Transporte público precisa de um “SUS”, defendem pesquisadores da mobilidade

CEPESP  |  14 de agosto de 2020
COMPARTILHE

Uma ideia ainda utópica: transformar o atual vale-transporte em um modelo que seja uma espécie de “SUS da mobilidade urbana” foi um dos pontos defendidos, na última terça-feira (11/08), no segundo seminário online da série Cepesp nas eleições, que teve mobilidade como tema. O debate reuniu Clarisse Cunha Linke, diretora executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (IPTD), Ciro Biderman, coordenador do Cepesp e professor da FGV EAESP, e Hannah Arcuschin Machado, coordenadora de urbanismo e mobilidade da Vital Strategies

Para os debatedores, as soluções que os pesquisadores da mobilidade urbana já vinham defendendo há tempos – e que passam por alguma forma de taxação do usuário do transporte individual pelo uso do espaço urbano – foram reforçadas pelos desafios exacerbados com a pandemia. Ainda que no primeiro momento de  pós-pandemia a tendência seja de maior uso de carros ou motocicletas diante do risco de contaminação no transporte coletivo, o uso de novas tecnologias e de dados abertos, a integração de modais, o uso de veículos menores que permitam oferecer um transporte público sob demanda que concorra com os aplicativos, entre outras inovações, podem construir um modelo de transporte público sustentável, inclusivo e seguro. 

“Na pandemia, as cidades restringiram a oferta de transporte público, reduzindo a frota, fechando estações, aumentando o intervalo entre os ônibus e trens. E deveriam ter feito o contrário”, observou Linke, argumentando que essas medidas prejudicaram a população que mais precisa do transporte público, a que mora nas periferias. Neste sentido, ela defendeu que as mudanças no transporte coletivo precisam ter como foco uma concepção de espaço público, incluindo as ruas e avenidas, que seja inclusiva e cuja prioridade seja a população que mais  vulnerável, que na maioria dos locais está nas periferias das cidades. 

Biderman defendeu a implementação de uma taxa de congestionamento, que teria o custo de no máximo uma tarifa de ônibus e que seria paga pelos donos de carros em seus deslocamentos de ida e volta do trabalho. Ele mesmo classificou a proposta como utópica, mas acha que o cenário da pandemia abriu espaço propostas inovadoras e mais ousadas politicamente.

Hannah Machado lembrou que há tempos se discute uma maior cobrança pelo estacionamento em vias públicas como uma forma de desestimular o uso de carros e também melhorar a arrecadação do transporte, ajudando a sustentar todo o sistema. Ela lembrou que em São Paulo, desde 2014, o preço da Zona Azul (valor cobrado para os carros estacionados em vias públicas) está congelado em R$ 5 a hora, enquanto a tarifa de ônibus já foi reajustada várias vezes.

A taxa de congestionamento, proposta por Biderman, vai na mesma direção e concepção da cobrança por vagas em ruas. Biderman, contudo, vê a taxa como parte de um redesenho do vale-transporte. Para ele, o atual modelo do vale-transporte – que vem sofrendo tentativas políticas de desmembramento – é muito bom, por ser uma política pública focada e inclusiva. “O problema é que ela não atinge o setor informal”, observou o coordenador do Cepesp. Pelo atual modelo do vale-transporte, os trabalhadores do setor formal gastam no máximo cerca de 6% de sua renda com transporte público – valor baixo diante de outras despesas urbanas. Desta forma, seria importante ampliar esta política aos trabalhadores informais, de modo a incentivar o uso do transporte público e facilitar o deslocamento destas pessoas pela cidade. Outro ganho importante desta política é que o Poder Público obteria um cadastro do número de trabalhadores informais nas cidades,  dado importante para o planejamento desta e de  outras políticas públicas.  

Parte do subsídio deste modelo proposto seria feito através da receita obtida com a taxa de congestionamento e com um pequeno percentual de contribuição dos trabalhadores informais. Esta taxa seria uma forma de cobrar os donos de carro pelo uso do espaço público – como a manutenção das ruas por onde os veículos transitam – e os recursos arrecadados também permitiram melhorar o transporte coletivo. Ao criar o fundo e garantir que qualquer trabalhador, formal ou informal, só gaste 6% da sua renda com transporte público, a tarifa do ônibus poderia subir de acordo com os custos, garantindo o equilíbrio econômico-financeiro das operadoras de transporte. 

Linke observou que a proposta de um “sistema de transporte único” com a universalização do vale-transporte teria forte potencial inclusivo. De acordo com dados do Mapa da Desigualdade, feito pela ONG Casa Fluminenses, na maioria das regiões das 22 cidades da região metropolitana do Rio de Janeiro mais de um terço da renda da população é comprometida com transporte público. No entanto, a população das regiões centrais das cidades, mesmo pegando dois ônibus, gasta só 5% da renda com transporte público. “É uma desigualdade alarmante e precisamos pensar em formas de equilibrar essa situação”, disse a diretora do IPDT. E a solução, diz ela, passa por cobrar pelo uso privado das vias públicas. Parte da população, diz ela, pensa que transitar em velocidade nas ruas e avenidas e estacionar nelas sem pagar é um direito “inalienável”, mas essa é uma concepção que precisa ser questionada.

Biderman ainda manifestou preocupação com o projeto de lei (PL 3364/2020) que está transitando no Congresso Nacional e que embute uma ajuda de R$ 4 bilhões para o transporte público, para compensar perdas decorrentes da pandemia. “As empresas estão pré-falimentares, é verdade, mas em política pública nem sempre você deve atirar no que vê de cara. Se o dinheiro sair direto para as empresas, vão se salvar oito grupos e vai diminuir ainda mais a competição em um mercado já cartelizado”, explicou o coordenador do Cepesp.

Durante os debates, perguntas sobre uso de bicicletas, bicicletas elétricas, planos de mobilidade nas cidades e se eles estão preparados para pandemias. Os dois debatedores ampliação da mobilidade ativa (como maior uso de bicicletas e patinetes) e a importância de trabalhar com integração de modais. Biderman também contou que em São José dos Campos, o novo modelo de concessão pública, elaborado em parceria entre o Cepesp e a prefeitura, tem como uma das inovações ônibus sob demanda fora das áreas centrais da cidade. 

Para assistir a gravação do webinar, clique aqui.

Deixe seu comentário