Por Luísa B. Arantes *
De que forma os governos têm respondido à epidemia do novo coronavírus? Qual o tempo de resposta entre os primeiros casos e as ações de enfrentamento da epidemia? Talvez mais importante: como e por que essas medidas foram adotadas? Essas são questões que tem intrigado os cientistas sociais de diversos países. A epidemia tem vetores de transmissão semelhantes – mas as respostas para lidar com ele são diferentes.
Na última semana, quem ganhou atenção foi a Espanha – que na quinta-feira (2) atingiu novo recorde diário de mortes, ultrapassando as 10 mil mortes e mais de 110 mil casos confirmados. Assim como no Brasil, as primeiras medidas tomadas na Espanha, na segunda semana de março, foram iniciativa dos governos regionais (as Comunidades Autônomas) – como a suspensão de aulas nas escolas e universidades entre os dias 11 e 12 de março. No dia seguinte, já com mais de 4 mil casos confirmados e 121 mortos, o presidente Pedro Sánchez unificou a luta contra a epidemia, anunciando o Decreto de Alarme. O decreto suspendeu as autonomias regionais e centralizou o poder em Madrid, limitou a circulação de pessoas e conferiu poderes excepcionais ao Estado (como o de intervir e ocupar temporariamente bens privados, como fábricas, oficinas, e, sobretudo, hospitais, disponibilizando-os à rede pública).

Desde então, o debate sobre a atuação do governo espanhol se acentuou: alguns elogiavam a capacidade de Pedro Sánchez obter apoio, ainda que com ressalvas, dos governos regionais e da oposição. Outros criticavam não só a demora como a qualidade das estratégias adotadas. O número de críticos durante estas duas semanas e meia de quarentena parece ter aumentado.
Surpreendentemente, cinco dias antes de decretar o confinamento, no dia 8 de março, o governo não só permitiu como incentivou manifestações massivas pelo Dia Internacional da Mulher em Madrid. Na época, o país já tinha quase 600 casos confirmados, sendo mais de um terço na capital. O partido de extrema direita, Vox, realizou um comício nesse mesmo dia, atraindo mais de 9 mil pessoas em Madrid. Tanto a ministra de Igualdade, Irene Montero, que participou das manifestações pelo Dia Internacional da Mulher, quanto o líder e o secretário geral do Vox, Santiago Abascal e Javier Ortega Smith, testaram positivo para Covid-19 dias depois dos eventos.
Além disso, a demora em formar uma coordenação regional e para implementar as medidas anunciadas, somadas a uma comunicação ineficiente com a população, também causaram problemas no país. As aulas presenciais foram canceladas em Madrid, na Catalunha e no País Basco apenas três dias depois das manifestações, porém parques, restaurantes, bares e discotecas continuaram funcionando – muitos jovens, sem informação adequada sobre a seriedade da situação, entenderam a suspensão das aulas como férias antecipadas, e salieron de fiesta.

O Decreto de Alarme teve o mesmo efeito: anunciado na sexta-feira, dia 13 de março, a medida só entrou em vigor na segunda-feira, dia 16. Durante o final de semana, milhares de madrileños abandonaram a capital e foram aproveitar a quarentena em regiões menos afetadas pela epidemia. Estudantes universitários de Madrid e Barcelona também se deslocaram pelo país antes da redução dos voos, voltando às casas de suas famílias em outras Comunidades Autônomas menos afetadas. E o fizeram sem qualquer dificuldade: não havia nenhum tipo de controle sanitário nos aeroportos das grandes cidades. Assim, o Decreto de Alarme, que tinha como objetivo limitar a circulação de pessoas, teve como efeito imediato o aumento significativo do deslocamento de jovens – população na qual infecções assintomáticas são comuns – pelo país. De nada adianta medidas de isolamento social se não forem implementadas de forma imediata, acompanhadas de comunicação eficiente com a população, e com vigilância das equipes de saúde e segurança pública.

Outra situação que chamou a atenção da comunidade internacional é a situação das casas de repouso e dos profissionais de saúde. Depois de dezenas de mortes em asilos públicos e privados, as Forças Armadas foram convocadas para desinfetar os estabelecimentos e encontraram idosos mortos em suas camas. Em situações em que o falecimento possa ser relacionado ao Covid-19, os corpos devem permanecer em suas camas até que sejam retirados por agentes funerários – o que pode levar até 24 horas em Madrid. Aparentemente, a causa do contágio acelerado nas casas de repouso se deve a falta de materiais essenciais (como luvas, máscaras, termômetros, desinfetantes) para atender dezenas de idosos por asilo. O mesmo parece ocorrer nos hospitais das Comunidades Autônomas mais afetadas. Em 22 de março, aproximadamente 12% dos infectados no país eram trabalhadores da área da saúde – o que também atribui-se à falta de equipamentos de proteção e à lotação dos hospitais.
O governo foi negligente ao não agir de forma imediata e efetiva? Se até meados de março os especialistas divergiam sobre o assunto, hoje parece mais evidente que as medidas de isolamento social deveriam ter sido colocadas em prática o quanto antes. Ao que parece, essa decisão por parte das autoridades sanitárias atribuía-se à confiança na capacidade do sistema de saúde espanhol. Em fevereiro, o diretor do Centro de Coordenação de Alertas e Emergências, Fernando Simón, avaliou que “quando um sistema de saúde está saturado, como foi o caso em Wuhan, é normal que os serviços de saúde sejam insuficientes e pode haver maior mortalidade” e afirmou que a Espanha está preparada para qualquer cenário possível.
O governo central não foi o único a apostar todas as fichas no sistema nacional de saúde espanhol. Especialistas nas Comunidades Autônomas também tinham percepção semelhante, como é o caso do renomado médico e pesquisador catalão, Oriol Mitjá, que dizia, a princípios de fevereiro, que “o coronavírus causa alarme porque é novo, e não porque é grave“, e que o sistema de saúde espanhol está preparado para lidar com o vírus. Hoje, Mitjá adota discurso radicalmente diferente. No Twitter, questionado sobre sua mudança de opinião, Mitjá reconheceu atribuiu seu erro ao etnocentrismo, pois, assim como Simón, não imaginava que o que ocorreu na China pudesse acontecer na Espanha.

As comunidades autônomas tiveram protagonismo no enfrentamento ao Covid-19 e as ações mais coordenadas só apareceram tardiamente. Esse atraso se deu tanto pelo excesso de confiança no sistema de saúde, como por subestimar a gravidade da epidemia. A falta de uma comunicação efetiva com a população e de insumos de saúde adequados pode ter levados milhares de mortes e infecções desnecessárias. Se os países têm aprendido uns com os outros no controle da pandemia, a lição que fica da Espanha é que o autoengano em relação aos impactos do coronavírus no sistema de saúde e a negação pública do efeito disso na vida dos cidadãos podem ser fatais.
*Luísa B. Arantes é mestranda em Administração Pública e Governo EAESP/FGV, bolsista Fapesp (2019/25141-2) e pesquisadora do CEPESP/FGV