Por Iana Alves de Lima* e Elize Massard da Fonseca**
Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro cobrou do ministro da Saúde, Henrique Mandetta, que adote um discurso mais alinhado com o Palácio do Planalto no controle da epidemia do coronavírus (Covid-19). As recomendações do ministro, em consonância com os princípios de saúde pública, confrontam a orientação do presidente de que a economia não seja paralisada e que os cidadãos possam participar de manifestações públicas. Como chefes do executivo garantem que suas decisões sejam cumpridas pela burocracia por ele nomeada?
É importante observar que, embora autores clássicos da administração pública apontassem a necessidade de burocracias técnicas, neutras e distanciadas da esfera política (e.g. Max Weber), atualmente há um entendimento de que a interação com a sociedade civil, mercado e grupos de interesse é uma característica da atuação do executivo (Aberbach et al. 1981). Ou seja, a “burocratização da política” e a “politização da burocracia” são inerentes aos cargos de nomeação política.
Mandetta, por exemplo, foi escolhido como um quadro “técnico” – é médico, foi presidente da Unimed e secretário de Saúde em Campo Grande (MS) – mas também político, atuou como deputado federal por dois mandatos pelo DEM. Durante seu mandato foi forte opositor do programa Mais Médicos, bandeira partilhada pela campanha de Bolsonaro. Sua nomeação para o Ministério da Saúde cumpria a promessa de formar ministérios técnicos, sem perder a aderência à agenda ideológica do Planalto.
Mas a ovelha se desgarrou do rebanho e o ministro tem ganho protagonismo frente à agenda do presidente. Enquanto o presidente fala em histeria e relativiza os riscos do Covid-19, Mandetta anuncia medidas de prevenção e enfrentamento da crise. Diversos estudos analisam os instrumentos disponíveis ao “principal”, ou aquele que delega, para exercer controle sobre o “agente”, a parte que executa (McCubbins, Noll & Weingast 1989; Olivieri 2011). Alguns desses são: elaboração e implementação do orçamento; iniciativa legislativa, ou seja, o poder de decreto; monitoramento da execução de políticas públicas através de órgãos de controle interno; e a livre nomeação de cargos de confiança que funcionariam como posições de “supervisão” para o chefe do executivo. O atual governo enfrenta dificuldades em todas essas dimensões.
Assim, é difícil afirmar que a lógica de gestão pública do governo Bolsonaro cabe nos modelos teóricos da ciência política e administração pública. Pensar em examinar nomeações pela lógica das coalizões partidárias ou o balanceamento entre cargos técnicos e políticos já não parece um instrumental analítico tão eficiente.
Para suprir as debilidades em governar por meio dessas institucionalidades, o presidente recorre a estratégias de controle extremas: uma hiper politização e o descrédito dos técnicos da burocracia. Esse “método” resiste até mesmo em meio à grave crise do Covid-19, que exige uma capacidade de coordenação e atenção às instruções dos especialistas da saúde.

Foto: Carolina Antunes/PR/Agência Brasil
Minimizar opiniões e contrariar as decisões ministeriais têm sido cada vez mais comum para constranger a burocracia e centralizar as decisões de políticas públicas no Palácio do Planalto.
A intervenção direta nos assuntos técnicos das pastas ministeriais, veto de nomeações e a imposição de um discurso negacionista e autoritário têm gerado desconforto dentro do executivo. Mesmo os ministros com alinhamento inerente à agenda do presidente já tiveram que se manifestar pela autonomia burocrática. Por exemplo, a secretária da Cultura Regina Duarte, que enfrentou ataques as suas decisões na pasta, bem como o ministro da Educação, Abraham Weintraub, que explicou a intenção de Bolsonaro de vistoriar pessoalmente as questões da prova do Enem.
A adoção dessas práticas, que escapam à gestão das institucionalidades estabelecidas, gera incertezas sobre a implementação de políticas públicas, especialmente em um cenário de crise de saúde global como o que estamos vivemos. Contrariando às expectativas do seu núcleo de apoio mais fiel, as estratégias de gestão do governo têm gerado mais insegurança política e econômica do que sinalizado novos rumos de governança pública.
*Iana Alves de Lima é doutoranda em administração pública e governo na EAESP/FGV e pesquisadora do Cepesp/FGV
**Elize Massard da Fonseca, é professora da EAESP/FGV e pesquisadora do Cepesp/FGV
Referências
ABERBACH, J. D.; PUTNAM, R. D.; ROCKMAN, B. A. Bureaucrats and politicians in Western democracies. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1981.
MCCUBBINS, Matthew D.; NOLL, Roger G.; WEINGAST, Barry R. Structure and process, politics and policy: Administrative arrangements and the political control of agencies. Virginia Law Review, p. 431-482, 1989.
OLIVIERI, C. Os controles políticos sobre a burocracia. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 45, n. 5, p. 1395-1424, 2011.