O problema da CDE e de seus congêneres é, na verdade, o problema do financiamento das políticas públicas

Desde 2015, associações empresariais propuseram em torno de 90 ações e obtiveram mais 30 liminares para evitar o aumento da tarifa de energia. A ANEEL, por sua vez, tem sustentado que a concessão das liminares compromete o financiamento do setor.
Em uma de suas contestações, a agência argumentou que a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), a fonte de recursos do setor elétrico, arrecadou apenas 55% do previsto. Os consumidores, por seu lado, diante do custo crescente das tarifas, não se compadecem: o resultado é um curto-circuito institucional, em cuja origem residem características típicas da governança econômica brasileira.
A CDE foi instituída em 2002 (Lei n. º 10.438), para financiar a modicidade tarifária e a provisão do serviço para consumidores de baixa renda. Em 2003, a esses dois objetivos, foi adicionado mais um propósito: o financiamento de energia alternativa, como a eólica.
Até então, a CDE era constituída por três fontes de recursos: multas aplicadas pela ANEEL, montantes arrecadados com a utilização de bens-públicos pelas empresas do setor e cotas tarifárias. Tais cotas são calculadas pela ANEEL e pagas pelos usuários na tarifa de energia.
Em 2013, no entanto, o marco regulador da CDE foi alterado para permitir o custeio de outras atividades públicas. Além dos três objetivos iniciais, a CDE passou a custear um rol mais amplo de serviços, tais como: amortização de investimentos realizados pelos concessionários, programas de qualificação de mão de obra técnica e subvenção para sistemas elétricos isolados.
O aumento dos objetivos exigiu a entrada do Tesouro, que passou a dividir o custo das novas políticas com os usuários. A conta fechava, mas no meio do caminho tinha um ajuste fiscal. E com ele, a partir de 2015, o Tesouro deixou de prover os mesmos recursos para a CDE.
O sintoma do problema apareceu na forma de uma crescente judicialização desse conflito, com diversos consumidores obtendo na justiça o direito de não pagar como tarifa aquilo que entendem ser uma despesa pública.
Em resumo, a tese jurídica é a de que a finalidade da tarifa é remunerar apenas o serviço de energia contratado. As políticas públicas que extrapolam este serviço devem ser custeadas pelo orçamento.
A tese tem prosperado nos tribunais, e a falta de resposta do governo tem levado a um curto-circuito no setor. Quanto mais as ações prosperarem, menor a arrecadação obtida pelo setor e maiores os incentivos para que novas ações sejam oferecidas.
O desfecho aponta para um problema clássico de ação coletiva, ou seja, embora o melhor resultado para o problema fosse alcançado por meio de uma ação coordenada, os incentivos mais fortes são para as estratégias individuais, no caso estratégias judiciais. O desfecho provável é um conflito distributivo e uma desigual distribuição de ganhos e perdas entre os consumidores.
O enredo, do desenho da CDE à sua judicialização, revela traços característicos do Estado Regulador em países em desenvolvimento. É isso que mostra a pesquisa conduzida por Brownen Morgan e Navroz Dubash, que coleciona estudos de caso sobre a regulação econômica no sul global.
Em The Rise of Regulatory State in the South, os autores mostram que países como Colômbia, Índia, Argentina ou Brasil vivenciam conflitos acirrados entre consumidores, concessionários e governos. O que unifica os países é a necessidade de provisão de bens públicos e a falta de recursos para tanto.
A introdução de investimentos privados, em razão das privatizações, mitigou parte do problema, mas também introduziu novos atores no conflito agudo de interesses desses países. Em boa parte dos casos, o Judiciário é tragado para o centro das disputas. É o que aconteceu com a CDE, como já havia acontecido em outros eventos, dos contratos habitacionais do BNH, nos anos 1980, ao custo da telefonia, há alguns anos.
O problema da CDE e de seus congêneres é, na verdade, o problema do financiamento das políticas públicas. Muitas medidas podem colaborar: entre elas, a sempre citada segurança jurídica para os investimentos privados.
Mas decisivo mesmo será a coordenação pública do problema, por meio de um redesenho institucional do custeio do setor e da recuperação da capacidade de investimento do Estado. Sem isso, quem pode pedirá ao Judiciário uma fita isolante, quem não pode, seguirá tomando choques econômicos.
Texto originalmente publicado no site Jota.
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