O desembargador José Roberto Nalini, hoje Secretário Estadual de Educação de São Paulo, fez uma declaração, num jornal televisivo, que foi interpretada com certa injustiça, creio. Ele afirmou, respondendo a uma questão sobre o auxílio-moradia que juízes recebem, no valor de R$ 4.300,00 que:
“Esse auxílio-moradia disfarça um aumento do subsídio que está defasado há muito tempo. Hoje, aparentemente o juiz brasileiro ganha bem, mas ele tem 27% de desconto de Imposto de Renda, ele tem que pagar plano de saúde, ele tem que comprar terno, não dá para ir toda hora a Miami comprar terno, que cada dia da semana ele tem que usar um terno diferente, ele tem que usar uma camisa razoável, um sapato decente, ele tem que ter um carro. Espera-se que a Justiça, que personifica uma expressão da soberania, tem que estar apresentável. E há muito tempo não há o reajuste do subsídio. Então o auxílio-moradia foi um disfarce para aumentar um pouquinho. E até para fazer com que o juiz fique um pouquinho mais animado, não tenha tanta depressão, tanta síndrome de pânico, tanto AVC etc. Então a população tem que entender isso. No momento que a população perceber o quanto o juiz trabalha, eles vão ver que não é a remuneração do juiz que vai fazer falta. Se a Justiça funcionar, vale a pena pagar bem o juiz.”
Mesmo que se observe que:
(i) Não é 27%, mas 27,5% a alíquota injusta paga pelos mais ricos no Brasil – seria mais correto que, por seus rendimentos, como veremos abaixo, juízes caíssem numa alíquota de 30% a 35% – e que qualquer mortal que ganhe como eles cairia nesta alíquota;
(ii) o fato de que quem não é juiz paga, se desejar, seu plano de saúde também;
(iii) de que um terno de boa qualidade nacional, com tecido italiano, de bom corte, clássico, sai por R$ 2.500,00 (e não é preciso comprar terno todo mês, bastam 5 que duram dez anos);
(iv) que síndrome do pânico e depressão atingem várias profissões de maneira aguda, como policiais e professores;
(v) que a Justiça brasileira funcional mal (sugiro ao leitor que leia este relatório do Banco Mundial).
A crítica ao desembargador foi exagerada. Trata-se de pessoa competente, como atesta a entrevista dada à Folha de S.Paulo recentemente.
Por vezes, em programas de televisão ao vivo algumas pessoas se confundem ao explicar uma boa opinião de uma maneira infeliz – sou prova disso, por sinal. Por exemplo, recentemente, ao final de 2015, o mesmo desembargador afirmou na televisão, falando sobre o ISIS:
A injustiça à qual me refiro está no fato de que modelos mentais baseados no interesse próprio – em uma parte é autoengano, noutra é desconhecimento do Brasil real – não seria vício de raciocínio apenas dele, mas de boa parte da elite do País, das classes A e B.
Para desenvolver o raciocínio, peço um pouco de paciência do leitor. Marx foi um dos primeiros economistas a perceber o papel que a ideologia desempenha na Ciência e na sociedade. De forma equivocada, em parte, e acertada de outra, Marx vê a ideologia como algo relacionado a interesse e/ou posição do indivíduo na sociedade. Aqui uso a clássica apresentação crítica de Schumpeter ao problema no seu clássico “Science and Ideology” (American Economic Review, Vol. 39, No. 2, Mar., 1949, pp. 346-359). Considerando o modelo simplista de luta de classes do marxismo primário, o burguês poderia abraçar uma ideologia liberal, pois na posição em que ele ocupa no mundo isso é natural, racionaliza de forma inconsciente o status quo. Por outro lado, o mesmo burguês poderia abraçar esta visão de mundo somente por interesse, pois ela racionaliza de forma mais ou menos consciente seus interesses de classe.
Ideologia seria ou racionalização inconsciente, uma espécie de autoengano sem propósito, ou racionalização consciente dos interesses de classe.
Douglass North, Nobel de economia 1992, em sua juventude foi marxista ideologicamente e como economista – depois viraria liberal ideologicamente e economista institucional – reteve algo desta visão de Marx, mas de forma mais elaborada. Sugiro ver “A Conversation with Douglass North” e Ideological Profiles of the Economics Laureates.
Em seu artigo seminal com Arthur Denzau, “Shared Mental Models: Ideologies and Institutions”, North trabalha com ideologia como modelos mentais compartilhados, modelos estes que podem racionalizar de forma inconsciente, por hábito de pensar, vários interesses específicos, visões e percepções morais ou não, científicas ou pseudocientíficas que moldam a forma de um grupo, ou de um cidadão médio num país, de pensar.
Os modelos mentais compartilhados podem ter certa inércia perante as mudanças sociais e econômicas, tendo um papel por vezes reacionário, ou de cimento de determinados status quo (que muitas vezes podem ser contraproducentes do ponto de vista econômico). É a tal história aqui no Brasil: na hora de defender os interesses corporativistas, todo mundo se enrola, como se diz por aí, na bandeira do Brasil e diz que ‘é pelo bem comum’.
Pensando no caso da Justiça no Brasil como caso de autoengano, racionalização de interesses e mentalidades reacionárias que perpetuam injustiças legais, mas imorais, vejamos alguns dados.
A pesquisa mais abrangente que dispomos no momento é uma em andamento, realizada por Luciano Da Ros (UFGRS) e Matthew Taylor (American University), “O custo da Justiça no Brasil: uma análise comparativa exploratória”. Dela e de outras fontes podemos mencionar alguns dados que assustam e que deveriam derrubar qualquer autoengano ou envergonhar qualquer indivíduo com interesse racionalizado por um modelo mental:
(i) as despesas totais do sistema de justiça como porcentual do PIB são: França, 0,2%, Itália, 0,3%, Alemanha, 0,35%, Inglaterra, 0,32%, Brasil 1,8%;
(ii) Quantas vezes o salário dos juízes é superior à renda per capita, início e fim de carreira? Alemanha 1,2/ 3,11, EUA, 3,23/ 4,15, Brasil, 12,34/15,15
(iii) Considerando Portugal, Espanha, Itália e França, mais os países citados, a média é convergente e nunca passa de 7 (Itália, final de carreira).
Todos os dados de eficiência da Justiça – o espaço aqui não me permite apresentá-los -, indicam que a Justiça no Brasil é, de longe, a mais ineficiente. Mais uma vez sugiro os dados do Banco Mundial e “Estudo exploratório da eficiência dos Tribunais de Justiça estaduais brasileiros usando a Análise Envoltória de Dados (DEA)”, publicado em 2012 na Revista de Administração Pública.
Por outro lado, o Estado de S. Paulo publicou matéria sobre estudo do Ministério da Fazenda e do Congresso Nacional indicando que se fossem eliminados os privilégios de servidores, tais quais auxílio-moradia – que são penduricalhos para burlar a lei – e se os juízes recebessem o que manda a Constituição, faríamos uma economia de R$ 10 bilhões, ironicamente número esperado de arrecadação via CPMF.
Considera-se neste exercício todas as esferas da Federação. Se for pensar somente na União, a economia seria de R$ 1 bilhão por ano. Nesta burlada legal, mas imoral, na Constituição, há servidores que ganham acima do teto legal (R$ 33,7 mil), que é o salário do Presidente do Supremo Tribunal Federal, e há cinco servidores aposentados que recebem salário líquido (!) acima de R$ 100 mil. Adicionalmente, 50% ou mais dos procuradores e subprocuradores recebem acima do teto constitucional.
Há um projeto de Lei (3.123/2015), enviado pelo Executivo como uma das medidas de ajuste fiscal, que pretende acabar com os salários legais, mas repito imorais, de servidores do Legislativo e do Judiciário. O relator da matéria na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara, Nelson Marchezan Júnior (PSDB-RS), afirma que o projeto é necessário pois os outros poderes não cumprem o que está estabelecido na Constituição. O paradoxal é o Judiciário não o fazer, ou que o faça de forma disfarçada dando uma chicana na lei.
As manobras legais aparecem com o uso de verbas indenizatórias, que não são tidas como remuneração permanente e não são passíveis de pagamento de IRPF e de pagamento previdenciário. O uso do auxílio-moradia também é um instrumento para tal, que não precisa de comprovação de pagamento de aluguel ou hotel.
Voltando às mentalidades para fechar o argumento, mentalidades coletivas também podem encerrar autoengano coletivo e aqui todos nós somos pecadores. No Brasil, quem é rico se acha pobre. Rudi Rocha e o saudoso colega André Urani realizaram uma pesquisa que identifica este fato, este modelo mental coletivamente compartilhado e que pode ajudar a entender em parte o comportamento dos servidores (Posicionamento social e a hipótese da distribuição de renda desconhecida. Brasil: quão pobres, quão ricos e quão desiguais nos percebemos?)
Os brasileiros ricos tendem a se comparar com os cidadãos de países de renda per capita 5, 6 ou 7 vezes maior que a nossa e por isso, sentem-se pobres. Não há a percepção de quão desiguais somos.
Se autoengano inconsciente, ou não, pior, interesse mesmo, ou se resultado de uma visão equivocada de nós mesmos, o caso dos supersalários do Judiciário revela que há muito o que mudar, não na lei somente, mas na nossa ‘cultura’ a respeito do bem público
O atendimento com políticas públicas focais e que tendem a romper com círculos viciosos de pobreza, como o Bolsa Família, devem ser nossa prioridade, assim como saneamento básico ausente para metade de nossos concidadãos.
Imaginem o custo de oportunidade, ou falando português, o que poderíamos fazer com este dinheiro, R$ 10 bilhões, para pesquisa e ação prática contra o Aedes!? Contra a virulenta dengue e o zika!?
O Estado brasileiro continua a tirar do pobre e dar para o rico – neste caso para os ricos donos do poder, um verdadeiro estado do mal-estar social e moral.
* Marcos Fernandes G da Silva, 52, é pesquisador associado de políticas públicas (CEPESP/FGV), professor de microeconomia e governo FGV/EAESP e da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. E-mail: marcos.fernandes@fgv.br