A falta de um ambiente acadêmico do Direito institucionalizado no Brasil reduz o volume e a qualidade das pesquisas e, principalmente, da crítica e do debate público sobre as decisões e o rumo do Judiciário. Essa é a avaliação do professor Mário Schapiro, da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo, mestre e doutor em Direito pela USP e com pós-doutorado pela New York University. Para Schapiro, a falta de um debate público mais aprofundado permite o adensamento de um Judiciário que decide casos pelas suas especificidades e não pela pertinência aos precedentes. “É uma espécie de justiça do caso, que não permite uma estabilização dos conflitos, não é previsível”, diz ele nesta entrevista ao blog do CEPESP, centro de pesquisas ao qual também é vinculado como pesquisador.
Na entrevista a seguir, Schapiro também fala da política industrial brasileira, tema que estudou de perto, e do papel do Direito concorrencial.

Leia a seguir as 5 Perguntas para Mário Schapiro:
1) O Estado brasileiro criou duas políticas industriais volumosas – em medidas e em gasto tributário – nos últimos dez anos, sendo a PDP, de 2008, a primeira, e o Plano Brasil Maior (de 2011, ampliado em 2012), a segunda. Apesar de todo esse ativismo e do direcionamento de recursos públicos para a indústria, com redução de impostos, financiamento subsidiado e compras governamentais, a indústria não deixou de perder participação no PIB, cortando também empregos e reduzindo a penetração internacional. Esses incentivos deram errado ou foram mal desenhados?
Mário Schapiro: Os indicadores industriais obtidos no período são de fato ruins. Além destes que você mencionou, eu acrescentaria os dados de inovação. Olhando para os números da PINTEC, uma pesquisa de inovação feita pelo IBGE com cerca de 80 mil empresas, o volume de inovações de produto para o mercado ficou praticamente estagnado em quase duas décadas. E o dado já era ruim antes disso. Mesmo assim, é preciso cuidado para não descartar de chofre os incentivos industriais e por duas razões. A primeira é o fato de não termos um contrafactual, ou seja, não sabemos como a indústria estaria sem a política. A segunda é a ocorrência da crise financeira de 2008 e de seu rebote em 2011. Mesmo assim, algumas conclusões podem ser apresentadas e elas se referem aos meios empregados pelas políticas, que apresentaram dois tipos de problemas. O primeiro é em relação à capacidade administrativa do arranjo institucional e o segundo diz respeito às suas capacidades políticas. No lado administrativo, a política industrial contou com uma governança desenvolvimentista incompleta, baseada em conselhos de competitividade, que, no entanto, não eram loci decisórios reais. Havia com isso uma sobreposição de competências entre ministérios e uma prevalência do Ministério da Fazenda nessa configuração. A conseqüência foi a formulação e a implementação de uma política sem uma centralidade burocrática. Isso levou, a meu ver, a uma cacofonia decisória. Afinal, quem respondia pelas medidas e quem seria cobrado pelos seus resultados?
No lado político, a política industrial contava com uma representação dos interesses que ficou no meio do caminho entre uma representação corporativa, aos moldes asiáticos, baseada em uma relação com setores reconhecidos pelo Estado, como as confederações ou federações industriais, e uma representação pluralista, em que os interesses se organizam de forma voluntária. A participação nos conselhos, por exemplo, era aberta à CNI, à FIESP, mas também às associações empresariais e até mesmo a algumas empresas, beneficiárias da política. A falta de uma relação mais institucionalizada entre o Estado e os representantes dos setores dificulta a formação de uma agenda consistente. Afinal, quem negocia os incentivos com o Estado representa quais interesses? O dito pacto desenvolvimentista é assinado por quem?
Ambos os problemas, o administrativo e o político, não decorrem da política industrial, são problemas do Estado e das relações público-privadas no Brasil, mas a política industrial, ao rodar nesse ambiente os tornou mais agudos. Além disso, seu desenho não colaborou para mitigá-los. Um exemplo eloquente é a ABDI, uma agência que foi desenhada para promover a articulação público-privada, mas que foi instituída como um serviço social autônomo, ou seja, como Sistema S. Conclusão: não é uma autarquia e não tinha competências formais para coordenar a política, mas como recebe recursos para-fiscais tem os ônus das agências estatais, como o dever de licitar.
2) A relação do Direito com a Economia se aprofundou no país nos últimos anos, com maior protagonismo de órgãos como Cade e do papel de advogados em instituições econômicas públicas. Qual é a sua avaliação da regulação da concorrência no Brasil?
Mário Schapiro: Tivemos um salto inegável nesse segmento. O CADE é antigo, mas seu êxito é recente. Na verdade, o CADE nasce como a CADE, com o Decreto-Lei 7.666, em 1945, mas não alça voo – o decreto dura meses. Depois de uma longa tramitação, o CADE e a legislação concorrencial são finalmente estabelecidos em 1962, com a lei 4.137. A lei foi mais longeva que o Decreto de 45, mas o CADE seguiu como órgão obscuro. Só em 1994, quando muda o arranjo de economia política e uma nova lei é promulgada, é que a legislação concorrencial ganhou fôlego. Entre 1994 e 2004 foi a fase de afirmação da autarquia, com uma atuação bastante voltada para os atos de concentração – fusões e aquisições. Em 2004, as autoridades passaram a focalizar seus parcos recursos e atentaram para um problema explicito da concorrência que são os cartéis. A partir de 2011, o CADE é reformulado com a promulgação de uma nova lei, que altera seu desenho institucional, eliminando os diferentes guichês que compunham o sistema de defesa da concorrência (uma secretaria na Fazenda, outra na Justiça e um tribunal). A lei de 2011 também inverteu o processo de julgamento, de forma que as fusões são primeiro analisadas pelo CADE e só depois podem ocorrer. Isso garantiu mais capacidade de intervenção ao órgão que evitou assim o risco dos fatos consumados.
O desafio para frente é desenhar uma política de defesa da concorrência cada vez mais consistente com os problemas do país, ou seja, com o tipo de capitalismo concorrencial que nós temos no Brasil. Isso passa por aprofundar a atuação, já em curso nos últimos anos, de investigar os ilícitos em compras públicas, e de atentar para o poder de ação dos conglomerados multissetoriais, que nem sempre desafiam a competição em mercados pontuais, mas que no agregado de sua atuação, em razão de seu poderio econômico, podem limitar a entrada de novos concorrentes. A compra de start ups por grandes grupos pode ser um exemplo desse problema.
3) Desde o fim de 2014, quando se intensificou a operação Lava Jato e seus desdobramentos surgiram, um grupo de empresas ficou paralisado (Petrobras, Odebrecht, Camargo Correa, JBS, EBX, Eletrobras e outras) com a prisão de empresários, diretores e a investigações de outros agentes. Há uma discussão grande sobre os acordos de leniência, que permitiriam separar os crimes praticados pelas pessoas físicas das empresas (separando CPFs dos CNPJs), o que poderia manter as empresas operando. Pouco se avançou de lá para cá nessa agenda. Como esse desenho poderia funcionar de forma a permitir que a economia continue rodando?
Mário Schapiro: Acredito que há aqui dois problemas, um político e outro corporativo. No âmbito político, há problemas na coordenação da leniência. Note que a cacofonia da política industrial encontra um eco na sobreposição de agências com poder de atuação na aplicação das sanções de improbidade e corrupção. O efeito aqui pode até ser pior, pode levar não a um custo de oportunidade, como na política industrial, mas ao custo de empresas quebradas, perda de investimento e de empregos.
No âmbito corporativo, muitas destas companhias são empresas com dono, ou seja, são empresas familiares. A separação do CPF e do CNPJ nesses casos não é trivial. Para funcionar, as empresas precisarão vivenciar reformas de governança capazes de transmitir credibilidade para os investidores, para os investigadores e para o público. Os ilícitos que muitas delas praticaram foram realizados, em muitos casos, pelos proprietários e não, ou não apenas, pelos administradores.
4) Os diversos planos econômicos dos anos 1980 e começo dos anos 1990 colocaram os economistas no centro do debate público brasileiro. Recentemente foi a vez dos agentes do Direito, com a proeminência do STF, dos juízes de primeira instância e também do TSE. Que avaliação o senhor faz desse novo papel de magistrados e advogados?
Mário Schapiro: Essa é uma tendência que não é só brasileira. Há hoje mais países com cortes constitucionais, o que significa um deslocamento de disputas para o Judiciário. Pensando como composição dos conflitos, isso pode ser bom se significar uma resposta institucional e racionalizada a demandas não atendidas pelo sistema político. Fico pensando em diversos grupos que só obtiveram direitos pela atuação do Supremo, e isso é positivo. Quais seriam as alternativas para esses grupos? A frustração dos direitos ou uma disputa violenta pelo seu alcance – ambas as respostas são ruins. Há, no entanto, problemas, nesse deslocamento para o judiciário, sobretudo no Brasil. Todo poder precisa de controle. Na democracia, o poder político é limitado pela disputa eleitoral e pela competição. O Poder Judiciário, por sua vez, é limitado pelo seu dever de consistência e pela autonomia do direito em relação à política e à economia. O juiz é um membro da burocracia do Estado, como tal decide premido por regras e pelo conhecimento da dogmática jurídica. É assim que este poder é controlável.
O problema é o que o direito brasileiro é muito inconsistente e ainda pouco autônomo. Os casos costumam ser decididos pelas suas especificidades e não pela sua pertinência aos precedentes. É uma espécie de justiça do caso, que não permite uma estabilização dos conflitos, não é previsível.

Veja o Supremo: sem que tenha havido uma mudança substantiva de seus membros, o tribunal vai de um ativismo progressista ao conceder o direito de união homoafetiva para um ativismo conservador, ao garantir o ensino religioso confessional. Outro caso emblemático são as decisões de Lula e Moreira Franco: em um caso a nomeação é desvio de finalidade para obter foro privilegiado, em outro não. Uma das duas há de estar correta, mas é impossível que ambas estejam.
Essa inconsistência tem a ver com diversos fatores, mas um deles é a quase inexistência de um ambiente acadêmico profissionalizado em direito no Brasil. Só com pesquisa e crítica pública das decisões é que, no longo prazo, tendemos a caminhar para uma justiça mais estável e com maior autonomia.
5) Qual pode ser a contribuição do Direito para o desenvolvimento econômico brasileiro?
Mário Schapiro: Acredito que há duas principais contribuições. A primeira é em seu ofício-fim, ou seja, na decisão dos conflitos. Eles precisam ser julgados de forma mais rápida e mais consistente. É verdade que a aplicação do direito será sempre controvertida e a atuação dos tribunais pode e deve gerar divergências em relação às expectativas. Afinal, a aplicação de um conjunto abstrato de palavras dispostas em uma lei a um caso concreto é uma atividade que comporta por definição variações interpretativas. Costumo brincar com meus alunos que, se para um economista ou um engenheiro os problemas terminam com a promulgação de uma nova lei, para nós, do direito, é com a lei que começam os problemas, porque é partir dali que começa a advocacia e as disputas interpretativas. Mesmo assim, precisamos de um sistema de justiça com mais capacidade de firmar precedentes. Os tribunais podem mudar de posição? Podem, mas isso demandaria mais ônus argumentativo, mais explicação e fundamento. Os casos precisam ser julgados de forma uniforme e se houver um novo entendimento, ele deve se aplicar a todos os casos seguintes. Portanto, a primeira contribuição é a melhoria da qualidade do serviço da justiça. A segunda contribuição do direito é em seu ofício-meio: o desenho institucional. Temos problemas de desenho institucional tanto no Estado, como nas empresas. O desafio aqui é mapear os problemas setor a setor e formular parâmetros para ambientes decisórios efetivos e legítimos. No Estado, isso passa por mandatos administrativos mais claros e instâncias de participação privada mais protegidas do patrimonialismo. Nas empresas, a legitimidade pode ser traduzida por regras de governança que democratizem o poder decisório das companhias e atribuam a elas deveres mais expressos de responsabilidade social, notadamente nos campos trabalhista e ambiental.
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Perguntas formuladas por João Villaverde, jornalista e pesquisador assistente do CEPESP, na FGV-SP.
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