A pandemia do Coronavirus (Covid-19) tende a acirrar as desigualdades sociais já presentes na economia brasileira. Por isso, quanto mais articulada e integrada for a resposta do país, melhores serão as chances de controle dos seus efeitos perversos sobre a população mais vulnerável. E a desigualdade pode ser reforçada tanto pela maior exposição dessa população ao vírus (por menores condições de isolamento e pela menor capacidade do sistema público em tratar casos complexos), como pela recessão. Até agora, contudo, a coordenação, tanto na área de saúde, como político-econômica, está falhando. Esses foram alguns dos principais pontos do debate organizado no final desta manhã (18 de março) pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e o Institute of Development Studies (IDS), rebatizado para “Enfrentando desigualdades em saúde e epidemias: lições da experiência brasileira para a resposta global à pandemia de Covid-19”. O evento já estava marcado, mas foi transformado em debate online e com foco específico na pandemia. Com coordenação de Alex Shankland (IDS), participaram Vera Schattan, do Cebrap e professora da Universidade Federal do ABC (UFABC); Rudi Rocha (professor da FGV-EAESP e pesquisador do Cepesp/FGV); Isabele Bachtold (IDS/Ministério da Cidadania) e Rômulo Paes-Sousa (Fiocruz Minas Gerais).
Os participantes concordaram que o SUS pode ser um diferencial bastante positivo no combate brasileiro à epidemia, mas ele também tem fraquezas. Entre as “fortalezas” do Brasil, Paes-Sousa e Schattan destacaram os agentes de saúde da família, a capilaridade do SUS e a vigilância epidemiológica. Entre os problemas, eles destacaram a coordenação falha (entre os níveis de governo e entre setor privado e público), a concentração do tratamento de alta complexidade no setor privado e a redução do financiamento e investimento na saúde pública nos últimos anos.
“Os agentes de saúde são uma rede extremamente capilarizada, estão presentes nas áreas mais periféricas e eles são das comunidades. Por isso podem ter um papel fundamental de informação, articulação das lideranças locais e monitoramento dos casos”, ponderou Vera Schattan. Mas esses profissionais, alertou, precisam ser equipados e coordenados. Para o primeiro ponto, é preciso financiamento rápido. Para o segundo, há necessidade de melhor coordenação, o que a pesquisadora considera um dos pontos fracos do SUS.
Entre as fragilidades, Paes-Sousa destacou também o enfraquecimento do sistema público de saúde e assistência social. “A austeridade [fiscal] vem enfraquecendo o sistema. São menos horas de trabalho, menos profissionais, menos insumos, menos incentivos, menos equipamentos”, listou, acrescentando como um agravante brasileiro a visão [mais recente] que demoniza a participação social. E mobilização social, pontuaram os pesquisadores, é um dos ativos do SUS que é fundamental no combate à pandemia. “É preciso mais coordenação, mais organização, e mais responsabilidade de setores do governo. Sem isso, nossas competências não serão devidamente mobilizadas para enfrentarmos essa pandemia”, argumentou Paes-Sousa.
A pesquisadora Isabela Bachtold, que estudou a epidemia da Zika, trouxe daquele combate a avaliação de que ela foi muito pior para a população mais vulnerável e para as mulheres, pois muitas mães tiveram que sair dos seus empregos e/ou mudar profundamente sua rotina para cuidar dos filhos. Além disso, ponderou, a epidemia mostrou a importância de articular diferentes redes de atendimento à população: saúde, assistência social e educação, por exemplo, além dos diferentes níveis de governo (federal, estadual e municipal). “A resposta do Estado na articulação desta rede de proteção ficou aquém do necessário”, ponderou.
Na sua avaliação, o coronavirus traz os mesmos elementos potenciais de reforço da desigualdade apresentada pelo Zika. Como você isola a população que vive em locais de alta densidade populacional? Qual o impacto de políticas de isolamento sobre as redes de cuidado? Como ficam as pessoas que trabalham com menor flexibilidade e cuja atividade não permite home office? Essas foram algumas questões colocadas por Bachtold para argumentar que as medidas de contenção vão reforçar as desigualdades de renda, de gênero e de território.
Além da forma desigual com que as medidas de contenção e proteção do combate à epidemia atingirão à população, Rudi Rocha, do Cepesp/FGV, lembrou que a pandemia tem um caráter fortemente recessivo sobre a economia e que “as recessões econômicas também matam, e essa vai ser bem grave”. A população mais vulnerável, acrescentou, é também quem sofre mais em uma recessão. No Brasil, um quarto da população ocupada trabalha por conta própria e se não sair para trabalhar, não tem renda, lembrou, questionando se “nessa situação, um decreto de quarentena pode ser eficaz”. O pacote de auxílio anunciado na segunda-feira pelo governo federal, ponderou Rocha, está muito concentrado nos setores formais da economia, e uma parte mínima dele é destinada a aumentar recursos do Bolsa Família.
O pesquisador do Cepesp também listou a capilarização do SUS como um ativo do sistema, mas lembrou que é preciso liberar recursos para o sistema de saúde e fazer com que eles cheguem rapidamente na ponta. Neste momento, argumentou, não há outra saída que usar todos os instrumentos possível de política monetária e fiscal disponíveis. “É preciso ampliar o fluxo de recursos para a saúde, para a assistência social e outras áreas”, defendeu. “O que oxigena uma economia é fluxo de moeda. A direção é bastante clara. E Congresso e governo precisam agir nesse sentido”, acrescentou, lembrando que é preciso garantir crédito para evitar a falência das empresas, mas também é preciso coordenar expectativas. “O presidente e seu Ministério da Economia precisam reduzir os ruídos e articular uma resposta com o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal que permita reduzir as incertezas”, acrescentou.