Por Livia Torres*
No dia 3 de abril foi aprovado, no Senado Federal, o projeto de lei 1.179/20 prorrogando a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) para janeiro de 2021. O PL, que aguarda aprovação da Câmara e sanção presidencial, ainda posterga a aplicação de sanções administrativas pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) para agosto de 2021.
Caso o PL seja aprovado, a LGPD, que regulamenta o uso e tratamento de dados pessoais por empresas e poder público, sofrerá sua segunda prorrogação, pois a lei foi sancionada em agosto de 2018 e entraria em vigor em fevereiro de 2020, mas a medida provisória feita na transição dos governos Temer e Bolsonaro a postergou pela primeira vez para agosto deste ano. Uma nova tentativa de prorrogar a LGPD ocorreu em outubro de 2019, quando circulou outro PL na Câmara neste mesmo sentido.
De qualquer forma, o atraso para a entrada em vigor da lei responde ao desejo de parte das empresas por reduzir custos devido à consequente desaceleração e possível estagnação econômica no atual cenário de crise do coronavírus e faz parte de um pacote de leis nomeado Regime Jurídico Emergencial e Transitório (RJET) das relações jurídicas de Direito Privado. No entanto, esta prorrogação parte, pelo menos, de dois pressupostos sobre a LGPD que devem ser discutidos.
1.A LGPD representa um custo
A LGPD é um investimento em processos empresariais. Isso porque, ao definir os parâmetros para o tratamento de dados pessoais no país, a lei possui o papel fundamental de prover maior segurança jurídica nestas operações. Neste sentido, sancionar é só uma das 24 funções listadas na LGPD (art. 54-J) para a ANPD, que deve também promover educação sobre proteção de dados, estimular a elaboração de estudos, produzir recomendações sobre casos limítrofes – funções estas que reforçam o papel da legislação na garantia da segurança jurídica.
Postergá-la como um todo para não onerar as empresas, portanto, é uma medida desproporcional frente aos papeis ramificados que cumpre. Diferente seria, por exemplo, suspender a aplicação de sanções pecuniárias durante a crise, limitar os demais tipos de sanções e reforçar o papel educativo da ANPD.
Por fim, além de um possível custo, a LGPD tem o potencial de ampliar oportunidades comerciais. A ausência de uma norma específica sobre proteção de dados é apontada como causa de diversos questionamentos sobre contratos internacionais com empresas europeias, pois não há garantia jurídica de que os tratamento feitos nacionalmente respeitem a proteção de dados pessoais. Em suma, a visão de que a LGPD representa tão somente um custo operacional é limitada frente à dinâmica atual da sociedade e a internacionalização dos mercados.
2.A LGPD faz parte do regime jurídico de direito privado
A nomenclatura adotada pelo pacote de medidas emergenciais indicaria que a LGPD está limitada ao direito privado, desconsiderando, no entanto, que ela também se aplica aos tratamentos de dados pessoais operados pelo poder público. De forma geral, a inexistência deste marco legal prejudica por si só que os titulares de dados pessoais exerçam seus direitos, aumentando sua vulnerabilidade. No contexto específico do coronavírus esta questão ganha mais relevo.
Isso porque, em primeiro lugar, há uma intensificação no uso da internet e, portanto, um aumento de dados trafegando na rede. Em segundo lugar, em diversas partes do mundo, medidas de rastreamento dos cidadãos foram adotadas como formas de tentar conter a disseminação da pandemia – inclusive em São Paulo e no Recife. Diversos especialistas apontam, por um lado, a importância do big data para executar políticas públicas neste momento, mas, por outro, o risco deste movimento ser irreversível após a crise, fortalecendo iniciativas de vigilantismo pelos governos.
A LGPD, neste contexto, é essencial para limitar o uso de dados pessoais pelo Estado para o desenvolvimento de políticas públicas, pois exige que haja uma finalidade definida previamente à coleta das informações, as quais devem ser adequadas para atingir tais objetivos predefinidos, bem como devem ser limitadas ao mínimo necessário.
Em conclusão, postergar a LGPD no contexto da crise do coronavírus é mais uma medida de demagogia do que de proteção da atividade empresarial. Os custos associados à adaptação à lei são limitados em si e mais ainda se comparados às oportunidades de fortalecimento da democracia que a lei geraria. Afinal, em um momento de uso intensivo de dados para conter a crise, a LGPD representa um avanço para garantir que os dados pessoais dos cidadãos vão ser usados pelo Estado e o setor privado sem abusos.
*Livia Torres é pesquisadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) e do Cepesp/FGV