Avenidas de todo o Brasil foram tomadas pelo grito: “Vem pra rua contra o aumento!” Depois de anos adormecida, a população se mobilizou e quer mais qualidade no transporte público. A causa é justa, mas é preciso entender os possíveis caminhos para chegar lá.
Artigo de Ciro Biderman publicado na revista GV Executivo.
Em junho deste ano, manifestações mudaram a calmaria política que pairava no Brasil há anos. Partindo de uma demanda aparentemente pontual em São Paulo — a revogação do aumento de 20 centavos na tarifa do transporte público — o Movimento “Passe Livre” (MPL) ganhou força nacional e levou milhares de pessoas às ruas das principais capitais brasileiras. A intenção deste artigo é discutir os motivos das manifestações, partindo das reinvidicações nas políticas públicas de transporte.
É curioso, mas talvez a participação política hoje seja muito mais dinâmica do que antigamente — quando se passava o dia inteiro discutindo a palavra de ordem e a resolução dos conflitos — substituindo profundidade por velocidade. De toda forma, a superficialidade individual permanece, já que a complexidade só tem sentido em ações coletivas. O grande risco é de o movimento se tornar absolutamente inócuo e não conseguir alterar o status quo. Isso foi o que ocorreu, por exemplo, no Occupy Wall Street, em 2011: movimento contra a desigualdade econômica e social que levou milhares de pessoas ao distrito financeiro de Nova York e depois se espalhou por outras cidades dos Estados Unidos e do mundo. Apesar de sua intensidade e do espaço que alcançou na mídia, o movimento não causou (até agora) transformações efetivas.
As manifestações por todo o Brasil representam uma oportunidade única de se mudar o status quo vigente. No entanto, se não houver cuidado, podemos perder essa chance e toda a mobilização terá sido em vão. A principal questão é: de quem é a rua? Hoje em dia, ela é dos carros. Se quisermos mudar o ambiente urbano, os pedestres, os ciclistas e o transporte público precisam ter maior participação nesse espaço.
CONFLITOS NO TRANSPORTE
Depois de anos alienados dos problemas do País, os jovens foram para as ruas questionar a política de transporte público, que ganhou, então, o seu merecido espaço. Apesar da admiração que esse grupo merece, a proposta de redução da tarifa está apenas na superfície do problema. Para enfrentá-lo com maior chance de sucesso, é necessário encarar a discussão sobre os conflitos que estariam por trás dessa proposta.
O primeiro conflito é orçamentário, pois, com um orçamento equilibrado, é necessário aumentar impostos ou reduzir investimentos. O segundo encontra-se nos diferentes tipos de transporte, pois, ao favorecer o público retira-se espaço do particular, afetando a articulação entre os modais (sobre trilhos, rodas etc). O terceiro relaciona-se com a atual gestão do sistema, seja para aumentar sua eficiência, seja para reduzir a corrupção.
QUEM GANHAC OM A REDUÇÃO DA TARIFA?
Apesar de muitos pensarem que a redução da tarifa beneficia mais os pobres do que os ricos, isso não é necessariamente verdade. No mercado de trabalho formal, o vale-transporte desconta no máximo 6% do salário do trabalhador. Esse valor não depende do preço da passagem, mas sim de sua remuneração. Uma pessoa que recebe R$ 2 mil pagaria R$ 120 (6% de R$ 2 mil). Caso a tarifa aumentasse para R$ 3,20, esse trabalhador continuaria gastando R$ 120, pois é o teto referente ao seu vale transporte. Assim, o retorno da tarifa para R$ 3,00 beneficia apenas os que ganham acima de R$ 2 mil por mês.
É possível que a diminuição da tarifa tenha um efeito progressivo no mercado informal, beneficiando os que têm remuneração mais baixa e não recebem o vale-transporte. No entanto, há controvérsias nesse ponto pelo fato de muitos trabalhadores que não são registrados terem rendimento médio superior ao assalariado formal.
Outros beneficiários seriam turistas e usuários eventuais. Se considerarmos que o desempregado têm direito a transporte gratuito por um determinado período e que os estudantes usam o sistema intensivamente (do ensino médio em diante), é difícil acreditar que o impacto da tarifa seja efetivamente progressivo (ou seja, beneficie mais os pobres do que os ricos).
A única maneira de transformar essa política seria cobrar a conta dos usuários de carro. Se aumentarmos a carga tributária sobre esse grupo, teríamos como compensar o fato de que a redução da tarifa do transporte público beneficia mais os usuários que possuem maior poder aquisitivo.
UMA NOVA ALTERNATIVA PARA O CONFLITO MODAL
Uma maneira de chegar a uma tarifa mais baixa em longo prazo é diminuir o espaço ocupado pelos carros. Imagine que a velocidade dos veículos do transporte público dobre. Nesse caso, o mesmo ônibus será capaz de realizar o trajeto na metade do tempo, sendo necessária apenas metade do número de veículos e metade da quantidade de motoristas e cobradores para oferecer o mesmo serviço que se tem hoje. Como o custo de operação dos veículos (incluindo mão-de-obra) representa cerca de 80% do custo total do sistema, dobrar a velocidade dos ônibus significa uma redução de 40% nesse custo do transporte público sobre rodas.
Uma alternativa para aproveitar o espaço retirado dos carros — que está nos planos da prefeitura e representa uma mudança estrutural nos transportes — é a implantação do chamado Bus Rapid Transit (BRT), uma rede de corredores totalmente isolada, com espaço para ultrapassagem e entrada pré-embarcada. Essa é a única maneira de dobrar a velocidade de um sistema de ônibus no horário de pico. Uma rede de 500 km de BRT pode atender metade das viagens realizadas em ônibus tradicionais. A criação de uma rede de metrô seria de oito a dez vezes mais cara. Não é à toa que o valor da passagem em Londres custe cerca de R$ 10, em Paris mais de R$ 5 e em Tóquio, chegue a R$ 15. Em todas essas cidades, o subsídio percentual é consideravelmente maior do que em São Paulo, pois o sistema estrutural de transporte é o metrô-ferroviário.
É curioso que o conflito modal (entre tipos diferentes de transporte) tenha sido ignorado pelas manifestações. Essa é certamente a chave para uma mudança efetiva do transporte público. Um sistema sem velocidade tem alto custo e não é capaz de atender às necessidades das milhares de pessoas que dependem do transporte de massa em uma cidade como São Paulo.
TEMPO DE DESLOCAMENTO OU REDUÇÃO NA TARIFA?
Em minha visão, a qualidade do serviço é muito mais relevante do que o seu preço. Em 2010, o custo da passagem para o usuário em São Paulo equivalia, em média, a 14 minutos de trabalho por dia — número bem acima da maioria dos países desenvolvidos. Portanto, uma redução de 14 minutos no tempo de deslocamento traria o mesmo benefício da tarifa zero. Significa que a diminuição de 20 centavos na passagem representaria uma economia de tempo equivalente a menos de 1 minuto. Em outras palavras, nesse contexto, a redução no tempo de deslocamento representa um benefício monetário maior do que o valor da tarifa.
Com uma rede de transporte de alta qualidade, podemos pensar no aumento do subsídio. Claro que os ganhos de produtividade podem ser incorporados na tarifa durante o investimento, mas a proposta apresentada aqui prioriza o investimento em qualidade, em face do aumento no preço da passagem. O governo é muito mais relevante como investidor do que no custeio do transporte, principalmente pelo fato dos mecanismos de proteção às fraudes dificultarem a gestão do sistema. Mas há outras opiniões.
O MONSTRO EM MOVIMENTO
Parece-me que a figura para descrever as manifestações é a de uma rede. A palavra de ordem — tarifa zero — funcionou como um vírus, que conquistou os participantes e colocou o “monstro em movimento”. O MPL mostrou-se capaz de influenciar diretamente nas decisões de políticas públicas e serve como exemplo na luta por melhorias, pois foi feita de forma consciente, com os participantes requisitando seus direitos por uma causa justa.
Esse poder de mobilização que permitiu a influência direta da população na política de transporte geraria uma capacidade de monitoramento nunca alcançada pelas autoridades. Em um mercado sem concorrência, faltam incentivos para a busca da eficiência, pois o objetivo dos atores do mercado (incluindo o setor público) é fornecer o serviço. Para eles, conviver com uma tarifa defasada exige que a eficiência e a qualidade sejam prioridades, sobretudo se houver cobrança da sociedade.
Se pensarmos que esse foi o início de uma batalha e não o fim da guerra, o movimento pode incentivar uma transformação efetiva no status quo; esse é o seu objetivo mais profundo. As pessoas geralmente têm medo do novo e, em geral, adotam uma posição conservadora, sobretudo quando se fala em políticas públicas urbanas. O movimento abriu a possibilidade de melhorias e desenvolvimento, mas o filme está apenas começando e, até agora, ninguém sabe quem são os vilões e nem para quem torcer. A sociedade não pode mais se omitir; a hora é essa e não depende somente do governo.
Transporte público de qualidade a preços módicos já!
Vamos juntos nessa.