Por Juliana Reimberg*
O novo censo da população em situação de rua na cidade de São Paulo, divulgado em janeiro e que apurou a quantidade de adultos utilizando os espaços públicos e as unidades de acolhimento da assistência social para moradia, mostrou que há 24.344 pessoas vivendo nesta condição, das quais cerca de 15% são do sexo feminino.
Na comparação com os dados do censo de 2015, o percentual de mulheres nesta situação manteve-se constante, mas este grupo cresceu de 2.326 para 3.604 pessoas. A situação de rua feminina, portanto, é uma realidade na cidade de São Paulo, o que traz novos desafios para as políticas públicas.
Com base em estudo empírico feito em 2019, no qual foram entrevistadas mulheres acolhidas em um centro da Assistência Social de São Paulo e funcionárias deste serviço¹, foram identificados três desafios específicos à situação de rua feminina, que precisam ser considerados pelas políticas públicas voltadas a este grupo: violência de gênero, maternidade e empregabilidade.
1- Violência de gênero
Infelizmente, a violência contra a mulher é uma realidade no cotidiano brasileiro. Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2017, foram notificados 220.559 casos de agressão a mulheres no país. No caso das mulheres em situação de rua entrevistadas, as que se reconhecem como vítimas de violência doméstica, associam a saída de suas residências e a consequente ida para um centro de acolhimento aos processos de violência que sofreram dentro de seus lares. Para elas, a condição em que se encontram não está somente associada a processos de pobreza e vulnerabilidade dos vínculos familiares, mas também, ao fato de não se sentirem seguras em suas moradias.
Outra face da violência de gênero que também é recorrente entre essas mulheres são os assédios e agressões que ocorrem no espaço público, local que frequentemente é utilizado para moradia temporária. Algumas entrevistadas optaram por pernoitar em centros de acolhida exclusivos para mulheres, após vivenciarem episódios de violência.
Estas experiências resultam em marcas psicológicas graves que precisam ser abordadas nas políticas públicas voltadas a este público. Uma estratégia importante para lidar com esta situação é fomentar a interdisciplinaridade no acolhimento dessas mulheres, unindo áreas como saúde, assistência social e suporte jurídico.
2- Maternidade
Outro desafio presente na situação de rua feminina é a maternidade. Os dados levantados pelo censo apuram apenas a quantidade de adultos que estão nesta situação, mas uma pesquisa publicada em 2011 pela Secretaria de Direitos Humanos aponta que na época havia 23.973 crianças e adolescentes espalhados pelo Brasil vivendo em tal condição. Apesar de uma parte desses jovens viverem de maneira autônoma, pode-se dizer que a presença nas ruas de muitas crianças e adolescentes está associada à figura materna.
Os centros de acolhida exclusivamente femininos permitem que a mulher seja abrigada acompanhada de filhos. Em contrapartida, os serviços de acolhimento apenas para homens não permitem a presença de crianças e adolescentes, por questões de segurança. Assim, uma realidade presente entre as famílias em situação de rua é que o pai esteja em um serviço de acolhida distinto do da mãe e dos filhos.
A justificativa desta divisão é a proteção das crianças e dos adolescentes. É inegável, contudo, que esta separação reproduz práticas patriarcais, onerando mais as mães nos cuidados dos filhos. Atividades cotidianas como auxiliar as crianças nas refeições, nos cuidados diários de higiene e no trajeto do centro de acolhida até a escola são responsabilidades que ficam para as mães. Os pais, que são proibidos de entrar nos centros de acolhida femininos, convivem com os filhos principalmente em momentos de lazer.
Apesar de hoje em São Paulo existirem serviços socioassistenciais específicos para famílias em situação de rua, o que auxilia a reduzir tal distorção, a oferta desta modalidade de acolhimento ainda é limitada, não atendendo a maior parte da demanda.
3- Acesso ao mercado de trabalho
O terceiro desafio refere-se à empregabilidade. Por um lado, há um preconceito por parte dos empregadores, reticentes em contratar uma pessoa que se encontra em situação de vulnerabilidade e sem residência fixa. Por outro, há uma competição inerente ao mercado de trabalho, atualmente caracterizado por alta taxa de desemprego.
Além desses pontos, as mulheres em situação de rua também precisam conciliar o cuidado com os filhos com o ingresso no mercado de trabalho. Como a maioria das crianças fica meio período na escola, as mães precisam estar com eles no contra turno escolar. Algumas até conseguem encontrar outras acolhidas que cuidam dos filhos enquanto elas trabalham. Porém, determinados equipamentos socioassistenciais em São Paulo permitem que as mães deixem os filhos ao cuidado de outras acolhidas somente se estas estiverem trabalhando formalmente, uma exigência que é distante da realidade do mercado de trabalho.
Os desafios acima citados devem ser vistos como pontos iniciais para pautar o debate sobre uma das faces da feminização da pobreza. Alguns avanços já existem e merecem ser destacados, como a criação recente do Comitê de Mulheres PopRua na cidade de São Paulo para discutir a situação de rua feminina entre governo e sociedade civil. É necessário, contudo, que a perspectiva de gênero seja incorporada nas políticas públicas para a população em situação de rua. Caso contrário, é pouco provável atingirmos resultados promissores neste tema.
* assistente de pesquisa do Cepesp/FGV
1 – pesquisa feita pela autora para o trabalho de conclusão de curso “A Situação De Rua Feminina Na Cidade De São Paulo: Análise De Um Centro De Acolhida Especial A Partir De Narrativas Individuais“, apresentada à Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EAESP FGV) para obtenção do grau de bacharel em Administração Pública.