O Brasil sempre foi um exemplo internacional em ações de combate e tratamento à doenças e epidemias que afetam o conjunto da população, como ocorreu no enfrentamento ao HIV-AIDS, da hepatite C e do Zika. Agora, contudo, a resposta do país à epidemia do coronavírus está aquém de outros momentos e o país pode ficar de fora do eventual licenciamento voluntário para a vacina do coronavírus por conta da postura negacionista da ciência que vem sendo adotada pelo governo federal na Saúde e outras áreas. Esse foi um dos pontos destacados no debate realizado na manhã desta terça-feira, organizado pelo Insper, com participação da professora da FGV EAESP e pesquisadora do Cepesp, Elize Massard da Fonseca, do professor Octávio Ferraz, professor de direito público e co-diretor do Transnational Law Institute do King’s College London, e coordenação de Natalia Pires, professora do Insper. O foco do webinar foi o papel da Justiça no combate ao covid-19.

Fonseca observou que os países têm sinalizando uma flexibilidade com as regras de proteção intelectual presentes no acordo TRIPS (Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, que rege a proteção de patentes no âmbito da Organização Mundial de Comércio-OMC) de uma forma que nunca ocorreu antes. Mas o Brasil, que sempre liderou essas discussões de flexibilidade do acordo de propriedade intelectual hoje corre o risco de ficar de fora, no final da fila de um eventual licenciamento voluntário para a produção da vacina. “Por conta da grande capacidade que o Brasil tem de produzir vacinas seria bem possível que o país fosse um destes países a receber o licenciamento voluntário”, observou. A pesquisadora destacou que existe um projeto de lei no Congresso para permitir licenciamento compulsório em caso de emergência nacional, mas não há um consenso se ele é necessário ou se o arcabouço jurídico já existente é suficiente.
A pesquisadora do Cepesp falou da pesquisa que está sendo coordenada por ela, em parceria com a Universidade de Michigan e apoio financeiro da FAPESP, e que está estudando “como e porque” cada país adotou determinadas medidas de combate à epidemia. Entre os possibilidades que estão sendo levantadas pelos pesquisadores, está a de “memória institucional”, baseada nos estudos de Peter Baldwin, e que aborda o que os países fizeram em epidemias no passado para entender a reação atual; outros dois pontos são a capacidade dos países em lidar com crises de saúde pública (e a diferença entre a estrutura e a resposta), e, por fim, a existência e a extensão de ações coordenadas, que é fundamental em doenças que cruzam fronteiras.

O Brasil, lembrou ela, teve experiências muito exitosas no passado no tratamento de epidemias (e lembrou tanto do enfrentamento do HIV-AIDS como da hepatite C) e também possui uma rede de vigilância epidemiológica que funciona muito bem e também uma rede de pesquisa em saúde (o país já está fazendo estudos de vacina e fez o mapeamento do DNA do vírus do Covid-19). “Então, o Brasil tinha tudo para ser um caso de sucesso na resposta à epidemia do Covid”, disse ela, acrescentando que “também temos alguma coordenação entre os burocratas do Ministério da Saúde e os governos regionais e locais, mas hoje temos o problema sério do negacionismo [da ciência]”, que pode ter consequências sérias na área de saúde, entre outras.
Ferraz é um estudioso da desigualdade e da judicialização da Saúde. Ele ponderou que a primeira impressão, em uma epidemia, é que poderia ser um elemento de redução da desigualdade na saúde pois pode atingir todos. “Mas o que vemos é que a desigualdade em saúde se manifesta de forma ainda mais aguda em um momento como esse”, ponderou. Segundo ele, a desigualdade cresce por quatro razões: os mais pobres estão mais expostos, mais vulneráveis, têm menos acesso aos serviços de saúde e tendem a transmitir mais o vírus entre si.
O segundo ponto analisado por ele foi o da judicialização. Fora de pandemia seus estudos mostram que a judicialização não reduz a desigualdade porque quem mais acessa à Justiça não são os mais pobres. Não está claro, contudo, se na pandemia a judicialização pode reduzir as desigualdades, considerando as primeiras ações que envolvem acesso à UTIs, respiradores, medidas de proteção de queda na renda, etc. Ele afirmou que não é otimista quanto à Justiça ter um papel de redução da desigualdade no acesso à saúde nesse momento de pandemia, mas é cedo para ter uma resposta do papel que a Justiça terá.
O debate pode ser assistido aqui.