Por Cláudio Couto, pesquisador do Cepesp/FGV e professor da FGV EAESP
A política brasileira recente ficou marcada por três elementos indissociáveis: a luta em torno da corrupção, a ascensão de uma nova direita tão fragmentária quanto autoritária e a mobilização anti-establishment. Embora Jair Bolsonaro tenha sido eleito presidente, quem mais perfeitamente encarna esses três elementos é o ex-juiz e hoje ministro da Justiça, Sérgio Moro.
Seu papel como o magistrado que liderou a mais avassaladora operação de combate à corrupção da história brasileira – a Lava-Jato – guindou Moro à condição de uma espécie de herói nacional. O atributo heroico não é mera licença retórica neste artigo, mas foi de fato encampado por populares Brasil afora. Já em dezembro de 2015 o movimento “Nas Ruas”, liderado pela então ativista de extrema-direita e hoje deputada, Carla Zambelli, produziu bonecos infláveis do herói “Super-Moro” e os vendeu a manifestantes.
Em março de 2016, antes mesmo das eleições municipais em que o PT amargaria grande derrota, um gigantesco boneco inflável do Super-Moro foi produzido por encomenda de um advogado de Lucas do Rio Verde, município encravado no coração do agronegócio brasileiro, no estado do Mato Grosso. No Carnaval do ano seguinte, fantasias do Super-Moro eram vendidas aos foliões no Rio de Janeiro e, em agosto desse mesmo ano, outro Super-Moro gigante provocou tumulto no Ceará, ao ser inflado por ativistas pró-Lava-Jato numa praça em Quixadá, onde o então pré-candidato presidencial, Lula, discursaria; o boneco foi furado por apoiadores do petista. Nova aparição do boneco gigante do Super-Moro ocorreu recentemente, nas manifestações em apoio ao governo de Jair Bolsonaro do último dia 26 de maio. Aos pés do boneco aparecia a legenda: “Moro, herói brasileiro”.
Essa entronização mistificadora e algo infantilizada do juiz Moro também ocorreu com Jair Bolsonaro, chamado por seus fãs de “mito”. Novos militantes mobilizados pela nova direita brasileira parecem se embevecer com a equiparação de seus líderes a heróis ou mitos, como se eles fossem dotados de superpoderes que lhes permitissem resolver os problemas do país como mais ninguém seria capaz. Essa alegoria foi utilizada por um obscuro candidato a deputado em 2014. No filme de campanha, ele aparecia voando sobre o país, lançando de seus olhos um “raio privatizador” que destruía tudo o que fosse associado à esquerda. Se naquele momento isso parecia simplesmente cômico, com o tempo ganhou apoio e crédito, elegendo um “mito” e tornando um “super-herói” ministro.
Super-heróis, como se sabe dos filmes e dos gibis, não se caracterizam apenas pelos poderes extraordinários de que dispõem, mas também pelo recurso frequente a formas pouco ortodoxas de ação. Mesmo quando formam algo como uma liga da justiça e peleiam contra o mal, não se guiam pelas regras válidas para os mortais comuns. Ou seja, sua condição de heróis lhes permite lançar mão de meios que, fossem eles outros, não seriam legítimos. Ou, talvez seja este o caso, tornam-se heróis justamente porque na busca de seus objetivos lançaram mão desses meios pouco ortodoxos. Mesmo sabendo disso, os pobres cidadãos, fartos de malfeitos e malfeitores, acham que vale a pena. E ai de quem ousar falar mal dos heróis!
Moro não se converteu em herói à toa. Foi a ação inclemente da Lava-Jato contra os corruptos e a corrupção que o guindou a tal condição. Sua jornada coincidiu justamente com o momento em que o país vivia uma severa crise econômica e os escândalos de corrupção se avolumavam, durante o governo do principal partido de esquerda brasileiro. Desse modo, a insatisfação generalizada advinda do mal-estar econômico, associada ao ultraje provocado pelos escândalos de corrupção nos governos petistas, permitiram associar mecanicamente o PT e a esquerda à corrupção. E o herói-mor do combate à corrupção tornou-se também o símbolo por excelência do antipetismo, ainda mais quando condenou à cadeia a grande liderança petista, o ex-presidente Lula – à época candidato presidencial favorito. Fosse ele o candidato presidencial, em vez de Jair Bolsonaro, possivelmente teria sido eleito. Não se candidatando, abriu espaço para o “mito”, ao eliminar seu principal concorrente e reforçar ainda mais o estigma petista da corrupção.
Mas o que tornou Bolsonaro um mito, já que jamais foi ele um combatente da luta anticorrupção (como Moro), um formulador de alguma notável política pública (como FHC, pai do Plano Real), ou um líder de massas carismático, gerido nas lutas populares (como Lula)? Bolsonaro surgiu como a encarnação da negação: politico ultradireitista, negava o PT de esquerda; autor de declarações ultrajantes e polêmicas, negava as políticas identitárias e o politicamente correto; político marginal até mesmo no baixo-clero parlamentar, negava o establishment político; defensor do autoritarismo, negava a democracia, associada às mazelas da política real; defensor da violência policial e da tortura, negava os direitos humanos, percebidos por muitos como defesa de bandidos contra o “cidadão de bem”.
Se a atuação judicial de Moro abriu o caminho à candidatura de Bolsonaro, a incorporação de um ao ministério do outro unificou dois atores de um mesmo processo, diferentes em alguns aspectos, mas similares noutros. Bolsonaro é falastrão, Moro é circunspecto; o primeiro expressa a ignorância e a grosseria do cidadão comum, o segundo encarna a sofisticação do técnico estudioso e sereno. Ambos, porém, de forma parecida, negam a política democrática, pois apontam as barganhas, acomodações e alianças da política como fontes de corrupção. Por isso mesmo, optaram pela canetada presidencial ou judicial, amparada no clamor das ruas, como forma para resolver problemas. Ambos acreditaram que seria possível impor ao Congresso suas vontades, já que se veem como mitos ou heróis portadores da verdade. Ambos se deram mal ao tentar levar adiante essa crença, sendo bloqueados pela dinâmica parlamentar.
Moro e Bolsonaro se nutriram dos escândalos que se abateram sobre seus adversários. Agora são eles que vivem seus próprios escândalos. Bolsonaro se vê às voltas com as ligações suspeitas de seu filho mais velho com esquemas de lavagem de dinheiro e articulação com milícias – sem falar no laranjal de seus colegas de partido e governo. Moro, que sempre tergiversou sobre essas agruras do chefe, vê-se agora diante de um escândalo igualmente grande, demonstrado que está seu conluio com a parte acusadora do processo no qual ele deveria atuar como magistrado neutro. A violação de seus deveres de juiz, além de minimizada por ele e seus cúmplices na urdidura de um processo tendencioso, é também desconsiderada por seus apoiadores fiéis, em especial os bolsonaristas mais empedernidos. Não seria de se esperar que defensores da tortura e do autoritarismo tivessem maiores pruridos quanto a alinhamentos prévios de um juiz com uma das partes de um processo criminal – desde que, é claro, a parte oposta fosse aquela à qual eles se opõem também.
Este é um processo cujas consequências judiciais e políticas ainda estão por se desenrolar, já que o The Intercept anunciou que apenas a ponta do iceberg apareceu. De qualquer modo, a prometida indicação de Moro para o Supremo Tribunal Federal, embora ainda possa ocorrer no que depender apenas de Bolsonaro, deverá ter tramitação difícil no Senado. Afinal, como nomear para a corte suprema um juiz que acha normal combinações prévias com um dos lados dos processos que deve julgar imparcialmente?
Se o Supremo Tribunal ficou mais distante, talvez o mesmo não se possa dizer da Presidência da República. A possível candidatura do ex-juiz em 2022 não é possibilidade a se descartar, pois os critérios que podem instruir a decisão de senadores não são os mesmos que pesarão numa futura escolha de eleitores. Num país em que tantos acreditam que “bandido bom é bandido morto”, e, portanto, a polícia pode matar ao arrepio da legalidade, que mal seria visto no fato de um juiz burlar a lei para condenar corruptos? Por que então não eleger o herói, caso o mito não esteja tão bem das pernas daqui a três anos, como parece ser a tendência? A questão é saber se Moro e Bolsonaro ainda caminharão juntos por muito tempo. Se o fizerem, a convergência que até aqui lhes foi tão proveitosa pode se mostrar tóxica, inviabilizando a ambos. Talvez se convençam de que o momento é oportuno para que se afastem.