É consensual que o governo Dilma errou na condução da política econômica. Também é razoável afirmar que ela herdou uma série de desequilíbrios de seus antecessores, mas não é correto afirmar que seu fracasso se deve à adoção de uma estratégia desenvolvimentista; não é possível identificar a maioria de suas escolhas nessa escola de pensamento. Para explicar esse argumento, entender onde ela errou, e apontar a atual repetição de equívocos, precisamos voltar um pouco mais no tempo.
O governo Lula deu sequência ao ajuste fiscal iniciado por FHC e manteve superávits primários elevados até 2008 (no patamar de 2,5%), antes da crise financeira internacional. Nesse período, a taxa de juros real (descontada a inflação) permaneceu elevadíssima, no intervalo entre 6 e 12%, mesmo com a dívida pública diminuindo (como proporção do PIB). Por consequência nossa moeda se valorizou muito e a inflação caiu. Como o mundo estava vivenciando um boom de crescimento, a situação de nossas contas externas não foi prejudicada pela valorização, e mesmo a indústria nacional apresentou bons resultados. O país parecia retomar a rota dos investimentos, mas escondia desequilíbrios macroeconômicos importantes, principalmente uma taxa de juros muito elevada e uma moeda valorizada, irreconhecíveis pela maioria das pessoas em função dos efeitos positivos da bonança externa.
Mas veio a crise, e com ela o cenário muda. Dilma recebe o governo com a nossa moeda no nível mais valorizado desde 1995 e os ventos externos favoráveis já tinham se dissipado. Depois da crise de 2008/9, nossas exportações de bens industriais caíram – a redução da demanda mundial e a moeda valorizada levaram as empresas transnacionais a diminuírem as exportações oriundas do Brasil – e as importações aumentaram drasticamente, atendendo parcela relevante do crescimento da demanda interna. A distância entre o volume de vendas no mercado interno e a produção industrial ampliou-se. Começa o longo período de estagnação da indústria, que hoje se encontra no patamar observado em meados de 2004. Medidas para reverter esse cenário faziam-se urgentes.
Portanto, Dilma tem razão quando argumenta que o cenário externo a atrapalhou; porém, as medidas que adotou a partir daí foram desencontradas, diversa delas equivocadas, e não conseguiram reverter o cenário bem menos amigável que aquele com o qual seu antecessor, Lula, conviveu. Primeiro, seu governo buscou conter a alta da inflação, que vinha pressionada principalmente pela evolução dos preços dos serviços (que não são negociados com o exterior e portanto são imunes ao impacto que a valorização da moeda poderia exercer no sentido de inibir seus reajustes) com o represamento de preços de serviços públicos. Um grave erro, que além de piorar a situação financeira das empresas e inibir o investimento nestes setores, contribuiu para pressionar a inflação em 2015. Já tínhamos cometido esse erro em outras oportunidades no passado. Mas por outro lado Dilma também sabia, corretamente, que reduzir a taxa real de juros e desvalorizar nossa moeda era uma condição essencial para retomar o crescimento da indústria e do conjunto da economia. A tarefa não era fácil, e iria ocorrer em um cenário em que a inflação já se encontrava ligeiramente acima da meta. Uma mudança de sinais tão ambiciosa como essa – alteração de patamar de juros e câmbio – demandava um governo forte, com capacidade para controlar movimentos especulativos (tanto que taxou o mercado futuro de operações cambiais, corretamente) e frear o aumento dos preços via controle da expansão da demanda no país, de forma a elevar sua credibilidade. Daí a necessidade, naquele momento, de reduzir os gastos públicos. Só que o governo fez o contrário – expandiu-os porque acreditava que conseguiria, com essa medida, se contrapor aos efeitos da redução da demanda mundial sobre nossa economia. Consequentemente a inflação retomou a trajetória de alta e o Bacen voltou atrás em relação à trajetória de queda da taxa de juros.
O movimento mais importante que o governo tinha adotado, em anos, teve que ser abortado porque não foi realizada a redução das despesas públicas indispensável naquele momento. Como a desvalorização da moeda não ocorreu na magnitude necessária, já que a taxa de juros voltou a se elevar, lá veio a equipe econômica com mais uma medida imediatista: a concessão de subsídios e desonerações fiscais para compensar e reduzir custos. A escolha dos setores beneficiados levou em consideração os impactos deles nas cadeias produtivas, isso é, sobre a produção dos demais setores, mas possivelmente também foi fruto de pressões políticas. E todos sabiam que essas medidas eram temporárias, portanto terminaram não estimulando decisões de investimento produtivo. Para piorar, o suposto estímulo à demanda oriundo dos incentivos, desonerações e expansão do crédito foi atendido, em boa parte, por importações, em função da valorização da moeda, o que também desestimula a produção de bens no país.
Foi uma sucessão de erros que foram se agravando à medida que o governo elevava seus gastos para tentar recuperar a economia e reeleger Dilma. O efeito era contrário ao esperado pela equipe econômica, já que a parcela mais bem informada da sociedade previu os feitos negativos dessa expansão desenfreada das despesas públicas.
Para completar, Dilma tenta reverter as expectativas negativas e recuperar a confiança do mercado convidando para o Ministério da Fazenda uma pessoa com pouquíssima afinidade ideológica e econômica. Não poderia dar certo; o ministro Levy implementou um profundo corte dos investimentos públicos em 35% (já descontada a inflação) em um ano, ao invés de atacar os gastos correntes (com as operações corriqueiras do governo e pessoal, por exemplo). É o tipo de ajuste fiscal que não pode ser bem sucedido; o desaquecimento se aprofunda, a arrecadação cai e, junto com a alta da taxa de juros que foi praticada, pressionou as despesas do governo e aumentou mais ainda a dívida pública. Nelson Barbosa tentou melhorar a situação, inclusive propondo um teto para a evolução das despesas go governo, mas não teve tempo e apoio político para implementar suas propostas.
Podemos sintetizar o impacto dessa sucessão de erros sobre o setor privado através do comportamento da margem de lucro das empresas, principalmente das produtoras de manufaturados. Na indústria de transformação, extrativa mineral e o seu conjunto, houve queda da relação entre o lucro oriundo das vendas e a receita bruta das mesmas vendas durante o governo Dilma. Parcela relevante da insatisfação com seu governo provém desse fato, principalmente do impacto, como já afirmado, sobre a indústria de transformação. Menores taxas de lucro resultam em menos investimentos, emprego e inovação. Esse é um dos maiores erros de sua gestão: não se pode desconsiderar a importância da taxa de lucro para o funcionamento adequado do sistema econômico.
Sua política foi novo desenvolvimentista? Não pode ser assim chamada. Os novo-desenvolvimentistas defendem o investimento como mola mestra do crescimento, e para tal deve-se preservar a taxa de lucro, que no caso da indústria de transformação é muito suscetível às oscilações cambiais . Mas os setores primários (no caso, os extrativos) apresentam margens de lucro bem maiores que na indústria de transformação por serem beneficiados pela abundância de recursos naturais. Os produtores da indústria de transformação não conseguem, ao contrário dos produtores de primários, absorver em seus custos os impactos de uma moeda valorizada.
Também entendemos que a taxa de juros real deve ser reduzida, as contas do governo ajustadas, com superávit nos gastos correntes para o governo poder elevar seus investimentos…as contas externas devem ser equilibradas e a política industrial, voltada à inovação com cobranças de resultados…. e os salários devem crescer em linha com a produtividade. Por fim, é fundamental a existência de uma estratégia nacional de desenvolvimento.
Ainda que Dilma tenha tentado implementar uma parte dessas medidas, não é possível dizer que seu governo tenha seguido esse receituário. As decisões imediatistas e desencontradas não seguiram a lógica aqui descrita. Infelizmente, o governo recém-empossado está enveredando pelo mesmo binômio juros altos – moeda valorizada em, por enquanto, têm expandido os gastos públicos em atividades não essenciais. Parece que também não aprendeu com os erros passados. Vamos esperar que atente para este aspecto e reverta esse quadro.
(Nelson Marconi é professor da Escola de Economia da Fundação Getulio Vargas e presidente da Associação Keynesiana Brasileira. O artigo reflete apenas as opiniões do autor. Uma versão mais curta deste texto foi publicado em “Época”.)