
Desde a crise financeira global de 2008, a pesquisa sobre política monetária e atuação dos bancos centrais ganhou novo impulso, especialmente com foco nos países centrais. O professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas – Direito GV e pesquisador do Cepesp, Mário Schapiro, escreveu, junto com Matthew Taylor, da American University, o texto “The Political Economy of Brazil’s Enigmatic Central Bank, 1988–2018”, artigo que integra um livro dedicado a mudar o foco dessa análise e olhar para a atuação dos bancos centrais nas economias emergentes. “The Political Economy of Central Banking in Emerging Economies“, foi organizado por Mustafa Yagci e contém textos a atuação dos bancos centrais em diferentes países da América Latina, Ásia, África e em países da periferia da Europa.
“Ao longo do período pós-Real e até 2018, tivemos a convivência des dois círculos regulatórios, que me parecem ser rivais e complementares ao mesmo tempo”, diz Schapiro, listando de um lado o “círculo regulatório da prudência bancária” e, do outro, o “círculo regulatório desenvolvimentista”. Confira, neste “5 perguntas”, mais detalhes sobre o trabalho de Schapiro.

1.Vocês argumentam no trabalho que ao longo dos últimos anos de política monetária (1998-2018) não interessou aos diferentes governos, tornar o BC independente. Por quê?
Eu diria que uma conjugação de fatores explica esse desinteresse, e o STF teve um papel importante na organização das preferências dos atores. Em 1988, a Constituição estabeleceu que uma eventual lei que concedesse independência ao Banco Central deveria ser uma Lei Complementar, isto é, uma lei que exige um quórum mais alto para aprovação. Logo em seguida, em uma decisão importante, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4, que discutiu a constitucionalidade do limite de 12% para as taxa de juros, o Supremo entendeu que todo o artigo 192 da Constituição, que trata do sistema bancário, precisaria ser regulamentado em uma única lei complementar. Ou seja, uma só lei complementar para tratar de todos os temas do artigo 192, que incluía juros, bancos estrangeiros, e também o BC independente, entre outros. Isso tornou o custo político de fazer essa mudança muito alto pelo quórum e pelo elenco de temas a serem tratados nesta lei. Em paralelo, no entanto, quando chegou o Plano Real, era imprescindível fazer reformas legais, como a edição da própria lei do Plano Real, a mudança do Conselho Monetário Nacional (CMN), a introdução de metas de inflação em 1999, entre outras. E curiosamente toda a parafernália jurídica do Plano Real ocorreu por Medida Provisória e decretos e o Supremo interpretou tais MPs como juridicamente possíveis. Em outras palavras, se o Supremo fechou uma porta na Adin 4, ao exigir uma única lei complementar para um elenco variado de temas, ele abriu exceções anos depois para que reformas pontuais ocorressem por MP, Resoluções do CMN e por Decreto. Essas reformas pontuais construíram juridicamente a estabilidade econômica e tornaram a tal lei de independência do BC despicienda. Nos anos 2000, o país já estava estabilizado, a reforma monetária havia sido feita e a única coisa que sobrou por fazer foi conceder independência ao BC. Essa independência, diferentemente dos demais temas do Real, exigia uma lei complementar e uma lei única, que tratasse de todos os temas do 192 Em 2003, uma emenda constitucional finalmente mudou a redação do artigo 192 e permitiu que várias leis complementares regulamentassem os temas do artigo. A partir daí, uma lei complementar específica poderia tratar somente da independência do BC. Só que nesse momento, esse já era um tema fora da agenda. As reformas do Real haviam sido realizadas pontualmente, já havia ocorrido a troca do FHC para o Lula, o Lula já tinha colocado no BC alguém que o mercado respeitava, e receio de se romper a independência de fato do BC havia sido dissipada.
2.Mas apesar da falta de independência formal, a política monetária funcionou ao longo desse período de 20 anos?
Eu diria que a gente criou um mecanismo “second best”, criou uma independência de fato, não de direito, mas que funciona. Desde 1999, temos alguns indicadores interessantes: nenhum presidente da República demitiu o banqueiro central no curso do seu mandato: FHC manteve Armínio Fraga, Lula manteve Henrique Meirelles, Dilma, Alexandre Tombini, Temer, Ilan Goldfajn, e Bolsonaro indicou o Roberto Campos Neto e desde então vem mantendo-o sem qualquer intercorrência. Na Argentina, por sua vez, a independência do BC é garantida em lei, e mesmo assim Cristina Kirchner e Macri trocaram os dirigentes do BC no curso do mandato. No Brasil, não temos lei garantindo a independência e o mandato dos dirigentes, mas temos uma estabilidade de fato. Além disso, nestes 20 anos de metas de inflação, estouramos a meta três vezes para mais e uma vez para menos, e temos uma regulação de prudência bancária (Basileia) superrigorosa. Não temos crise bancária no Brasil desde meados dos anos 90. Tivemos uma turbulência bancária no mundo, em 2008, tivemos uma recessão significativa nos últimos anos (o produto chegou a cair 7,5% em dois anos), estamos vivenciando uma crise agora, mas crise bancária está fora do radar. Enfim, o Banco Central não é legalmente independente, mas seus resultados são muito similares aos de uma autoridade com esse atributo.
3.Vocês colocam no trabalho que essa estabilidade é em parte uma contrapartida da concentração bancária. Então vale a pena a pagar o preço de ter concentração para garantir estabilidade?
Não estamos dizendo, meu coautor e eu, que o BC teve a intenção de concentrar o sistema bancário, mas é um resultado inegável que tivemos concentração casada com muita estabilidade. E os custos da concentração bancária não são igualmente divididos na sociedade, pois há a criação de válvulas de escape importante via o Estado desenvolvimentista. Alguns setores que são beneficiados pelas políticas de crédito direcionado e as clientelas dos bancos públicos em particular pagam uma taxa de juros abaixo da taxa padrão de mercado. É interessante comparar com a Ásia, nos anos 1990 para entendermos esse ponto. Na pré-crise de 97, países como a Coréia do Sul realizavam um “compliance” com as regras de prudência bancária que era primordialmente formal, para inglês ver. Os reguladores coreanos tinham a seguinte leitura: ‘se nós aplicarmos as regras de prudência de forma muito intensa, o capital vai ficar muito caro para as empresas’. E a economia política não tinha capacidade de impor essas perdas ao setor empresarial. Mas como o Brasil consegue? Uma interpretação que eu tenho é que nós conseguimos atender uma parcela expressiva do empresariado por uma outra rota de provisão de crédito que é a do crédito direcionado e bancos públicos. Até recentemente, as taxas de Caixa, BNDES e Banco do Brasil, sobretudo no sistema de crédito rural, financeiro da habitação, e nas políticas industriais do BNDES, eram menores e os agentes econômicos conseguiam obter crédito sem que esse custo bancário, decorrente da combinação entre estabilidade e concentração, fosse tão evidentemente percebido.
4.Vocês defendem que o papel dos bancos públicos atrapalhou a política monetária, apesar de ter contribuído para baixar os juros. Isso mudou recentemente?
Na verdade, esse é um dos argumentos dos críticos do sistema bancário público. Eles dizem que se você tem duas taxas de juros concorrendo na economia, a Selic e uma taxa abaixo desta, a Selic acaba tendo que ser mais alta para compensar o volume de crédito na economia. Em síntese, se se artificializa as condições de demanda dando crédito mais barato, a Selic, que é a taxa básica de regulação da inflação, terá que ser um pouco mais alta para compensar a distensão do crédito. Isso parece ser verdade, mas também é verdade que a Selic é mais alta que a de outros países, temos um sistema bancário que é concentrado, e temos um incentivo para a transações de curto prazo com a Selic. Supostamente isso tende a mudar porque nos últimos anos os bancos públicos reduziram bastante. Minha dúvida é se o sistema bancário reduzirá de forma consistente e permanente o spread a ponto de alongar o tamanho dos seus empréstimos, compensando assim a retração do crédito direcionado..
5.Quais são as consequências desse sistema duplo, de forte regulação e concentração X setor público financeiro? Ao longo do período pós-Real e até 2018, tivemos a convivência des dois círculos regulatórios, que me parecem ser rivais e complementares ao mesmo tempo. De um lado, tivemos o círculo regulatório da prudência bancária, que estabeleceu regras globais de capitalização para os bancos, autonomia operacional para o BC e contribuiu para a constituição de um sistema estável, com muita capacidade de aderência aos padrões internacionais. Do outro lado, tivemos a manutenção de um círculo regulatório desenvolvimentista, que também foi importante no país. Nos últimos anos, metade do crédito emprestado para as empresas foi direcionado. Esses dois círculos são rivais, mas também complementares. Se perguntarmos aos respectivos atores como eles vêem o outro arranjo, suponho que eles entendam o outro como um rival. Por exemplo, os desenvolvimentistas tendem a entender que as regras de prudência bancária tornam o custo do credito mais alto e diminuem os espaço de formulação de políticas de desenvolvimento; o reverso é verdadeiro, pois os reguladores e agentes de mercado tendem a ver os bancos públicos como um desafio para regulação bancária, pois tornam mais cara a taxa Selic e podem envolver maior intervenção governamental no mercado. Mas se olharmos por cima a dinâmica desses círculos, vamos encontrar sinais de complementaridade e mútuo reforço. O sistema de prudência bancária deu estabilidade ao sistema financeiro e também aos bancos públicos, que não sofreram crises de gestão como altas taxas de inadimplência ou dificuldades de capital. Por outro lado, o sistema de bancos públicos e de crédito direcionado garantiu válvulas de escape importantes, tanto aos governos, que puderam formular políticas de crédito e atender aos seus constituintes, como aos segmentos empresariais que poderiam ter resistido aos custos das regras prudenciais. A economia política deste arranjo regulatório permitiu uma acomodação de interesses importantes e contribuiu para a preservação da autonomia operacional do BC. Claro que os setores não atendidos pelas políticas públicas não tiveram acesso a essa válvula de escape e pagam um preço mais alto pelo crédito, que ainda é restrito no país.