CEPESP  |  4 de agosto de 2017
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Temer
Presidente Michel Temer durante cerimônia no Palácio do Planalto (Agência O Globo)

“Não dá para Temer cantar vitória”, disse o cientista político Carlos Pereira, professor da Ebape/FGV, pesquisador do CEPESP e professor visitante na Universidade de Stanford, na Califórnia. Leia, abaixo, a entrevista completa concedida pelo pesquisador do CEPESP ao jornal Valor Econômico e publicada no dia 04/08/2017, dois dias depois da vitória conquistada pelo presidente Michel Temer, do PMDB, ao obter maioria dos votos na Câmara dos Deputados na sessão que negou que o presidente fosse investigado por crime de corrupção passiva. A denúncia feita pelo Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, foi arquivada pelos deputados, e somente poderá ser analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) depois que o mandato de Temer terminar. Vice-presidente na chapa de Dilma Rousseff, do PT, Temer cumprirá mandato até 31/12/2018.

Segundo Pereira, duas das quatro condições necessárias para se interromper o mandato do presidente (via impeachment ou caminho alternativo) não estão presentes até o momento: “A literatura do impeachment argumenta que, para um presidente ter o seu mandato diminuído, quatro elementos são importantes: uma crise econômica, nós temos isso, uma crise de corrupção, nós temos isso, mas não temos os outros dois elementos que a literatura acha como condição necessária, o povo na rua e a quebra da coalizão. Então dois dos elementos para que ocorra o impeachment do presidente Temer estão faltando.” 

Mas estaria Temer realmente livre de problemas?

Confira a entrevista:

Valor: O placar pela rejeição da denúncia contra Temer permite o governo comemorar?

Carlos Pereira: Foi menos do que se esperava, com uma diferença de cerca de 40 votos. O governo mostrou força, mas ainda é vulnerável. O [procurador-geral da República, Rodrigo] Janot tem dito que pode formalizar outra denúncia. Não dá para cantar vitória. Ganhou fôlego e força política para a aprovação da agenda de reformas, mas é uma comemoração com moderação porque outra denúncia virá. Não dá, por exemplo, para chutar o pau da barraca e se distanciar de um aliado como o PSDB, que provavelmente será atraído com mais recursos liberados pelo governo.

Valor: Mesmo os tucanos tendo entregado apenas metade dos votos da bancada?

Pereira: Sim, e a tensão no PSDB vai continuar. Mas em algum momento a decisão de sair do governo vai ter que ser tomada, nessa disputa entre o Tasso [Jereissati] e a ala jovem do partido versus a turma do Aécio [Neves].

Valor: Por que Temer conseguiu se salvar, mesmo sendo tão impopular quanto era Dilma Rousseff?

Pereira: O governo mostrou muita eficiência e obteve uma vitória a despeito de evidências robustas de que o presidente está envolvido em corrupção passiva. A denúncia do Ministério Público foi muito robusta, mas mesmo assim o governo mostra muita força e isso me remete aos trabalhos que venho desenvolvendo sobre gerência de coalizão. Desde o início do governo, Temer montou uma coalizão muito ampla, mas relativamente homogênea. E acertou ao compartilhar recursos com membros da coalizão proporcionalmente, inclusive com membros do PMDB tendo menos acesso a recursos que aliados de outros partidos. Mais ainda, o governo montou uma coalizão que espelha a preferência mediana do Congresso.

Valor: Esse é o segredo do Temer?

Pereira: Acho que sim. Acho que a questão fundamental, se a gente analisar todas as coalizões desde o governo [José] Sarney até o momento, é que a coalizão do governo Temer consegue ser mais congruente com a preferência mediana do plenário que o Fernando Henrique Cardoso. Ele consegue montar uma coalizão mais eficiente que o Fernando Henrique, que foi até então o governo que conseguiu montar coalizões mais proporcionais, mais homogêneas e mais congruentes com o que o Congresso quer. Tem esse elemento que a literatura de impeachment ou queda de governo enfatiza. Para se afastar um presidente é fundamental que haja quebra da coalizão. Mas como o governo Temer tem uma gerência muito eficiente da coalizão, a chance de ocorrer essa quebra, mesmo diante de evidências muito fortes, como mala de dinheiro e gravação do presidente nomeando como interlocutor um representante da sua confiança. Tudo isso, mesmo depois das evidências, não foi suficiente para que essa coalizão se abalasse. Isso é uma evidência inequívoca de que um presidente num presidencialismo multipartidário precisa levar em consideração o Congresso e a mediana desse Congresso se quiser sobreviver.
“Até o momento o presidente mostra muita força. Outros presidentes, com bem menos, já teriam balançado”

Valor: O que faria o governo Temer cair? Uma segunda denúncia tende a ter menos ou mais força que a primeira?

Pereira: É difícil responder essa pergunta. Esse jogo não é estático, é dinâmico. Os atores, tanto os membros da coalizão quanto o presidente, fazem “updates” das suas crenças o tempo todo e aumentam ou diminuem seus poderes de barganha. Naturalmente, se surgir um fato novo que abale mais ainda o presidente e mostre ainda mais, de forma inequívoca, um envolvimento do presidente, naturalmente pode aumentar os custos dos integrantes da coalizão de continuarem bancando o governo e esses custos podem se tornar proibitivos para que o presidente os pague. Mas é muito difícil hoje estabelecer esse limite. Até o momento o presidente mostra muita força. Outros presidentes, com bem menos, já teriam balançado. Há outro elemento importante de ser destacado: a agenda de reformas em busca de um suposto equilíbrio macroeconômico é muito congruente com o que espera essa coalizão dominante. Não só legisladores, mas setores da sociedade, empresários, sistema financeiro, opinião pública, mídia, intelectuais. Esses setores acreditam que é fundamental para o Brasil equilíbrio macroeconômico, disciplina fiscal e reformas estruturais como previdência e trabalhista. O governo Temer sinaliza um comportamento congruente com essa expectativa. A despeito de ter popularidade ridiculamente baixa, ele consegue governar porque sinaliza para esse setor que de fato importa na política econômica, mais que os eleitores nesse momento, congruência com as expectativas. Tem esses dois elementos que fazem que o governo Temer sobreviva: uma boa gerência de coalizão aliado com agenda de reformas consistente com a expectativa de setores da sociedade que têm poder de decisão no momento atual.

Valor: As reformas, pelo que têm de impopular, não deveriam forçar os parlamentares, a um ano das eleições, a se descolarem da imagem do governo?

Pereira: Passa no cálculo dos parlamentares. Mas o mais importante para a sobrevida eleitoral dos legisladores não é a popularidade do governo, mas a eficiência do legislador de levar políticas que beneficiem sua rede local de interesses. Existem evidências muito robustas na literatura da ciência política brasileira que demonstram que a variável mais importante para a sobrevivência eleitoral de parlamentares é a execução de projetos locais que geram dividendos eleitorais muito grandes por alimentar uma rede local de interesses. Essa rede local leva pouco em consideração a performance do parlamentar em voto no plenário e leva mais em consideração a efetividade desse parlamentar em trazer recursos que possam gerar e movimentar a economia local. Não estou dizendo que a popularidade do presidente não importa, não estou dizendo que o comportamento de voto não importa, mas importa menos que os recursos que possam gerar benefícios para essa base.

Valor: A existência de uma movimentação de rua um pouco mais forte poderia quebrar essa equação?

Pereira: Com certeza. A literatura do impeachment argumenta que, para um presidente ter o seu mandato diminuído, quatro elementos são importantes: uma crise econômica, nós temos isso, uma crise de corrupção, nós temos isso, mas não temos os outros dois elementos que a literatura acha como condição necessária, o povo na rua e a quebra da coalizão. Então dois dos elementos para que ocorra o impeachment do presidente Temer estão faltando. Acredito que a mobilização no Brasil está muito associada a receios que a operação Lava-Jato corra riscos. Existe uma substituição entre povo na rua e eficiência da Lava-Jato. Como a sociedade tem percebido relativamente a Lava-Jato até então eficiente, cumprindo seu papel, é pouco provável que ela volte às ruas. No momento em que a sociedade perceber que a operação Lava-Jato passa por alguma dificuldade e que está em ameaça, acho bem provável que as pessoas voltem às ruas. Porque a mobilização que se deu, embora a presidente Dilma tenha sofrido impeachment por crime fiscal e orçamentário, ocorreu muito pelo argumento da corrupção, ainda que ela não tenha sido acusada disso naquele momento. Esse caldo de mobilização que aconteceu desde 2015 até o impeachment da presidente tem uma característica de luta contra a corrupção. Como a operação Lava-Jato tem sido até então eficiente e mostrado muita independência, inclusive impondo perdas também para partidos das mais variadas matizes e políticos das mais variadas filiações partidárias e ideológicas, acho que houve arrefecimento em função da eficiência da Lava-Jato.

Valor: Essa eficiência da Lava-Jato não fica em xeque depois da rejeição da denúncia e da decisão do TSE que não cassou a chapa Dilma/Temer? Por essa lógica, isso não deveria estimular à população a ir para as ruas?

Pereira: Mas são na esfera política e não na judicial. A Constituição prevê que o presidente no exercício, para ser objeto de investigação de crime comum, precisa ter autorização do Parlamento. Esse componente de certa forma isenta a operação Lava-Jato de uma certa responsabilidade de eficiência. Porque até onde deu para ela, o papel do Ministério Público de elaborar a denúncia, de substanciá-la com evidências robustas, aconteceu. Quando passa para a esfera política e para um processo fundamentalmente político, não é mais decisão judicial ou de investigação, a população fica em compasso de espera. Pode ser que, diante dessa decisão, ocorra uma decepção da sociedade porque não viu concretamente traduzir em punição. Essa votação mostra que o processo de controle tem altos e baixos, não é linear, tem avanços e retrocessos. A sociedade fica confusa.

Valor: O senhor destacou a gerência da coalizão. Mas até que ponto a confiança em Temer é baseada na capacidade dele em estancar a sangria para que suspeitos de corrupção sobrevivam ao furação da Lava-Jato?

Pereira: Não descarto que essa expectativa exista perante os políticos. Não existe dúvida que é racional que eles esperem do presidente algum tipo de proteção. Mas não acho que nessa altura do campeonato algum tipo de proteção seja crível. Embora o Temer possa prometer isso, como talvez a própria Dilma tenha prometido como forma de permanecer no governo, não é crível. Porque um dos aspectos fundamentais que aconteceram no Brasil nesses anos pós-redemocratização foi um fortalecimento colossal das organizações de controle. Os políticos viam no desenho da Constituição de 1988 a importância desse sistema de controle sobre um presidente forte, mas as instituições de controle saíram do controle dos políticos. Por mais que o presidente Temer possa tentar vender a ilusão de que o Executivo pode estabelecer algum tipo de cerceamento a essas instituições de controle, eu não vejo nenhuma chance de efetividade nisso. O que temos presenciado hoje não é fruto de um movimento recente, essas instituições de controle ganharam legitimidade e aproximaram a atuação da preferência mediana da população. Elas conseguiram o apoio da população. E os políticos estão muito vulneráveis diante disso.
“A reforma da Previdência é difícil. O FHC tentou, Lula tentou, Dilma tentou. Muita gente tentou e barrou”

Valor: Com Dilma, havia um conceito de “inflação” pelo qual se falava que quanto mais ela dava cargos na barganha, mais eles se desvalorizavam. Por que isso não ocorreu com Temer?

Pereira: O efeito de quebra da coalizão se dá por efeito cumulativo. Desde quando se inicia o governo e o presidente forma sua coalizão, ele sinaliza claramente para essa coalizão qual o tratamento que ele vai dar para os seus parceiros. A Dilma montou uma coalizão muito grande, de muitos partidos, muito heterogêneos, que não compartilhavam uma agenda comum. Ela não dividiu poder e recursos de forma proporcional com os parceiros desde o início e alocou muito mais recursos com os membros do próprio PT. O PT ocupou mais ministérios, recebeu mais emendas no orçamento, ocupou mais cargos na burocracia. Desde o início, a coalizão que a Dilma construiu não refletia a mediana do Congresso. Todas as decisões da Dilma conspiraram cumulativamente contra ela. Ela criou animosidades históricas com os parceiros. Não é no momento em que seu pescoço está para ser cortado ou não que vai adiantar gastar muita grana ou menos grana. Tem um efeito cumulativo nisso desde quando você lida com os partidos no início, de você premiá-los de acordo com o peso de cada um, de você ouvi-los, levá-los em consideração, apresentar propostas que refletem a preferência mediana dos parceiros, ter uma coordenação em que os parceiros se sentem representados por essa coordenação. Acho que o governo Dilma infelizmente cometeu esses erros básicos de gerência da coalizão e foram criados custos cumulativos. O PMDB no início do governo Dilma, embora tivesse o mesmo peso político do PT, tinha infinitamente menos ministérios e cargos na burocracia. Já o governo Temer, desde o início, deu sinais muito claros de que a coalizão seria diferente, o tratamento seria diferente. O PMDB não seria superprivilegiado. Isso gerou uma satisfação “ex-ante” dos parceiros, enquanto no caso da Dilma gerou uma insatisfação “ex-ante”. Gerou uma espécie de dívida histórica do PT perante seus parceiros.

Valor: O resultado da votação não pode levar a uma redistribuição dos cargos e ministérios do PSDB, devido à infidelidade dos tucanos?

Pereira: Acho que não. Acho que essa não é uma ameaça crível. Com relação talvez aos membros do PMDB, sim. Mas acho que em relação ao PSDB o governo Temer não vai querer criar arestas com o seu principal aliado. Acho que talvez ele sinalize com os membros do PMDB que porventura votem [contra Temer]. Já está havendo movimentos do PMDB contra a senadora Kátia Abreu, contra o senador Roberto Requião, o que mostra que o PMDB está disposto a punir os seus membros não fiéis ao governo Temer. Mas acho que em relação ao PSDB, não creio que o Temer vá correr esse risco. Acho que vai acomodar, vão fazer críticas, vão tentar constranger os parlamentares dissidentes internamente, mas não acho que vão chegar ao nível de cortar ministérios.

Valor: Isso pode criar um conflito na base?

Pereira: Pode ser que ocorra isso, uma reclamação na linha: “Nós que fomos mais fiéis a você e estamos recebendo menos”. Mas acho que a tendência maior do Temer é acomodar, acho que ele não vai cortar. Talvez aumente as transferências e benefícios para os setores que se sentirem prejudicados diante do maior apoio e menor prêmio, mas não ao ponto de romper ou coisa que o valha.

Valor: Qual a probabilidade de aprovação das reformas agora?

Pereira: Se o governo mostrasse uma vitória robusta, a agenda das reformas voltaria para o Congresso rapidinho. Com uma vitória apertada, o governo vai ficar mais constrangido, na defensiva. A tendência maior seria [em caso de vitória mais tranquila] aproveitar o momento e apertar o acelerador. Não teria sentido o governo ser mais tímido.

Valor: Mas com menos de 308 deputados, necessários para uma reforma constitucional, o cenário é favorável?

Pereira: Fica vulnerável. Sobrevive, mas dificulta a vida daqui para a frente. Mas a reforma da Previdência é difícil. É uma reforma que o Fernando Henrique tentou, Lula tentou, Dilma tentou. Muita gente tentou e barrou, aprovaram apenas pontos dela. Não vai ser fácil. Talvez essa mesma operação de guerra forjada para a sobrevivência do governo tenha que ser montada para a reforma da Previdência.


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Entrevista publicada na edição de 04/08/2017 do jornal Valor Econômico.

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