O Chile e a superação do compromisso impossível

CEPESP  |  28 de outubro de 2020
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Por Lucas Costa*

Consenso e compromisso são conceitos que, na superfície, se assemelham, mas cujas distinções são determinantes para caracterizar diferenças fundamentais em processos históricos concretos. Segundo o filósofo alemão Habermas, enquanto consenso se baseia nas razões que convencem todas as partes na mesma direção, o compromisso pode ser aceito pelas diferentes partes por suas próprias e distintas razões. O conceito de compromisso versus consenso é apropriado para pensar os mais variados processos políticos, mas em especial processos de democratização.

Transições democráticas consistem em delicados processos políticos que, em muitos casos, envolvem o convívio dialético entre o passado e o futuro. Me refiro ao complexo dilema de se construir ou resgatar uma democracia a partir das desgastadas estruturas dos edifícios autoritários. Quando a ruptura mais radical não é possível ou desejável, o constrangedor compromisso entre democratas e ditadores é intransponível.

Por isso que, na ocasião da democratização brasileira, falava-se simultaneamente em superação do “entulho autoritário” e, na prática, comprometia-se com anistia aos crimes cometidos pelos militares; ensaiava-se diretas já, mas resignava-se com a eleição indireta de um presidente civil via colégio eleitoral; preconizava-se uma nova sociedade democrática sob os signos progressistas da Constituição Cidadã, ecoados pelo clamor de “ódio e nojo à ditadura”, com o qual Ulisses Guimarães anunciava o sepultamento  definitivo do vergonhoso passado autoritário, o qual daria lugar a um  novo Brasil, presidido por… José Sarney – o mesmo que uma década antes assumira a presidência da ARENA, partido de apoio ao regime militar.

Os mais pragmáticos afirmarão que a política é, fundamentalmente, construída por meio de compromissos. Este foi o preço a se pagar pela democracia. Mas, e quando os custos são altos demais? O compromisso fica intolerável. A humilhação histórica, causada pelas cicatrizes que não se deixaram fechar, arde em uma geração cuja democracia nasceu sob a tutela formal das instituições erguidas pelo antigo regime. Eis o drama chileno.

25 de outubro de 2020 foi um dia histórico para o Chile. Mais de sete milhões de eleitores foram às urnas e decidiram em votação expressiva pela instalação de uma nova constituinte, exclusiva, com paridade de gênero e – na era das redes sociais – com promessas de ser uma das mais transparentes e participativas da história mundial. É o início da superação do compromisso impossível.

Nos anos 1980 o Chile comprou a democracia pela metade, não levou junto uma constituição democrática. A democratização chilena se deu mediante reformas à Carta de 1980, elaborada sob o regime militar ditatorial de Augusto Pinochet e mantida até hoje. A constituição foi imposta, ao invés de negociada. O referendo popular que a ratificou foi marcado por fraudes. A democracia chilena nasceu e se desenvolveu, portanto, sob o signo da submissão aos caprichos intransigentes do regime que a antagonizava. Os democratas que lutaram pela superação do autoritarismo enveredaram em direção à um compromisso que julgavam ser, então, o possível, mas que a história sentenciou como inaceitável, intolerável, impossível. Democracia, pois, não coexiste e não pode coexistir com a ditadura, nem simbolicamente, nem de fato. Em 25 de outubro de 2020 o Chile começou a superar o compromisso impossível.

Quais são, para além da definitiva superação simbólica dos traços autoritários da era Pinochet, os possíveis significados desta nova constituição? O plebiscito de 25 de outubro é o resultado de uma série de protestos de alta escala, iniciados na capital chilena há um ano, motivados, sobretudo, por um crescente descontentamento com a alegada falta de compromisso do Estado com a segurança social da população. Mas será que a insatisfação se confirma em termos constitucionais? A Carta de 1980 é, como muitos de seus críticos denunciam, a tradução de um Estado comprometido com políticas neoliberais?

Por meio do Constitutional Social Score Model (CSSM) [1], uma ferramenta voltada para a análise da inserção constitucional de direitos sociais, é possível comparar a constituição chilena com as demais constituições sul-americanas. A criticada Carta chilena tem uma pontuação de 2,53 (em uma escala de 0 a 10), que foi elevada para 2,6 com a emenda de 1999 e para 2,9 por meio de nova emenda em 2003. Para ser justo, em 1980, quando foi promulgada, sua pontuação era mais elevada, por exemplo, que as então constituições argentina (de 1853, mas então emendada pela última vez em 1957) (0,62) e brasileira (de 1967, mas então emendada pela última vez em 1978) (2,3), e muito superior à média mundial. Porém, se considerarmos as versões mais recentes de todas as constituições sul-americanas, a chilena tem a pior pontuação – apenas 2,9, frente à uma média de 5,19 na região.

Isso sugere que a decisão por manter a constituição da ditadura, reformando apenas seus dispositivos mais diretamente relacionados ao resgate das instituições democráticas, pode ter tido implicações duradouras no letárgico progresso constitucional chileno em termos do reconhecimento dos direitos sociais e econômicos. O Chile, absorvido pelos elementos anacrônicos de sua constituição, parou no tempo – ao menos quando comparado com seus vizinhos sul-americanos. Caso siga os anseios populares que motivaram sua convocação, a nova constituinte promete entregar uma nova Carta capaz enterrar os fantasmas do passado e superar a inércia do compromisso impossível, que gravitou os direitos sociais para o abismo do direito constitucional sul-americano.

*Lucas Costa é cientista político e pesquisador pós-doutorando no FGV CEPESP

[1] Para mais informações sobre o CSSM, ler: COSTA, L. N. F. Social Agenda and Constitutionalism: a comparative study. 77th Annual MPSA Conference. Palmer House Hilton, Chicago, IL. April 4-7, 2019.

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