Por Marcelo Castro e Enlinson Mattos*
Até que ponto o aumento do gasto em saúde reduz a propagação de doenças infecciosas em municípios vizinhos, especialmente quando feito de forma descentralizada? O atendimento médico nos municípios do interior pode reduzir a pressão por hospitalização nos grandes centros? Entender os efeitos espaciais dos gastos municipais em saúde é fundamental para coordenar as ações entre os diferentes entes, especialmente diante de uma das maiores crises de saúde pública da história.
Uma dúvida importante é se o atendimento primário é suficiente para reduzir a demanda hospitalar no caso de doenças infecciosas respiratórias como a COVID-19, cujo tratamento é geralmente a mitigação de sintomas. Além disso, não sabemos em que medida o gasto em saúde empenhado de forma descentralizada pelos municípios brasileiros pode beneficiar as cidades vizinhas. As interações entre os municípios ocorrem devido à mobilidade da população em busca de serviços de saúde, aos ganhos de escala na provisão de serviços de saúde e à propagação de doenças infecciosas.
Do ponto de vista metodológico, o principal obstáculo para estimar o efeito causal dos gastos públicos – tanto direto, quanto os “transbordamentos” sobre os vizinhos – , é que existe uma correlação natural de despesas e indicadores de saúde, e essas variáveis estão correlacionadas espacialmente. Em um experimento ideal, nós desejaríamos randomizar o gasto em saúde entre cidades, mantendo as características potenciais dos vizinhos constantes.
Em pesquisa em andamento, nós utilizamos uma variação quase-experimental dos gastos municipais em saúde induzida pela transferência do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), o principal repasse do governo federal aos municípios brasileiros. A legislação estabelece que essa transferência deve ser feita de acordo com faixas de população. Utilizamos a variação anual entre as faixas devido ao crescimento populacional, que depende das tendências estaduais e nacional, como fonte de variação exógena na transferência recebida por um município.
Os resultados mostram que municípios que mudam para uma faixa superior recebem mais FPM e gastam mais em saúde. Olhando os efeitos sobre os vizinhos, nós vemos que os vizinhos menores reduzem o gasto em saúde (indicando uma possível competição vertical), enquanto os vizinhos com maior população gastam mais em saúde (indicando uma complementaridade fiscal).

As cidades pequenas, teoricamente, tendem a se beneficiar mais do aumento de gastos e insumos nos vizinhos grandes: tanto porque seus cidadãos podem utilizar os recursos dessas cidades, e também devido à redução na prevalência de doenças infecciosas em toda a região quando um vizinho populoso gasta mais em saúde. Por outro lado, as cidades maiores podem se beneficiar dos altos ganhos de escala dos serviços de saúde pública, provendo mais recursos e de maior complexidade do que as cidades pequenas.
Quando incorporamos os efeitos spillover na avaliação de impacto, constatamos que a transferência de FPM aumenta a concentração de recursos de saúde nas cidades maiores, potencialmente devido aos ganhos de escala, enquanto os gastos dos vizinhos pequenos são reduzidos. Um dos objetivos das transferências intergovernamentais é equalizar os gastos entre os municípios, mas no caso do FPM o efeito sobre gastos de saúde é o contrário.
A redução dos gastos em saúde nos municípios vizinhos pequenos não é, necessariamente, ineficiente, uma vez que os resultados de saúde melhoram nesses locais devido às externalidades positivas. Esses ganhos abrem espaço para que os municípios menores gastem mais em outras áreas, como na educação básica.
O aumento dos gastos em saúde induzido pelo aumento de transferência melhora os indicadores de saúde, como a mortalidade infantil e de idosos com mais de 60 anos, tanto no município que gasta mais, quanto em seus vizinhos.


Da mesma forma, há uma redução na quantidade per capita de internações por doenças infecciosas respiratórias de até 3% para cada 1% a mais de gasto em saúde. O efeito sobre internações de idosos com mais de 60 anos por doenças respiratórias é ainda maior: cerca de 20%.

Olhando os dados de internação por local do hospital, vemos que a quantidade de pessoas internadas em hospitais localizados em municípios vizinhos também diminui, tanto nos maiores quanto nos menores vizinhos. Os efeitos espaciais nos vizinhos fronteiriços são maiores quando olhamos os dados de hospitalização por local de residência, indicando uma redução na demanda hospitalar em municípios ainda mais distantes, potencialmente as grandes cidades que contam com melhor estrutura hospitalar.
Em termos da oferta de insumos e profissionais de saúde, encontramos aumento apenas no número de médicos per capita. Essas evidências mostram que o atendimento primário pode conter a propagação e a piora de doenças infecciosas respiratórias e gastrointestinais. Em geral, doenças infeciosas são evitáveis com medidas simples e não possuem um tratamento específico, em grande parte se resumindo ao alívio dos sintomas. No caso de síndromes gripais, pode haver um acometimento maior da função pulmonar e a necessidade de hospitalização intensiva nos piores casos.
Dada a rede capilarizada do SUS, aliada à abrangência do programa Saúde da Família, o Brasil pode controlar a crise do COVID-19 ampliando o atendimento primário nas pequenas e médias cidades com até cerca de 50 mil habitantes, onde a epidemia avança nesse momento. Diagnóstico preciso, isolamento e recomendações médicas para prevenção da piora da doença podem ajudar a desafogar a demanda nos grandes centros. Mesmo que não haja testes precisos, as autoridades locais podem identificar rapidamente surtos de casos com sintomas de COVID/gripe e tomar as medidas necessárias.
A grande maioria dos municípios brasileiros possui no máximo um hospital municipal. Quase 40% dos municípios não contam com nenhum leito hospitalar e menos de 1% dos municípios concentram cerca de 40% dos leitos (dados de fevereiro/2020). Isso significa que muitos pacientes devem ser transferidos para outras cidades com estrutura hospitalar em caso de agravo. Fortalecer a rede do programa saúde da família e da atenção básica em postos de saúde pode “amortecer” o excesso de demanda por leitos nas grandes cidades.
Os dados do SUS também indicam um efeito negativo do aumento de gastos em saúde sobre a taxa de hospitalização por outras doenças infecciosas, especialmente as gastrointestinais. O atendimento primário também pode ajudar a reduzir a demanda total por internação por diversas causas, aumentando a disponibilidade de recursos para o enfrentamento da COVID-19. Menos pessoas indo aos hospitais, muitas vindas de cidades pequenas para os grandes centros, significa menor circulação do vírus, ajudando a reduzir a incidência da doença.
*Marcelo Castro é professor de Economia do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia; Enlinson Mattos é professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EESP-FGV) e pesquisador do Cepesp