Por Lorena G Barberia*
Este arquivo foi publicado originalmente na plataforma Nexo Políticas Públicas
Detectado pela primeira vez na China e reportado à OMS (Organização Mundial da Saúde) em dezembro de 2019, o novo coronavírus espalhou-se rapidamente pela maioria dos países no mundo e sua taxa de transmissão foi reconhecida por ter alcançado proporções pandêmicas pela OMS no início de março. A covid-19 tem infectado milhares de pessoas e centenas de vidas já foram perdidas. Na ausência, até então, de uma cura conhecida e gerando consequências ainda pouco compreendidas para a saúde dos sobreviventes da infecção no longo prazo, a prevenção permanece como a política fundamental no curto e médio prazo.
A pandemia tem afetado praticamente todos os setores da nossa sociedade. Indivíduos, famílias, comunidades e empresas enfrentam o dilema de adesão às medidas de distanciamento social e o debate sobre a duração dessas práticas. Governos nos níveis nacionais e locais têm respondido rapidamente, com uma variedade de medidas sem precedentes – incluindo políticas de distanciamento social, bem como de saúde pública e medidas econômicas –, no esforço de enfrentar a propagação do coronavírus. Empresas grandes, médias e pequenas têm, similarmente, enfrentado desafios para responder efetivamente à pandemia. Em alguns setores, empresas recorreram ao home-office, enquanto outras seguiram pagando seus funcionários normalmente durante os períodos de fechamento e suspensão das atividades. Algumas empresas, ainda, introduziram modalidades alternativas de pagamento para os consumidores e empresas mais abaixo na cadeia de fornecimento de bens e serviços. Em sociedades altamente desiguais, existem pressões adicionais, uma vez que pequenas municipalidades e metrópoles pobres em recursos e dependentes de transferências lutam para criar políticas que dialoguem com os diferentes desafios específicos das localidades, em comunidades já devastadas pelos altos níveis de pobreza e pela insuficiência na provisão de necessidades básicas.
Para responder à pandemia de forma efetiva, os governos precisam responder com um amplo conjunto de medidas e assegurar que essas sejam coerentes, de modo que reforcem os mesmos objetivos
A complexidade dos desafios postos pela pandemia engajou cientistas de todas as áreas. Da mesma maneira como cientistas naturais estão bem equipados para produzir pesquisa capaz de medir e modelar a covid-19 e seus efeitos, cientistas sociais, que devotaram suas carreiras ao estudo dos fenômenos sociais, podem ser fundamentais no combate à pandemia quando eles utilizam seus conhecimentos, estruturas analíticas e métodos para garantir que a formulação de políticas públicas seja informada pela evidência científica, incluindo um entendimento de como políticas afetam as interações entre indivíduos em determinados contextos institucionais.
A pesquisa voltada para as políticas de distanciamento social enfatiza a complexidade e a pluralidade das questões que devem ser abordadas no desenho e avaliação de sua efetividade para conter a disseminação da covid-19. Modelos estatísticos e matemáticos foram desenvolvidos para simular a propagação da doença e o modo pelo qual as taxas de transmissão são afetadas por políticas de contenção. Esses modelos são utilizados no estudo de epidemias e têm sido fundamentais para ajudar governos a entender quais tipos de contextos geram maiores chances de aumentar a transmissão. No entanto, os efeitos estimados das políticas de distanciamento social na transmissão de doenças em modelos matemáticos não são facilmente traduzidos em resultados semelhantes na sociedade.
Uma das razões pelas quais modelos teóricos não se traduzem facilmente em resultados empíricos é que os comportamentos dos indivíduos, das comunidades, dos setores público e privado podem variar amplamente em resposta a um mesmo conjunto de políticas de distanciamento social. Práticas adotadas para limitar o alastramento do vírus incluem diversas ações voluntárias que dependem de confiança e respeito mútuos. Essa realidade foi ressaltada no caso de São Paulo, em um estudo em que pesquisadores procuraram analisar uma amostra de indivíduos para detectar a prevalência de anticorpos IgG e IgM do SarS-CoV-2 em diferentes bairros e em outro estudo similar sobre as taxas de prevalência em uma amostra de 90 cidades brasileiras. As equipes de pesquisa foram questionadas pelas autoridades locais e muitos indivíduos se recusaram a participar do estudo.
As evidências reportadas pelos mesmos pesquisadores também indicam que o nível de adesão ao distanciamento social pelas famílias, comunidades e empresas não está necessariamente associado ao nível de risco de infecção de seus membros. Crenças subjetivas e coletivas, além de percepções, influenciam o comportamento individual. Em nosso grupo de pesquisa, temos produzido estudos mostrando que os governos estaduais adotaram políticas moderadas em comparação com regiões em outros países e que há significativa variação ao longo do tempo e nos tipos de políticas implementadas. Ademais, mostramos que a adesão às políticas de distanciamento social é mais forte nos estados que adotaram conjuntos de medidas mais rígidas e coerentes e mantiveram essas políticas por várias semanas.
Por sua vez, condições econômicas e sociais objetivas medeiam o grau em que os indivíduos podem aderir às práticas de distanciamento social. A ausência de serviços básicos como saneamento e acesso à água potável, por exemplo, impõe uma série de dificuldades às práticas fundamentais de higiene e limpeza como a lavagem constante das mãos. De fato, no Brasil, esses desafios afetam parte considerável da população dos estados e municipalidades. Estimativas oficiais reconhecem que cerca de 100 milhões de pessoas no país não têm acesso ao saneamento básico e 35 milhões à água potável em 2020.
Além disso, medidas que promovem o fechamento de escolas e locais de trabalho têm impactos distintos em centros urbanos com maior densidade e em ambientes empobrecidos. Nos países desenvolvidos, os governos têm também utilizado de sua capacidade de tomar empréstimos para implementar grandes pacotes de auxílio destinados a apoiar empresas e famílias. Dadas as limitações de contrair empréstimos e a realidade de recursos limitados, os governos nos países em desenvolvimento adotaram políticas econômicas mais restritas. No caso do Brasil, programas de proteção social foram adotados pelos governos como meio de provisão de renda e alimento que são fundamentais para proteger os cidadãos mais pobres do país do risco de fome e miséria, ao mesmo tempo em que possam aderir às políticas de distanciamento social. Até o momento, entretanto, programas econômicos e de trabalhos alternativos, como programas de licença mandatória na Europa, não foram ainda completamente desenvolvidos, muito menos implementados no Brasil, a segunda maior democracia do hemisfério ocidental. Como resultado, grandes segmentos da força de trabalho permanecem vulneráveis e carecem de incentivos ou não têm capacidade prática para cumprir as recomendações de isolamento domiciliar. De maneira semelhante, as crianças que pertencem a uma parcela significativa da população que não tem acesso a internet, telefones celulares e computadores têm tido oportunidades limitadas de se engajar no ensino à distância durante a pandemia.
Existem também razões para suspeitar que as práticas de distanciamento social têm efeitos distintos condicionados à presença e à existência de intervenções de saúde pública. Nas regiões em que as clínicas e profissionais da saúde estão ativamente engajados no avanço da detecção precoce e no tratamento dos grupos de risco, como os idosos e outros grupos de risco, e onde há esforços mais significativos para realizar testes de detecção do vírus em grandes segmentos da população, a probabilidade de conter a disseminação da doença é maior. Políticas de saúde pública orientadas para a prevenção, como a testagem e a manutenção de serviços de tratamento, incluindo os recursos mais escassos no momento – a disponibilidade de leitos de tratamento intensivo suficientes e respiradores nos hospitais acessíveis àqueles que mais necessitam desses recursos –, também devem impactar a propagação do vírus, bem como as taxas de mortalidade. Por sua vez, essas intervenções de saúde pública terão impacto na disposição dos indivíduos e comunidades em aderir ao distanciamento social.
Alguns dos fatores subjacentes e mais importantes que influenciam a eficácia da adesão ao distanciamento social são a política e as crenças políticas. Cientistas sociais produziram uma série de pesquisas e encontraram resultados sugerindo que a disposição dos indivíduos para aderir a práticas como o uso de máscaras está fortemente correlacionado à ideologia política. Como demonstra claramente o caso brasileiro, governos federais, estaduais e locais introduziram e continuam modificando políticas de distanciamento social de maneira adversa e seguindo direções contrárias. O nível de conflito político é tão alto em alguns contextos que governos municipais estão processando governos estaduais em tribunais federais para que possam aderir às políticas prescritas pelo presidente; as mesmas políticas que são reconhecidas como contrárias às recomendadas pela OMS.
Motivados pelo entendimento da complexidade dos problemas colocados pela covid-19 e o conjunto resultante de respostas que devem ser consideradas, cientistas sociais podem desempenhar um papel fundamental à medida que continuam aprendendo a lidar e a mitigar efetivamente os custos impostos pela pandemia às nossas sociedades. No que diz respeito às políticas de distanciamento social, cientistas sociais têm produzido pesquisas robustas que sugerem que essas medidas não podem ser desenhadas ou avaliadas sem a devida consideração da multiplicidade de outras políticas públicas que influenciam e afetam seus resultados.
Para responder à pandemia de forma efetiva, os governos precisam responder com um amplo conjunto de medidas e assegurar que essas sejam coerentes, de modo que reforcem os mesmos objetivos.
Por sua vez, os cientistas sociais devem continuar a participar das discussões com os governos, o setor privado e o amplo espectro de cientistas que atualmente estão trabalhando no combate à covid. Como parte de equipes multidisciplinares, nosso papel pode ser o de garantir que haja consideravelmente mais debate voltado para destacar que a efetividade das políticas orientadas para áreas específicas, como políticas econômicas e fiscais, está intrinsecamente ligada a outras políticas, como medidas de distanciamento social e medidas de saúde pública.
Lorena G. Barberia é professora no Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo), pesquisadora do Cepesp e coordenadora científica da Rede Solidária de Pesquisa em Políticas Públicas & Sociedade.