A aderência do Brasil às diretrizes da Organização Mundial da Saúde na pandemia de COVID-19

CEPESP  |  2 de setembro de 2020
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Por Beatriz Portella e Luísa Arantes*

A Organização Mundial da Saúde (OMS) ganhou grande destaque no ano de 2020 devido a seu protagonismo na resposta global à pandemia de COVID-19.A organização, contudo, não atua sozinha, ela depende da adesão dos países as suas orientações. Alguns países duramente afetados no início da pandemia, como Itália e Espanha, conseguiram reduzir drasticamente o nível de contágio por meio da adoção de medidas alinhadas às diretrizes da OMS. Já os Estados Unidos, sob a gestão Trump, representam um caso extremo de rompimento com a agência internacional. Mas afinal, como se dá a adesão dos países às orientações sugeridas pela OMS para situações de crise de saúde pública?

O papel da OMS em emergências de saúde é definido pelo Regulamento Sanitário Internacional (RSI) de 2005. É neste regulamento que se define, por exemplo, em quais circunstâncias o Diretor-Geral da OMS deve declarar Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII). Desde a reformulação do RSI em 2005, a OMS já decretou ESPII seis vezes, sendo a última em 30 de janeiro de 2020, referente ao surto do novo coronavírus.

O regulamento de 2005 apresenta novidades em relação às outras versões do RSI (de 1951 e 1969), como o fato de ser válido para qualquer possível agravo – o RSI de 1969 previa ações apenas para febre amarela, peste bubônica e cólera. A ampliação do escopo foi motivada pelo aumento do comércio e de viagens internacionais e pelo constante surgimento de ameaças à saúde pública. Propondo uma vigilância mais proativa e de validade internacional, o RSI 2005 fundamenta-se e exerce o papel coordenador da OMS, permitindo a redução de barreiras sanitárias (Lima & Costa, 2015). Para tal, prevê uma série de medidas a serem adotadas pelos países signatários – como a instalação de estruturas mínimas para satisfazer as exigências de vigilância sanitária e o fornecimento de informações relevantes de saúde pública à OMS.

No entanto, apesar de ser um acordo vinculante, o RSI 2005, assim como a OMS, não tem poder de enforcement. Diferentemente dos acordos internacionais de caráter impositivo – como aqueles firmados no âmbito da Organização Mundial do Comércio – a implementação das medidas previstas no regulamento sanitário depende do esforço legislativo e executivo dos governos de cada país – o que, se sabe, não são tarefas simples. Além disso, o formato que essas regras recebem em cada país é condicionado ao contexto institucional local. Legislar sobre e implementar medidas de controle sanitário internacional envolvem questões polêmicas, de restrição de liberdades individuais – como quarentenas forçadas – e de grande impacto econômico – como o fechamento de fronteiras.

O Brasil, país-membro da OMS e signatário do RSI 2005, ratificou e aprovou o regulamento por meio do Decreto Legislativo 395/2009. No entanto, a adoção do regulamento no Brasil enfrentou alguns desafios, fruto de um conflito entre as estruturas sanitárias já existentes no país e as medidas previstas pelo RSI. Destes desafios, destaca-se um de grande impacto na resposta à COVID-19: o arcabouço legal brasileiro referente à vigilância epidemiológica baseia-se em uma lei antiga (Lei 6.259/1975), que não foi atualizada, apesar do RSI 2005. A lei não detalha de forma adequada os instrumentos de controle epidemiológico em casos de emergências de saúde pública; e, aprovada durante a ditadura militar, não prevê como as medidas de restrição de liberdade – como quarentenas, rastreio de contatos e isolamentos – devem ser implementadas sem ferir as liberdades democráticas e os direitos humanos( Lima&Costa, 2015, Aith, 2020). 

A ausência de uma lei de vigilância adequada e atualizada é crítica em momentos de emergências em saúde. Com efeito, durante surtos como da chikungunya e da zika (2016) e agora, de COVID-19, são aprovadas leis em caráter emergencial (Lei 13.301/2016 e Lei 13.979/2020) que determinam medidas de vigilância voltadas exclusivamente para estes agravos. Entre a chegada do agente infeccioso no país e a aprovação da lei emergencial, no entanto, há um intervalo de tempo que pode ser prejudicial. Como exemplo, em fevereiro deste ano, o presidente Bolsonaro afirmou diversas vezes que o resgate de brasileiros na China não era “oportuno” pela falta de respaldo legal para exigência de quarentena.  A repatriação só foi conduzida após a aprovação da referida lei 13.979/2020, que permite a imposição de quarentenas. 

Em meio a esse cenário de emergência internacional de saúde pública, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA),  responsável pela regulamentação e fiscalização sanitária de empresas e produtos, e pelo Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS), também empreende esforços complementares para responder às emergências em saúde. A ANVISA integra o Centro de Operações Estratégicas do Coronavírus, sendo um agente importante na resposta brasileira à atual crise. Estudos em regulação sanitária internacional (David Vogel, 1995), indicam que organizações internacionais têm um papel importante na coordenação global das políticas sanitárias domésticas. Assim, por meio da análise das Notas Técnicas e das Resoluções de Diretório Colegiados emitidas pela agência, observa-se uma série de alterações normativas importantes para adaptar a vigilância sanitária para a resposta à COVID-19 e alinhadas com as orientações da OMS. 

Linha do tempo (síntese) das ações da ANVISA frente ao COVID-19


Fonte: Elaboração própria, com base em Notas Técnicas e Resoluções de Diretórios Colegiados da ANVISA (em http://portal.anvisa.gov.br/coronavirus/linha-do-tempo)

Há três momentos cruciais da atuação da ANVISA frente ao combate do coronavírus. O primeiro corresponde aos meses de janeiro-fevereiro, no qual a agência focou em atualizar os protocolos pré-existentes de medidas sanitárias, alterando diretrizes para os pontos de entradas, como portos, aeroportos e fronteiras terrestres; e ampliação das mesmas seguido de recomendação por parte do Ministério da Saúde de não realizar viagens a China, respectivamente. O segundo momento consiste na adoção de medidas restritivas, período de março-maio, sendo os assuntos das notas: delegação aos órgãos sanitários estaduais e municipais para definirem restrições terrestres, como em áreas de fronteiras;  desaconselhamento de viagens, principalmente para países e regiões com contaminação elevada de coronavírus; e recomendação do uso de máscaras para trabalhadores e viajantes aeroportuários, na ordem. 

E por fim, o momento referente aos meses de junho-julho. Percebe-se o incentivo à cooperação nacional e internacional, evidenciado com a nota técnica sobre discussão da possibilidade de novos ensaios clínicos a respeito de produtos e medicamentos de saúde, direcionados para acadêmicos e ao setor produtivo; além da resolução que concretiza isso com a autorização do ensaio clínico de fase III, em especial da empresa Sinovac Research & Development Co. Ltd. para a testagem de uma potencial vacina. Vale a pena destacar que a ANVISA elaborou essas medidas conforme as necessidades e o perfil epidemiológico do momento. 

Uma possível agenda de estudo para o futuro é investigar a aderência da ANVISA às orientações da OMS em comparação com as decisões do Ministério da Saúde. Estas duas instituições compartilham a responsabilidade de vigilância em saúde em períodos de pandemia, mas possuem arranjos institucionais distintos: a primeira é uma agência independente, portanto menos suscetível a interferência política do executivo federal; já o segundo é um dos mais cobiçados ministérios para moeda de troca no presidencialismo de coalisão. Em que medida esses desenhos institucionais importam para a adesão as normas da OMS é um objeto para estudos futuros.   

Em situações de emergência sanitária, a celeridade na resposta governamental é crucial para o controle dos agravos. Para tal, os países devem dispor, a priori, de regras e medidas sanitárias adequadas às diretrizes internacionais. Com isso, em nível global, os países seriam capazes de coordenar melhor uma atuação efetiva para patologias que não respeitam fronteiras e, em nível doméstico, os governos subnacionais disporiam de melhores instrumentos para combater epidemias. No entanto, sem poder de enforcement, as diretrizes da OMS dependem, em grande medida, do filtro das instituições locais; e, por tratarem de temas controversos, há menos chances de serem implementados em momentos de “normalidade” do que em “janelas de oportunidades”, como choques exógenos ocasionados pela pandemia de COVID-19, pela epidemia de AIDS e pelo surto de zika, por exemplo. Talvez agora, diante do estarrecedor cenário provocado pela COVID-19 e da evidente dificuldade do Brasil para responder à pandemia, o país perceba a importância de estar melhor preparado para emergências em saúde. 

*Alunas de Mestrado Acadêmico em Administração Pública e Governo na EAESP/FGV, com bolsa FAPESP (2019/27513-4 e 2019/25141-2), e pesquisadoras no Cepesp; texto apresentado na disciplina de Instituições Políticas e Regulação, ministrado pela Professora Elize Massard da Fonseca.


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