Marcos Fernandes: Lava Jato faz história

CEPESP  |  17 de março de 2016
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O objetivo deste artigo é olhar para além da Operação Lava Jato e tentar inferir quais podem ser as consequências dela em termos de mudanças na natureza do capitalismo de estado brasileiro. Não contarei tudo o que você já sabe, as cifras, o esquema, sua lógica e funcionamento. Para detalhamento bem didático, contudo, recomendo o trabalho desenvolvido pela Folha de S. Paulo.

Quero ir além do que está sendo discutido, inclusive já com alguma profundidade: reforma dos sistemas regulatórios, aplicação de lei anti-corrupção, mudanças na Lei. Não sou jurista. Da mesma forma, os aspectos processuais não são de minha alçada, por mais diletante que possa sê-lo, inclusive, não me interessa. E a descrição policial, deixo-a para quem ainda escreverá um belo romance policial no futuro.

O que desejo abordar? Apenas peço sua paciência, pois viajaremos no tempo e no espaço, da Inglaterra da Revolução Gloriosa, passando pela diáspora dos judeus sefaradim no Século XVII, para a Holanda, Londres e interior do território de São Paulo e chegando na história da nossa industrialização e de suas interpretações equivocadas. Mas, garanto a entrega, tudo isso desemboca na Operação Lava Jato.

Primeiramente, analiso brevemente a natureza de capitalismos de estado em geral – e o brasileiro, em particular. Na sequência desenvolvo meu argumento sobre Estado, formação do capitalismo e instituições para, depois, inferir algumas mudanças institucionais e microeconômicas que poderiam alinhar os incentivos corporativos ao autocontrole da corrupção. Mas o ponto é a reforma mesmo do nosso capitalismo. Vamos à labuta.

A formação do capitalismo difere entre vários países, dependendo principalmente da estrutura política subjacente a este processo e, em parte, da etapa de entrada, por assim dizer, de uma economia nacional no processo de industrialização. Explico: em países como Alemanha e Japão o processo de industrialização foi ligado ao estado direta ou indiretamente, impulsionado por monopólios, inicialmente, e com característica de proteção social (não é este o nosso tema aqui) distintos dos que apareceram na Inglaterra, por exemplo.

Mesmo no caso britânico deve-se reconhecer que o estado esteve presente diretamente em etapas importantes da industrialização, como por exemplo na construção da infraestrutura ferroviária.

Os Estados Unidos são um caso à parte, o processo mais liberal, digamos assim, de industrialização. Mas mesmo neste caso, independentemente do fato de até ferrovias serem particulares, o estado teve inicialmente um papel intervencionista, embora distinto dos padrões franceses e alemães.

Mas é quase uma regra, um fato empírico notável, a presença ativa do estado em processos de industrialização atrasados, como no caso dos países em desenvolvimento, tais como Brasil e Coréia, por exemplo.

A bem da verdade, há um mito do laissez faire , laissez passer. A formação do capitalismo industrial, na transição do capitalismo mercantil, antes disso, a emergência do capitalismo infante, ao final da Idade Média, teve sim no estado um ator organizador da banca, dos mercados. Mas este papel foi de criação de instituições, para se utilizar o termo de Acemoglu e Robinson, inclusivas e garantidoras do direito de propriedade e da inovação, da destruição criativa schumpeteriana.

Quando, por exemplo, o estado português, no Século XVII aceita o não respeito ao direito de propriedade e à vida, abraçando a conveniente Inquisição, onde as dívidas públicas eram queimadas com seus detentores (o mesmo vale para a Espanha), vários judeus migram, com seu capital, para a Holanda e para a Inglaterra. Esta estória pode ser contada pelas vidas das famílias de David Ricardo e de Baruch Espinoza.

O capital financeiro luso vai financiar a expansão ultramarina da Holanda e, ironicamente, a exploração da primeira grande commodity mundial, o açúcar, em Pernambuco e depois, com a perda de produtividade e encarecimento da guerra na colônia dos brasílicos, no Caribe.

Com o marco regulatório que garantiu direitos de propriedade, estabilidade da dívida pública e da política monetária e fiscal, devido à Revolução Gloriosa, como descrevem North e Weingast em seu paper clássico , o capital dos judeus portugueses migra para o embrião da City. Este capital, junto com boa parte do ouro que viria depois a ser extraído do Brasil, ajudou a financiar a Revolução Industrial. A revolução financeira que é antecedida por uma mudança institucional foi pré-condição para a industrialização.

Os judeus que não possuíam tantos recursos, sabemos, vieram para formar um grupo, no Brasil colonial, que adentrou uma região chamada São Paulo, que ia do atual Paraná até o Pará. Os paulistas: um pé na Taba, outro na Sinagoga.

Portanto, a intervenção do estado foi mais ou menos funcional ao desenvolvimento do capitalismo, mas a evidência histórica é que ela foi mais eficaz quando alinhou os retornos privados aos sociais, evitando geração excessiva de rendas, por meio do uso do estado.

A evolução do marco regulatório na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, ao final do Século XIX, também indicam que, com o combate aos grandes conglomerados, incentivos derivados de leis e instituições coibiram o abuso do poder econômico.

Indo direto ao ponto, é comum uma visão de que toda e qualquer industrialização e o próprio desenvolvimento do capitalismo dependeu do estado. Correto. O erro e é esquecer que tipo de intervenção ocorreu e como ao longo do tempo, padrões de dependência institucional criaram e estão a criar mecanismos que coíbam a ganância, natural do capitalismo, a tentativa de empresas de formar monopólio, fechar a economia, de se acoplar ao estado para obter privilégios.

O capitalismo de estado é aquele onde todas as atividades econômicas passam por dentro dele, as negociações de poder político e econômico também. Mormente caracteriza-se, na presença de instituições extrativas e de concentração de poder econômico, por pouca atividade inovadora, pois o ganho é dado pelo lobby e pela apropriação legal (mas imoral, dinheiro do BNDES lastreado pelos trabalhadores) ou ilegal da coisa pública (corrupção). Prevalece o rent-seeking improdutivo ao produtivo.

A concentração de riqueza e, portanto, renda, geralmente está associada a este tipo de capitalismo, pois acompanha-o a concentração de poder e a pouca mobilidade econômica, dada a taxa de inovação estagnada. Inovações radicais criam novos grupos econômicos e de poder, acabando com outros; criam mobilidade política também, por vias indiretas.

O capitalismo de estado japonês é extremamente ineficiente quando analisamos o mercado financeiro e a economia doméstica. Corrupção sim e “rolos”, como se diria por aqui, existem. Mas toda a política industrial e a competitividade externa da economia japonesa é garantida secularmente pelo insulamento da burocracia do ministério da indústria.

No caso brasileiro, nosso capitalismo se desenvolveu com base numa crença errada sobre nossa formação econômica na colônia. Este é tema para outro artigo, mas gostaria de tocá-lo tangencialmente pois é importante para a minha conclusão.

Em qualquer debate sobre intervenções normativas e análise positiva, em qualquer área, mas principalmente em ciências sociais, as mentalidades coletivamente compartilhadas e o espírito do tempo delineiam não somente o ponto de partida, visões e crenças, dos programas de pesquisa (no sentido lakatosinano mesmo), como também ficam encardidas no mundo três popperiano, no senso comum de não especialistas.

Um dos grandes obstáculos ao debate de políticas públicas, de ciência política, economia, de políticas sociais, no Brasil, está no fato de que as pessoas em geral – e muitos especialistas – não perceberam que muitas das crenças sobre nosso subdesenvolvimento e sobre o papel das políticas públicas fazem parte de um programa de pesquisa degenerativo. São Walking Dead: morreram e não perceberam.

Hoje temos bancos e bancos de dados para avaliar políticas econômicas diversas, sociais, reformas políticas e seus impactos e por aí vai. Temos técnicas. Mas ninguém aqui sabe, principalmente os formadores de opinião, inclusive os bons, o eleitor formado e formador de opinião também não.

Sem falar em boa parte daqueles que estão submersos às suas crenças que fundamentam programas de pesquisa que empiricamente não se sustentam ou se sim, tal fato se dá por mera ideologia motivada por autoengano ou interesse.

Vejam o exemplo do debate sobre história econômica no Brasil: o debate está errado, pois parte de uma visão que está sendo refutada com base em dados, coletados a partir do trabalho de Alice Canabrava, Francisco Vidal Luna e Iraci Del Nero da Costa, dentro outros (poderia incluir Zélia Cardoso de Mello em seu mestrado – ela foi orientanda de Alice).

A formação do mercado interno deu-se já no Século XVIII, a economia colonial, há evidências, era maior que a da Metrópole, havia divisão do trabalho e autonomia política local, empreendedorismo. Por outro lado, mesmo depois de 30 anos da publicação do trabalho de Suzigan, subestima-se a industrialização pré-30 no Brasil e superestima-se “o processo de substituição de importações com o estado”.

Uma coisa é como os fatos se desenrolaram, efetivamente; outra é como podemos interpretá-los com base em dados que não existiam, tabulados, até 1990 e o questionamento das políticas públicas que foram elaboradas a partir das crenças infundadas.

Outro exemplo. Manuelescu, obscuro economista romeno, é a principal referência intelectual da teoria da dependência, e esta prevalece ainda hoje, nas mentalidades e no mundo três popperiano. Quem mostrou isso e a apropriação sem muita lógica do modelo de Manuelescu foi Joseph Love, em “Crafting the Third World: Theorizing Underdevelopment in Rumania and Brazil”. É surreal, mas estão, esta e muitas ideias, no mundo três, nas mentalidades coletivas e ainda moldam o debate sobre o desenvolvimento do capitalismo no Brasil.

Programas de pesquisa degenerativos e visões erradas atrapalham e muito o debate. Creio que os colegas macroeconomistas sabem muito bem ao que me refiro, assim como os cientistas políticos.

Onde entra a Operação Lava Jato e a corrupção nessa estória, deve estar se perguntando o leitor? De Portugal e Espanha até o Brasil holandês, da Revolução Gloriosa a David Ricardo e Espinoza, passando pela regulação dos trusts na Inglaterra e EUA, instituições inclusivas, rodamos o mundo leitor e, com razão, deve estar a questionar “o que que esse cara quer? ”. Mas tudo está interligado.

A mentalidade errada que conforma o debate sobre desenvolvimento do Brasil veio a se consolidar na política industrial, de crédito público farto, bolsa empresário, proteção comercial, desinserção do comércio internacional, isolacionismo xenófobo latino-americano terceiro mundista. A corrupção, sua lógica, insere-se na reinvenção do capitalismo de estado ao modo de Geisel, promovida por Dilma Rousseff.

A corrupção na Petrobrás possui uma dimensão de crime corporativo. Esta não me interessa muito. A outra, a de tomada de assalto da empresa por outras empresas, empreiteiras e pelo Partido dos Trabalhadores, sim.

O PT aparentemente deixou-se capturar pelo estado faorinano, mas foi com gosto, mais do que necessidade. Gosto, pois, aparentemente o modelo mental de política econômica se conforma ao projeto de poder de cooptação da burguesia nacional para domesticá-la e construir uma hegemonia por cooptação, getulista mais à esquerda. E confortável do ponto de vista financeiro e de financiamento do projeto de poder.

Há uma característica de bandidagem, inclusive envolvendo a cúpula do PT, pelo menos as evidências saltam aos olhos. Esta característica não é a mais importante a ser abordada neste artigo. O que importa é a crença errada de que “o petróleo é nosso”, na pureza do estado e na maldade do mercado, bem ao modo chocante de Jessé de Sousa, de que empreiteira nacional é orgulho do país.

Voltem ao início do artigo. Afirmei que a literatura, agora nomino-a, de economia política do desenvolvimento, não refuta a ideia de que o estado inclusive ajudou na formação do capitalismo. O ponto é, que tipo de instituições foram criadas de forma a alinhar incentivos privados aos sociais.

A nossa história de industrialização é diferente da coreana, por exemplo. Lá, além de investirem em capital humano, as empresas eram protegidas domesticamente mas tinham que competir nos mercados desenvolvidos. Inovação é a essência processo e depende de educação. O que é a Samsung hoje? É o que não é a Gradiente.

Aqui os incentivos apenas sancionaram, por meio dos lobbies, a extração de renda por meio de monopólios e/ou protecionismo. A reserva de informática foi a política mais exemplar a respeito disso: Bradesco e Itaú agradecem. A Itautec tinha o carinhoso apelido de Itaútreco e a empresa estatal de computadores tinha o inspirador (e atual) nome Cobra. Para os mais jovens: um computador Apple aqui era proibitivo, ou um desktop coreano, afinal “o computador era nosso!”. Notebooks nem se fala. Havia sobretaxa de importação. O que acontecia é que comprávamos os nacionais caros e ruins ou se arriscava com os Frankenstein, cujas peças de Formosa vinham via Ponte da Amizade, claro.

Eu nem vou falar aqui do BNDES, tema para outro artigo no JOTA, mas usar o FGTS e dinheiro do trabalhador sempre foi a base de nossa industrialização. A poupança forçada cuja remuneração pífia garante e garantiu a TJL baixa para as corporações. Eu nunca recebi uma ação da Gradiente, nem da Friboi. Eu, você e todos os trabalhadores do Brasil.

A Lava Jato é a maior oportunidade que temos, com Lei de Compliance e Transparência, para repensarmos nosso capitalismo de estado. Algumas mudanças institucionais ajudariam a controlar corrupção das grandes construtoras em diversos níveis, não somente na Petrobras e a reforma da governança da mesma também ajudaria.

Vamos lá. Que se abra o mercado de construção pesada às grandes construtoras internacionais. Como a Justiça nos países desenvolvidos tem práticas mais consolidadas de controle e punição de corruptores, como as multinacionais querem competir e corrupção é deslealdade, como elas se auto espionam (excelente, por vezes com os serviços secretos de seus países, não somente pela Kroll), naturalmente este ambiente de negócio tende a se afastar do capitalismo bandido.

A reforma da governança da Petrobras deveria se inspirar na estatal norueguesa Statoil. Há insulamento político total e um conselho de administração de facto, não de jure, onde a responsabilização com controle e cobrança (accountability) é crível pois o conselho vai para a cadeia, se algo errado grave acontece. Adicionalmente, o mercado de petróleo e energia alternativa (Petrobras deveria virar Energibras) deve estar mais aberto à competição internacional. Neste sentido é mais do quem bem-vindo o projeto proposto – e aprovado no Senado – por José Serra.

Mas, a maior evolução institucional que a Lava Jato pode fornecer não está no âmbito das instituições formais, mas das informais, como as mentalidades.

Deixei, claro, para o final do artigo o seu ponto principal: deve-se abrir uma frente de batalha intelectual contra a aceitação tácita do capitalismo de estado brasileiro, que é mais um capitalismo de estado bandido e concentrador de renda, de que estado é bom, mercado ruim, de que o que importa não é o petróleo ser nosso, mas a tecnologia e o avanço dela.

Sendo cruel, contudo, a batalha exige paciência, algo que este que voz escreve por vezes perde com facilidade. Passo de padre franciscano a jacobino exaltado em pouco tempo. É uma luta de intelectuais orgânicos que devem conversar com os intelectuais orgânicos “do outro lado”. Embora, na verdade, isso seja impossível, pois não dá para dialogar com pessoas que, com justeza, vêm a realidade acabar com todas suas crenças erradas e perdem seus modelos mentais e, na tentativa de mantê-los, apelam para hipóteses ad hoc indefinidamente. Afinal, para alguns, a Terra é plana pois o céu parece curvo.

(Texto originalmente publicado no JOTA)

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