizar prévias no PSDB, quando Aécio Neves já se posiciona como o amplo favorito para a corrida presidencial do partido. “É totalmente legítima a postulação dele [de que querer prévias]”, declarou Aécio. Mas o mineiro negou que vá deixar a presidência do partido como quer Serra, a fim de garantir “igualdade de condições” na disputa interpartidária. “Fui eleito. Não costumo renunciar aos cargos que ocupo”, alfinetou Aécio.
Serra, que cogitou a possibilidade de migrar de legenda para lançar candidatura pelo PPS, enfrenta problemas técnicos e políticos para viabilizar as prévias. O PSDB não possui um cadastro atualizado de seus filiados, ao passo que são poucos os dirigentes tucanos que apoiam sua iniciativa. Em entrevista ao jornal Valor Econômico na segunda, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse que provavelmente não será necessária a realização de prévias entre Serra e Aécio, apesar de reconhecer o direito de Serra postular sua candidatura. “A dificuldade é que o PSDB em sua imensa maioria está com Aécio. Então, acho que a pessoa tem que ser realista”, disse o ex-presidente.
O imbróglio interno do PSDB já virou ironia entre os petistas. “Eles nunca vão fazer prévias”, disse Paulo Frateschi, secretário nacional de comunicação do PT. “Duas garrafas de Borgonha num saguão de hotel e eles resolvem quem será o candidato”.
Em entrevista a seguir, o pesquisador do Cepesp Cláudio Couto discute a realização de prévias no PSDB e as possibilidades políticas ainda abertas para José Serra. Segundo Couto, Serra age como um “cacique partidário” e uma vez que o partido não coaduna com seu projeto pessoal “descarta-se o partido”. Caso prévias sejam realizadas no PSDB hoje, elas serviriam para duas coisas, segundo Couto: reforçar a unidade do partido entorno do nome de Aécio e eliminar definitivamente as pretensões futuras de Serra, “tendo em vista sua provável derrota acachapante”.
Na semana passada, Serra afirmou que é “possível que seja candidato a presidente”. Ele vem insistindo na realização da consulta interna do PSBD, ainda que a maioria do partido dê como certa a candidatura de Aécio. Serra também vinha sondando sua candidatura pelo PPS de Roberto Freire. Como avaliar os movimentos de José Serra dentro e fora do PSDB? Depois de acumular perdas nas últimas eleições, ele ainda tem espaço entre os tucanos?
Cláudio Couto: Creio que José Serra é uma liderança que se encaixa tipicamente na categoria de cacique partidário. Por um lado, essa liderança percebe o partido mais como uma organização que deve servir aos seus objetivos políticos pessoais do que como parte de um projeto coletivo mais amplo. Em função disto, se o partido deixa de servir ao projeto pessoal, descarta-se o partido. Isto explica o flerte de Serra com o PPS, apesar de ser um fundador do PSDB e ter obtido do partido diversas oportunidades para candidatar-se a cargos majoritários nos últimos anos (à Prefeitura de São Paulo em 1988, 1996, 2004 e 2012; ao Senado em 1994; à Presidência da República em 2002 e 2010 e ao governo paulista em 2006). Querer ser candidato pela terceira vez à presidência evidencia uma autopercepção muito forte de relevância incontrastada dentro do partido; como se este não possuísse mais ninguém capaz de liderá-lo na disputa presidencial.
Por outro lado, essa atuação autoreferida da liderança apenas se viabiliza porque o partido acata sua conduta. Esse acatamento pode ser explicado por mais de uma causa: primeira, a aversão demasiada ao risco de lançar candidaturas novas quando uma candidatura já conhecida e testada está disponível; segunda, o controle de posições chave na máquina partidária pela entourage do cacique partidário, a qual manobra para colocar o aparato do partido à sua disposição; terceira, o receio de outras lideranças de assumirem um conflito aberto com o cacique, tanto pelo desgaste que isto provoca para o partido, como para os riscos que coloca para essas outras lideranças em ações futuras – tendo em vista a força do cacique e de sua entourage na agremiação.
Reclamar por prévias neste momento, depois de ter obrado para implodi-las quando foram pedidas por seu adversário interno (Aécio Neves), demonstra esta percepção do partido e de seus expedientes institucionais como instrumentos a serem usados de acordo com a conveniência dos projetos pessoais. É mais um indicador do caciquismo. Isto é ainda mais notável por ocorrer simultaneamente ao flerte com outra agremiação, o PPS.
Serra disse ainda que “as prévias não podem ser restritivas, só para parecer que está simulando uma consulta”. Ele tenta garantir a imposição de algumas regras de número de participantes, prazo de fidelidade partidária e condições de competitividade. Na sua avaliação, qual a validade e real impacto de prévias no PSDB no contexto atual?
Cláudio Couto: Chama a atenção o questionamento das condições para a realização das prévias. Ora, será que o partido já não possui regras claras para isto? Será que o partido que realizou as eleições com Serra à frente em 2010 já não é mais uma agremiação capaz de conduzir de forma condigna uma prévia para a indicação de candidaturas? Isto parece mais uma senha para justificar uma saída honrosa (“as condições para a prévia não eram justas”), do que uma demanda autêntica.
Tal saída honrosa se apresenta como provável porque as condições políticas internas para José Serra já não são das melhores. Sua alta taxa de rejeição e o fiasco nas últimas duas eleições majoritárias (com altíssimas taxas de rejeição) indicam para muitos dentro do partido que uma nova candidatura sua é que seria uma estratégia de risco. É razoável supor que uma candidatura nova, sem tanta rejeição, como a de Aécio Neves, mostre-se mais competitiva nas eleições de 2014. Mesmo porque, hoje, suas intenções de voto não estão muito abaixo das de Serra, mas ele ainda possui muito espaço para tornar-se mais conhecido do eleitorado e, consequentemente, crescer.
As prévias no PSDB, se realizadas, hoje podem servir para duas coisas. Uma, o reforço da unidade de uma ampla parcela do partido em torno do nome de Aécio Neves. Diversas declarações recentes de lideranças importantes do partido sugerem que uma vitória sua seria acachapante, eliminando quaisquer dúvidas sobre a escolha de sua candidatura pelo partido. A segunda coisa seria a eliminação definitiva das pretensões futuras de Serra para impor-se ao partido, tendo em vista uma provável derrota acachapante. Por uma e por outra razão, Serra tem poucos motivos reais para efetivamente disputar prévias. Isto me faz crer que sua estratégia é na verdade um blefe, seja para tentar forçar novamente o partido a ceder à sua vontade (o que me parece muito improvável), seja para criar pretextos para uma saída honrosa, seja ainda para simplesmente criar transtornos para um desafeto partidário, como Aécio.
Portanto, entendo que forçar pelas prévias seria muito benéfico para o PSDB e nada positivo para José Serra, que não tem motivos reais para disputá-las. É bom lembrar que sua vitória nas prévias à Prefeitura de São Paulo (isto é, no seu próprio terreno) foi por pequena margem, obtendo apenas pouco mais da metade dos votos, contra dois candidatos de muito menor importância na história do partido.
Nos Estados Unidos, as primárias do partido Republicano e Democrata tem grande importância e são, efetivamente, uma longa campanha com muitos candidatos e debates sobre temas sensíveis desde economia, políticas de saúde, religião, porte de armas, etc. Faz sentido falar de prévias nestes moldes tendo em vista o perfil do sistema multipartidário brasileiro?
Cláudio Couto: Temos um contexto muito diferente do norte-americano. Primeiro, porque somos um país multipartidário. Assim, o embate forte dentro dos partidos é transferido para a disputa entre os partidos. Lá, a primária é uma disputa acompanhada de perto pela sociedade, enquanto aqui as prévias são questões quase que exclusivamente internas, sem grande acompanhamento pela sociedade.
Segundo (o que não pode ser completamente desvinculado do primeiro ponto) é muito diferente porque temos uma tradição de designação das candidaturas de forma consensual, ou imposta pelas lideranças partidárias, sem eleições prévias. Com isto, não firmamos uma tradição de disputas internas que se instituísse como um espaço de debate político efetivo. Se a obrigatoriedade das prévias viesse a ser criada, haveria o risco de elas ocorrerem nos partidos só pró-forma, para cumprir a legislação.