Epidemiologia e COVID-19: informações oficiais e suas limitações

CEPESP  |  8 de setembro de 2020
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Por Carolina Coutinho*

Nos deparamos diariamente com a divulgação dos números de casos e óbitos por COVID-19, que são fundamentais para guiar a tomada de decisão em políticas públicas. Entretanto, técnicas para mensurar e predizer a evolução da epidemia possuem uma série de limitações, que são conhecidas por especialistas da área de epidemiologia e matemática, mas que tem ganho atenção devido a escala e urgência da epidemia de COVID-19.    

Desde o primeiro caso suspeito de COVID-19 no Brasil, os critérios, sistemas e formato para realização da notificação passaram por diferentes alterações. Estas alterações vão desde os critérios adotados para classificação de casos/óbitos suspeitos e confirmados, até a forma em que a notificação deveria ser realizada.

Em um primeiro momento, a estratégia utilizada pelo Ministério da Saúde era de testagem de todos os casos suspeitos, que obedeciam a um critério bastante específico (com listagem nominal de países considerados de risco, por exemplo). Posteriormente, em função do início da transmissão comunitária e do decreto de quarentena nos estados mais afetados, a orientação para população geral era de que apenas casos mais graves deveriam buscar o atendimento médico. Com o desenrolar da epidemia nos diferentes municípios, as orientações foram mudando por diversos motivos, dentre eles a ampliação da definição de população de risco, a organização do sistema de saúde e a disponibilização de mais testes. Hoje já existem, inclusive, estratégias para testagem da população geral, como é o caso da campanha da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, que realiza testes rápidos em um posto do Detran, através de agendamento pela internet. 

Atualmente, os sistemas de informação oficiais utilizados para notificação e acompanhamento da pandemia de COVID-19 são o SIVEP-GRIPE (Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe), onde são notificados os casos que atendem aos critérios de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG¹) e óbitos, e o e-SUS-VE (que posteriormente teve seu endereço eletrônico alterado e passou a se chamar e-SUS-notifica), onde são notificados os casos de Síndrome Gripal (SG) leve.

O acumulado de casos e óbitos registrados nestes sistemas representam, na verdade, um conjunto bastante heterogêneo de casos e óbitos, não só pela diferença de critérios de definição, mas também em função do detalhamento disponível para cada registro, que também mudou em função da alteração das fichas e sistemas de notificação. 

Além dos números que são conhecidos – reservadas suas diferenças – existem ainda os casos que não são conhecidos. Fatores como disponibilidade de serviço de saúde, características da doença (casos leves e assintomáticos), falta de testes e diferenças de sensibilidade e especificidade dos testes adotados podem estar mais ou menos associados à subnotificação, variando entre territórios, por exemplo.

Outro fator que precisa ser levado em conta na análise da dinâmica da epidemia é o tempo que o registro (casos ou óbitos) leva para ser lançado no sistema e, posteriormente, confirmado e divulgado. Em geral, o fluxo inicia na notificação e passa pela qualificação da informação (para descarte – ou não – do caso, alocação no Município de residência, por exemplo), para só depois ser divulgado. Todo esse processo é diretamente influenciado não só pela dinâmica da epidemia – que pode apresentar períodos de aumento no volume de dados –, mas também pela disponibilidade de profissionais qualificados, equipamentos e estabilidade dos sistemas de informação.  

O tempo envolvido no processo de notificação pode, entre outros, dar margens a interpretações enviesadas sobre o estágio da epidemia, por exemplo. É necessário esclarecer que o número de casos e óbitos ‘novos’ divulgados diariamente são, na verdade, informações que entram ou foram qualificadas nos diferentes sistemas de informação nas últimas 24 horas e não necessariamente são casos atendidos recentemente. Esta variação de tempo pode ser observada com mais clareza na figura abaixo, onde foi utilizado o mesmo conjunto de dados (números brutos) considerando diferentes referências de data: as datas de início dos sintomas (autorreferida), a data de notificação (quando a pessoa foi atendida) e a data de divulgação, de cada um dos casos.

Casos COVID-19, por semana epidemiológica, segundo diferentes referências de data, município do Rio de Janeiro/RJ, Brasil – 2020

Fonte: Dados organizados diariamente pelo Centro de Informações Estratégicas e Resposta de Vigilância em Saúde (CIEVS-RJ) da Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, a partir do sistema Esus-VE e SIVEP-Gripe, em articulação com as vigilâncias das Secretarias Municipais de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Inclui todos os casos e óbitos confirmados até o dia 2 de setembro de 2020. Disponível em https://www.saude.rj.gov.br/informacao-sus/dados-sus/2020/05/novo-coronavirus, acessado em 02/09/2020.

Todas estas especificidades e diferenças, entre outras, se apresentam como desafios a uma avaliação mais robusta da dinâmica da epidemia, e precisam ser consideradas em qualquer análise realizada a partir destes dados, desde as mais simples com dados brutos, até as mais robustas modelagens estatísticas ou matemáticas.

Nos últimos meses era comum encontrar comentários e discussões sobre os modelos preditivos do número de casos e óbitos por COVID-19, mas na maioria das vezes sem levar em consideração os parâmetros utilizados e as limitações inerentes a cada análise. 

Muitos dos parâmetros necessários a essas análises ainda eram desconhecidos no início da pandemia. Outros, ainda hoje apresentam fortes limitações, como os aqui comentados brevemente. Todas as análises e modelos são pensados e criados para um fim específico, consideram parâmetros diferentes e precisam ser avaliados em observância as suas limitações, pois desta forma poderão informar e subsidiar de maneira mais adequada as ações de manejo e controle da epidemia.

*Carolina Coutinho é epidemiologista, pesquisadora do Cepesp e bolsista FAPESP -2020/06990-6

¹ Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG): indivíduo hospitalizado com febre, mesmo que referida, acompanhada de tosse ou dor de garganta e que apresente dispneia ou saturação de O2 < 95% ou desconforto respiratório ou que evoluiu para óbito por SRAG independente de internação.

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