Por Hannah Maruci Aflalo, Ivan Mardegan, Catarina Barbieri e Luciana de Oliveira Ramos*
A desigualdade de gênero e raça na política brasileira é confirmada e atualizada a cada resultado eleitoral. Embora existam mudanças nas regras eleitorais entre os pleitos, um elemento permanece constante: a maioria dos eleitos são homens brancos. Para compreendermos a causa da repetição desse padrão é preciso analisarmos a distribuição dos recursos financeiros. Ainda que não seja uma garantia do sucesso eleitoral, é fato que sem dinheiro não há campanha. Portanto, a desproporcionalidade da distribuição dos recursos financeiros possui uma ligação direta com a desigualdade na composição dos representantes eleitos.
No livro “Candidatas em jogo: um estudo sobre os impactos das regras eleitorais na inserção de mulheres na política”, analisamos a distribuição dos recursos financeiros nas eleições de 2014 e 2018. As regras eleitorais sobre financiamento sofreram importantes mudanças entre esses dois pleitos: implementou-se o Fundo Eleitoral de Financiamento de Campanha (FEFC), e definiu-se que no mínimo 30% desse fundo deveria ser direcionado a campanhas de mulheres. A instituição de um fundo público com cota de gênero combinado à proibição da doação de empresas para as campanhas criou a expectativa de uma distribuição mais justa do dinheiro (pelo menos em termos de gênero). No gráfico abaixo calculamos a relação entre a porcentagem de candidaturas e a porcentagem de recursos recebidos pelas candidaturas e organizamos os dados em quatro grupos considerando os marcadores de gênero e raça: mulheres negras, mulheres brancas, homens negros e homens brancos.
Fonte: TSE, Elaboração própria
Esses resultados mostram que a promessa de uma distribuição mais igualitária dos recursos financeiros se realizou em partes. Se de um lado as mulheres e os homens negros continuaram sendo subfinanciados, de outro, identificamos uma tendência à diminuição dessa desigualdade. Chamou a atenção o crescimento proporcional dos recursos para mulheres brancas, aproximando-as de uma relação equilibrada entre porcentagem de candidaturas e porcentagem de recursos. Essa mudança apontou para um efeito positivo das novas regras de financiamento nas eleições de 2018.
Nas eleições municipais, encontramos a mesma tendência, mas potencializada. Esse ano, tivemos o primeiro pleito municipal regido pelas novas regras de financiamento de campanhas, aprovadas em 2017, e a cota de gênero para distribuição do FEFC. Também em 2020 passou a valer uma nova regra, que determinou a distribuição proporcional dos recursos financeiros para candidaturas negras. Em termos absolutos, o primeiro dado que salta aos olhos e que vem sendo explorado pela mídia é o descumprimento das cotas de gênero pelos partidos políticos. De fato, considerando as candidaturas a vereança e à prefeitura, as mulheres foram 30,7% e receberam apenas 25,9% do total dos recursos. Se olharmos apenas para as candidaturas para o cargo de vereadora, elas são 33% do total e a porcentagem de recursos foi maior, totalizando 37,6%. Mas esses números não nos contam a história toda. Precisamos também analisar a distribuição desses recursos entre candidatas/os negras/os e brancas/os.
Assim, o gráfico abaixo compara a proporcionalidade da distribuição do dinheiro nas eleições para as Câmaras Municipais de 2016 e 2020, levando em conta raça e gênero:
Os resultados apresentados são surpreendentes. As mulheres tiveram um aumento evidente na quantidade de dinheiro recebida em relação ao número de candidaturas. As mulheres brancas passaram a ser o grupo com maior sobre-financiamento (1,250), seguidas pelos homens brancos (1,064). As mulheres negras também tiveram um aumento significativo de recursos de campanha em comparação ao número de candidaturas, aumentando seu índice de 0,722 em 2016 para 1,022 em 2020, atingindo a proporcionalidade. Embora tenham superado os homens negros e colado nos homens brancos na relação entre proporções de candidaturas e recursos, a diferença das mulheres negras em relação às mulheres brancas ficou maior e elas ainda são o grupo com menor participação entre candidaturas e recursos, mesmo representando uma parcela maior da sociedade brasileira. Os homens brancos e negros tiveram uma diminuição importante e relativamente parecida na quantidade de recursos de campanha recebidos em relação ao número de candidaturas de cada um desses dois grupos. Para os brancos, a redução representou praticamente o fim do sobre-financiamento que tiveram em 2016. Já os homens negros são o único grupo subfinanciado proporcionalmente nas eleições de 2020.
Uma hipótese que pode explicar as mudanças em relação ao financiamento baseado na raça tem a ver com a conjugação de pelo menos três regras: (i) as cotas de gênero de candidaturas (previstas na Lei Federal nº. 9.504/1997), e (ii) as regras de financiamento eleitoral para mulheres e (iii) para candidaturas negras (provenientes de decisões do TSE e do STF). A obrigatoriedade de destinação de recursos para mulheres e para pessoas negras pode ter impulsionado a destinação de recursos para as mulheres negras, o que mostra que essa normativa surtiu o efeito desejado.Para visualizarmos melhor essas mudanças, dividimos os resultados em dois gráficos, um para cada um dos pleitos. Os pontos azuis representam a porcentagem de candidaturas e os pontos amarelos, a porcentagem de recursos. Quanto mais próximos esses pontos estiverem, mais proporcional a distribuição dos recursos. Quanto mais distantes, portanto, menos proporcional. E mais recursos do que candidaturas indicam um sobre-financiamento, enquanto o contrário, um sub-financiamento.
Em 2016, os homens brancos foram o grupo mais sobre-financiando, seguido pelos homens negros, mulheres brancas e, por fim, mulheres negras. Em 2020, por sua vez, as mulheres brancas se tornaram o grupo mais sobre-financiado, seguidas pelos homens brancos, mulheres negras e, por último, pelos homens negros. Assim, a hierarquia na distribuição dos recursos se alterou. Em 2016, a divisão por gênero era marcante, em 2020 a divisão passou a ser por raça.
O crescimento do financiamento das mulheres foi evidente em 2020 e isso deixa mais intrigante o fato dele não ter se refletido no aumento da porcentagem de eleitas (pelo menos não com a mesma intensidade). Entre 2016 e 2020, a quantidade de vereadoras eleitas subiu pouco mais de dois pontos percentuais, de 13,5% para 16%. Por isso, antes de comemorarmos uma melhora no que diz respeito à candidatura de mulheres brancas, precisamos questionar qual a barreira que se coloca entre o dinheiro e a eleição dessas candidaturas. Esse dinheiro foi efetivamente utilizado nas campanhas? Entrou no momento adequado? Foi alocado de forma estratégica ou apenas para cumprir a cota?
Esses resultados mostram que a mudança das regras surtiu efeito, melhorando a equidade na distribuição de recursos eleitorais. Mas eles também são um sinal de alerta, revelando que o marcador de raça se tornou o elemento de desigualdade mais relevante. Precisamos olhar para esses números de maneira mais cuidadosa para entender qualitativamente como foram feitos os gastos de campanha, pois uma análise exclusivamente quantitativa dos recursos eleitorais não é suficiente para extrairmos conclusões mais aprofundadas sobre o tema.
Apesar da distribuição oficial de recursos demonstrar uma redução na desigualdade de gênero e raça, ainda existem muitos desafios a serem superados, como o número ainda reduzido de candidaturas de mulheres, especialmente mulheres negras, a qualidade dos gastos dessas campanhas e a relação disso com a competitividade delas. Ao invés de considerarmos esses resultados como respostas, nós os entendemos como balizadores para uma nova pergunta: Se as mulheres receberam dinheiro, por que então esse dinheiro não está sendo revertido em votos? Esperamos, em breve, trazer uma resposta para essa importante pergunta.
Junto com o livro “Candidatas em jogo”, a equipe da pesquisa produziu três vídeos. Um deles é sobre financiamento. Você pode assistí-lo neste link
*Hannah Maruci Aflalo é doutoranda em Ciência Política e co-fundadora d’A Tenda das Candidatas; Ivan Mardegan é doutor em Administração Pública e Governo e pesquisador do Cepesp; Catarina Barbieri e Luciana de Oliveira Ramos são professoras da FGV Direito SP e pesquisadoras do CEPESP/FGV.
Este é o quinto artigo da série “CANDIDATAS EM JOGO” que aborda (e em alguns casos atualiza para as eleições de 2020) temas presentes na pesquisa “Democracia e representação nas eleições de 2018: campanhas eleitorais, financiamento e diversidade de gênero”, da FGV Direito SP e do CEPESP/ FGV, que deu origem ao livro “Candidatas em Jogo”