Marcos Fernandes: as conseqüências éticas da Lava Jato

CEPESP  |  28 de setembro de 2016
COMPARTILHE

“No Brasil, a vida pública é, muitas vezes, a continuação da privada.” (Barão de Itararé) 

“A man who has never gone to school may steal a freight car; but if he has a university education, he may steal the whole railroad.” (Theodore Roosevelt)

“De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.” (Rui Barbosa)

Os brasileiros são por vezes excessivamente utópicos ou, como agora, distópicos. Trata-se de uma modelo imaginário compartilhado coletivamente. Interessante o é, mas pouco funcional, diria, quando sabemos que mudanças institucionais pedem realismo e, portanto, não o céu, nem o inferno, apenas a dura vida.

A formulação de políticas públicas não deve partir de pressupostos ingênuos, do ponto de vista analítico e prático, sobre a ação de mulheres e homens. Melhor supor que todos são malvados e auto interessados, oportunistas sem limite, hobbesianamente lobos entre si, mesmo sabendo que alguns que são moralmente auto restritos, não corromperão nem serão corrompidos.

Não há espaço para a ética na política do Homem comum, apenas dos que são exceção. A ética na política é fazer acordo com todos, até com o Tinhoso, mas respeitar este acordo. E isto é, quando se pensa em evitar guerras civis, algo de extremo valor moral.

Por outro lado, o estado de anomia que perpassa o país, algo implícito ao insight da afirmação de Rui Barbosa, é um fato. E em qualquer país, do rico ao pobre, do mais educado ao menos, como Ted Roosevelt também nota, percebemos várias evidências anedóticas, não científicas, de mundo sem lei em potencial em qualquer lugar, país ou sociedade.

Por outro lado, achar que somente no Brasil há e houve corrupção e promiscuidade no trato da coisa pública é, decerto, distopia pertinente a um Brasil antigo, itarareniesco. Não é objetivo aqui adentrar este tema, mas corrupção não é jabuticaba e a evolução de seu controle, daquela graúda, do financiamento do capitalista de estado brasileiro e de seus parceiros burocratas e políticos, é fato alvissareiro.

O objetivo deste artigo, primeira parte de duas, é tentar indicar para onde vamos inercialmente – e aonde vamos se houver intencionalidade reformista – em termos do controle da corrupção e na afirmação de alguns valores morais no que tange o capitalismo de estado brasileiro, competição empresarial, meritocracia em geral e o Estado. Especificamente sobre a moralidade e a competição, deixo-os para a segunda parte.

Qualquer que seja o resultado das investigações da Lava Jato, uma coisa é certa: abre-se a oportunidade para se rever as relações das empresas privadas em geral, e das grandes vendedoras de produtos (bens e serviços) em particular, com o Estado, no que se refere ao controle da corrupção.

Sem ilusões: mudanças institucionais radicais, disruptivas, acontecem se há janela de oportunidade e se há esforço de ação coletiva, mormente no âmbito da esfera política, para promover alterações. A mais otimista das pessoas diria que tudo mudou depois da referida operação; a mais pessimista, que não, pois sem reforma política, diminuindo os custos de campanha, por exemplo, os agentes econômicos, em conluio forçado em parte, conveniente de outra, acharão outros meios de obter dinheiro de forma ilegal, dividindo a sangria entre as empresas e os políticos.

Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Uma economista bem treinada sabe que pensamos sempre em como leis e regras, normas e valores, moldam os incentivos que norteiam as decisões dos agentes econômicos e políticos.

Estes agentes, diante de incentivos, tomas decisões estratégicas sempre olhando o que os outros podem fazer. Há um problema de interação estratégica. Isso é a alma das ciências sociais duras, onde com modelagem, testes empíricos econométricos, experimentos, muitas vezes com a aproximação de economistas, biólogos e neurocientistas, tentamos prever possíveis equilíbrios, situações de mundo, que podem prevalecer com as mudanças das regras.

No futuro, com o desenvolvimento da matemática de sistemas complexos, por matemáticos (alguns brasileiros, por sinal) quem sabe poderemos modelar, testar e prever melhor, até mesmo com simulações, os resultados, em termos de mudanças de estados de mundo, do que as economistas e os economistas chamam de equilíbrio, diante de mudanças nos sistemas de incentivo derivados das alterações institucionais.

Contudo, por mais que tenhamos avançado em termos de experimentos, modelagem e testes em geral, ainda caminhamos sobre cristais quando fazemos previsões. Digo isso pois algumas coisas mudaram sim, em termos de estruturas de incentivo, para o “bem” e para o “mal”, no Brasil, em termos de controle da grande corrupção. E, assumo aqui, este é meuhabeas corpus preventivo.

Houve um aumento do risco de se empreender atividade corrupta associada ao superfaturamento de obras públicas, depois da Lava Jato. Abre-se uma jurisprudência virtuosa e cria-se de facto, não apenas de jure, uma ameaça aos corruptos e corruptores.

Por outro lado, as leis de Compliance e de Transparência abrem espaço para mais inovações institucionais e, portanto, para a mudança nas estruturas de incentivo e, consequentemente, nas decisões estratégicas dos agentes econômicos a atores políticos.

Mas há a necessidade de se inovar também no que se refere a adoção de leilões eletrônicos de compras governamentais em todos os níveis, na medida do possível, com informatização plena e acesso público irrestrito. A Lei de Transparência pode ser advogada em favor disso e a tecnologia nos permite hoje ter tal acessibilidade. Não me venham falar que isso já existe em São Paulo e no âmbito federal, por exemplo. Não há leilões eletrônicos com pelo acesso dos cidadãos, em tempo real e ex post, a todos os dados quantitativos e qualitativos.

Portanto, a adoção de processos licitatórios realmente transparentes e com suas informações acessíveis seria uma mudança institucional inovadora. A Lei de Compliance, por outro lado, estará a coagir todos os agentes envolvidos, dos políticos às empresas.

Mas houve recentemente uma mudança institucional “do mal”: a proibição do financiamento empresarial de campanha, comemorada por alguns, provavelmente sem o mínimo treinamento em ciências sociais aplicadas, como um avanço no controle da corrupção e na criação de campanhas mais neutras.

Nenhuma campanha é neutra e pode-se indagar se não é legitimo pessoas jurídicas terem seus interesses representados – e que, portanto, financiem sim, dentro de limites realistas, campanhas – e pessoas jurídicas podem ser a OAB ou a Vale. Recentemente a Suprema Corte dos EUA, em decisão polêmica, decidiu em última instância que pessoas jurídicas, no caso corporações, têm o direito de ter opinião. Numa medida radical, derrubou-se o limite de doação. O que é melhor: hipocrisia ou lobbies abertamente identificáveis?

Esta é uma questão filosófica e normativa que escapa ao escopo deste artigo. Porém, mesmo deixando-a de lado, o que esta proibição pode gerar são incentivos tortos, novas formas de financiamento ilegal. Temo, aqui é somente uma ilação tenebrosa, porém real, que o crime organizado e o tráfico de drogas financiem campanhas, na medida em que no entorno do Brasil a maior parte dos países está a legalizar ou descriminalizar a maconha (somente para começar, em breve vem a cocaína) e se torne, o país, o único reduto da atividade rentável do tráfico de drogas – aliás com o aval regulatório perverso de um Estado que, em última instância, ao “combater” drogas, aumenta a rentabilidade do negócio.

Veremos – lembro que ainda nossa capacidade nas ciências sociais, embora tenha evoluído muito, é limitada em termos de previsões – se tal lei não criará novas formas ilegais, e muito mais perigosas, de financiamento de campanha.

Mas mudança não se faz na inércia: exige intenção. Está parada no parlamento a reforma da Lei 8.666 de licitações. Seria oportuno discuti-la com a devida calma, incluir mecanismos ainda mais draconianos de seguro garantia e de transparência licitatória.

O seguro garantia não apenas tem efeito sobre a melhor execução de uma obra pública, por exemplo, coibindo atrasos e desperdício, mas também sobre a corrupção. Sugiro três leituras sobre o tema, uma sobre compras licitadas feitas eletronicamente com transparência, outra sobre o uso da tecnologia para este e outros fins e outra, sobre os impactos da Lava Jato sobre seguros e seguro garantia, em particular.

Logo, temos um cenário que muda, no meu entender, em direções opostas, o que impede o controle sobre o “experimento” que virá, talvez já agora em 2016, com as eleições municipais e, em 2018, com as para governadores, deputados e presidente.

De um lado, a Lava Jato eleva o risco operacional de esquemas de conluio de roubo de dinheiro público para as empreiteiras e afins; de outro, inibe os políticos e partidos a adotarem a estratégia do roubo via caixa dois. Por outro, temos a proibição do financiamento empresarial de campanha, que pode incentivar novas formas de crime e a entrada do crime organizado de vez na política nacional.

Esperemos os dados nos próximos três anos, mas, minha aposta é de um economista realista, cético como que por dever de ofício de um cientista: estamos no limbo, com reais mudanças institucionais que geram incentivos virtuosos para o controle da corrupção associada ao financiamento da política e com uma alteração, no meu entender equivocada, de regras que geram incentivos…à corrupção.

No próximo artigo abordarei o papel da meritocracia na competição entre pessoas jurídicas, sua moralidade e efeito sobre controle da corrupção e o problema, mais filosófico, porém prático, da competição entre pessoas físicas e moralidade coletiva. Aparentemente as duas coisas não têm relação com a construção de um capitalismo mais saudável do ponto de vista moral. Provarei que sim, há o que se dizer a respeito.

(Texto originalmente publicado no JOTA.)

Deixe seu comentário