Para pesquisadores, crise do Covid vai mudar o mundo, mas alternativa pode ser mais ou menos democracia

CEPESP  |  1 de maio de 2020
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A crise mundial provocada pela pandemia do Covid-19 vai tornar as sociedades mais democráticas ou mais autoritárias? Essa questão – para a qual não há ainda uma resposta -norteou o seminário online conjunto do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e o Centro de Política e Economia do Setor Público da Fundação Getulio Vargas (FGV CEPESP) com a presença dos professores  Philippe Schmitter (European University Institute) e Terry Lynn Karl (Stanford University), e de George Avelino, coordenador do FGV CEPESP e professor da FGV EAESP,  com mediação de Lorena Barberia, professora da Ciência Política da USP e pesquisadora do CEPESP.

O ponto de partida do seminário foi um pequeno texto de Schmitter sobre o que ele considera como “a ambiguidade política incorporada na crise do COVID-19”. Para ele, o cerne dessa ambiguidade está na distância entre o que poderia e o que provavelmente será feito em termos de políticas públicas e reforma institucional a partir dessa crise mundial. No texto, ele pondera que a expressão chinesa para “crise” combina dois caracteres, o primeiro para “perigo” e o segundo para “oportunidade”.  Para Schmitter não está claro se a crise será usada para melhorar ou minar o regime político existente (ou os regimes), mas na sua avaliação é “indiscutível” que o que ele chama de democracia existente “não permanecerá a mesma”. 

Na sua fala inicial no webinar, o pesquisador reforçou que sua interpretação é baseada tanto na história do impacto que pragas tiveram sobre diferentes regimes políticos no passado, como no que ele considera como uma crise moderna nos fundamentos da democracia, anterior à eclosão da pandemia do Covid-19. Um dos conceitos com o qual o pesquisador vem trabalhando é o de democracia real existente (“real-existing democracy”).  Para ele, desde o começo do século XIX, o que o mundo tem já é um conceito híbrido de democracia, no qual os valores democráticos estão misturados aos conceitos do liberalismo.  “E agora, nós temos os dois argumentos juntos:  a democracia real já está com problemas e temos uma epidemia”. Esse é o ponto de partida da sua reflexão: como as duas coisas juntas vão afetar o futuro das instituições e da própria democracia. Para onde, é uma incógnita. “Mas sabemos que não vamos retornar para onde estávamos. A questão é se essa oportunidade vai ser explorada por àqueles que querem enfraquecer a democracia, no sentido de fazê-la mais liberal, ou por àqueles que querem reforçá-la, e torná-la menos liberal”.

Para Avelino, não há como discordar de duas premissas: a vida não será mais como era antes e a magnitude das mudanças estará relacionada ao tempo, até que alguém encontre uma vacina eficaz contra o Covid-19 que permita que o mundo se estabilize.

Para o coordenador do CEPESP,  a nova rodada de fortalecimento do Estado pode levar a dois conjuntos de alternativas relacionadas: pelo lado político, o ressurgimento de governos autoritários ou o fortalecimento das democracias; pelo lado social, os gastos para combater a pandemia podem reforçar alternativas fiscalistas na recuperação, ou podem abrir espaço para alternativas social-democratas.

Na Austrália, comemorações do 1º de Maio pedem políticas públicas para manter empregos. Foto: Fotos públicas

A hipótese de “ressurgimento de governos autoritários promovidos por regulamentos e restrições de saúde, a necessidade de uma capacidade administrativa centralizada, acoplados a um crescente nacionalismo” foi classificada por Avelino como uma saída “a la China”, já que em países mais democráticos, como o Brasil, está sendo muito difícil mudar hábitos e manter as pessoas em casa.  Já o fortalecimento “das democracias por meio do uso mais amplo de alternativas de mobilização social e representação política que não as presenciais (face-to-face)” pode “enfraquecer as tendências atuais de polarização política”, observou Avelino. Para ele, o distanciamento social no Brasil está fazendo as pessoas usarem as redes sociais de um jeito que ultrapassa suas bolhas. Isso pode abrir espaço para que elas “não sejam mais território de radicais atrás das telas de seus computadores.” “Talvez as redes se tornem um local interessante de debate”, argumentou.

No lado social, detalhou Avelino, o enfrentamento da crise está demandando gastos extraordinários de todos os países, e o pós-crise pode levar a dois cenários. No primeiro, “a recuperação da economia internacional lembrará rapidamente a todos sobre a natureza competitiva dos mercados e das finanças internacionais”, que exigirão dos países que precisam atrair esses recursos, medidas de ajuste fiscal que, e na maioria dos casos, “incidirão sobre os mais pobres e sem representação”.  A segunda opção, é que como a crise também expôs a fragilidade de modelos muito liberais para cuidar da saúde de sua população, a recuperação também pode abrir espaço para opções social-democratas de recuperação com políticas públicas mais solidárias e equitativas.

Para Schmitter, Brasil e Estados Unidos têm, neste momento, os mais incompetentes líderes do mundo inteiro, em termos intelectuais. “E os dois se parecem”, observou. Buscando o conceito de “fortuna” em Maquiavel, o professor ponderou que um grande acordo político (necessário para enfrentar uma situação como a atual) depende dos líderes, mas também dos partidos, das coalizões, e neste momento os dois países tem o pior arranjo para lidar com a epidemia do Covid-19 e suas consequências.

Na avaliação de Terry Karl, o coronavirus já está mudando o debate político nos Estados Unidos. Ele “chegou” ao país pelas costas leste (via Europa) e oeste (via Ásia) e agora está migrando justamente para o interior do país, onde se concentrou o voto em Donald Trump, um voto branco, tanto de pobres de baixa escolaridade, como dos extremamente ricos. E essa é uma região do país com pouco acesso a recursos de saúde, poucos médicos, poucos equipamentos. Ela vê, nessa situação, espaço para que a liderança de Trump seja questionada, até porque nestas regiões parte dos eleitores antes votaram em Barack Obama e depois, se sentindo desprotegidos, migraram para Trump.

Para a professora, outra situação que pode provocar mudanças nos Estados Unidos é o papel que os governadores estão desempenhando neste momento. Eles estão (como no Brasil) na linha de frente do combate à epidemia e “estão se tornando uma espécie de heróis nacionais” para a população, e isso ocorre mesmo em Nova York, epicentro da crise do coronavírus no país, onde já morreram mais de 18 mil pessoas, com o democrata Andrew Cuomo. 

Avelino lembrou que no Brasil, a polarização marca a política de combate ao Covid-19, e que Bolsonaro, embora bastante isolado entre as elites políticas, ainda detém importante apoio popular. Questionado por Schmitter ele explicou que os militares não estão exatamente “com” Bolsonaro. Embora façam parte do seu governo, Bolsonaro não representa a corporação.

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