
A avaliação e as soluções para o impacto de um novo vírus têm natureza multi e interdisciplinar. Desde o início da pandemia diversos grupos de pesquisadores brasileiros com formação em áreas distintas do conhecimento juntaram esforços frente a um desafio acadêmico e de gestão pública de uma crise que soma aspectos biológicos, sociais, econômicos e políticos. A epidemiologista Carolina F.S. Coutinho já foi pesquisadora associada à Fiocruz e, desde junho, se juntou ao Cepesp, como pós-doutoranda na pesquisa ‘COVID-19: epidemiologia para a gestão de emergências de saúde pública’. Ela destaca que “as pesquisas epidemiológicas de doenças infecciosas podem estudar os parâmetros, avaliar indicadores, a distribuição espacial, ou seja, estudar e compreender o comportamento da doença na população”, se transformando em um importante instrumento de política pública, o que pode trazer maior equidade em saúde e social. Coutinho argumenta que esse tipo de estudo contribui no enfrentamento da situação atual com a Covid-19, mas também para crises emergenciais futuras de saúde pública que atingirão o país. A pesquisadora alerta ainda que a Covid-19 pode vir a se tornar uma endemia, segundo alguns estudos recentes, o que reforça a importância da relação entre ciência e planejamento governamental.
1. Em sua trajetória fica evidente a preocupação pelas doenças infecciosas/transmissíveis, prevenção e uso de substâncias psicoativas em populações vulneráveis. Qual o estímulo para essa inclinação?
Durante a iniciação científica tive a oportunidade de trabalhar em um laboratório de biologia e controle de insetos vetores de doenças, e de realizar trabalho de campo no sertão do Ceará. Lá aconteceu o primeiro contato prático com o estudo da relação entre ambiente e populações e sua interface com as doenças, pude então acompanhar de perto como as famílias em situação de extrema pobreza eram impactadas por diferentes doenças transmissíveis, muitas delas preveníveis e de fácil controle. Foi uma experiência pessoal e profissional ímpar, enriquecedora, que me despertou o interesse pelo cuidado e onde vi a força do SUS e como ele é capaz de transformar para melhor a vida das pessoas. E tem sido assim que construo minha agenda de pesquisa, meu foco é contribuir para melhoria das condições saúde das populações mais vulneráveis.
2. Como pesquisas sobre doenças infecciosas podem contribuir para a mitigação de desigualdades sociais?
Os processos de saúde e doença envolvem não somente aspectos biológicos, mas também possuem uma forte relação com o meio em que vivemos e com nossos comportamentos. Ao contrário do que muitos ainda pensam, as doenças não são democráticas, elas podem afetar de maneira diferente alguns segmentos populacionais. A epidemia de Covid-19 é um exemplo clássico de como uma doença pode afetar de maneira diferente as populações. Apesar de praticamente toda a população ser susceptível à infecção pelo vírus Sars_CoV-2, as possibilidades de prevenção e os desfechos decorrentes da infecção se apresentam de maneiras diferentes. A começar pelas medidas de prevenção: a população economicamente mais rica tem acesso às estratégias preconizadas – água para lavar as mãos, dinheiro para comprar álcool gel, possibilidades de se afastar do trabalho e/ou realizar home office – enquanto a população que vive em comunidades mais pobres têm pouco ou nenhum acesso a água tratada, impossibilidade de realizar distanciamento físico nos domicílios, além das precárias condições de trabalho que não permitem interrupção das atividades.
As pesquisas epidemiológicas de doenças infecciosas podem estudar os parâmetros, avaliar indicadores, a distribuição espacial, ou seja, estudar e compreender o comportamento da doença na população. Seus resultados auxiliam em várias áreas de gestão e planejamento em saúde, como no direcionamento de recursos humanos e financeiros, priorização de áreas ou segmentos populacionais específicos, por exemplo.
Dessa forma, é essencial o estudo dessas relações e diferenças para que seja possível construir ações e políticas públicas de saúde possíveis e aplicáveis às diferentes realidades, contribuindo então para a equidade em saúde.
3. Atualmente, pelo Cepesp, como você avalia a projeção e importância de sua pesquisa de pós-doutorado no enfrentamento à Covid-19 e o meio em que a desenvolve?
A minha pesquisa de pós-doutorado objetiva compreender a resposta brasileira à epidemia do Covid-19, especialmente no que diz respeito à tomada de decisão dos governos federal e subnacionais em atendimento às recomendações da Organização Mundial de Saúde e também frente à produção de conhecimento científico produzido na área. A ideia é que possamos estudar os processos de tomada de decisão e suas consequências e, dessa forma, construir recomendações para gestão pública em situações de crise. Os resultados desse estudo poderão contribuir na construção da agenda pública de manejo de crise em emergências de saúde pública que poderão vir a ocorrer no futuro, mas também no controle da epidemia de Covid-19, que pode vir a se tornar uma endemia, como já apontam alguns pesquisadores/estudos.
No Cepesp, comecei há pouco mais de três meses e fui muito bem recebida. A equipe que trabalha mais diretamente comigo, liderada pela Prof. Elize, é incrível. Tenho aprendido muito com elas, é uma troca muito boa.
4. O que você pode observar durante a crise sanitária da Covid-19 no Brasil em relação a políticas públicas embasadas por conhecimentos epidemiológicos e ao envolvimento de profissionais da área nas decisões?
Por ser uma doença nova, a produção de conhecimento ocorreu de uma maneira muito rápida, nunca antes vista na ciência. Pesquisadores do mundo todo se empenharam em produzir informação necessária à compreensão da dinâmica de transmissão, de forma a contribuir no controle da epidemia. No entanto, como já era de se esperar, com o desenrolar da epidemia o conhecimento sobre a doença foi mudando e, em consequência, as recomendações de especialistas também.
No Brasil, houve um descompasso entre orientações do governo federal e governos estaduais e municipais, já apontado, inclusive, em um estudo de pesquisadores do Cepesp. Muitos gestores criaram os chamados ‘gabinetes ou conselhos de crise’, alguns destes contavam com a participação de pesquisadores e especialistas em epidemiologia, infectologia, virologia e afins.
Além disso, diferentes grupos de pesquisa foram constituídos e tivemos uma boa produção de material de apoio à gestão, como modelos preditivos e notas técnicas orientativas e analíticas. No entanto, nem sempre a aplicação das recomendações foi prerrogativa. Destaco ainda o esforço da academia em divulgação científica e de aproximação com a população geral, essencial nos dias atuais. Contudo, para além de questões políticas, ainda existem dificuldades na translação do conhecimento científico para gestão, sendo esse mais um desafio a construção de políticas públicas baseadas em evidências científicas.
Esse é o tema de um dos artigos que estou escrevendo em parceria com colaboradores da FGV e Fiocruz e que pretendemos publicar e divulgar em diferentes formatos em breve.
Casos confirmados de Covid-19, por semana epidemiológica do início dos sintomas, segundo conjunto de dados divulgados em diferentes datas, Estado do Rio de Janeiro, 20201 Fonte: Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, dados divulgados em http://painel.saude.rj.gov.br/monitoramento/covid19.html
5. Em seu período como pesquisadora associada na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) , quais foram as principais realizações e desafios enfrentados?
Foram muitos anos de dedicação a essa instituição. A Fiocruz me ensinou a fazer pesquisa que fundamenta ações em saúde e políticas públicas. Tive a oportunidade de conhecer e trabalhar com pesquisadores incríveis, referências em suas áreas, além de coordenar, em parceria com outros pesquisadores, estudos nacionais pioneiros, como a Pesquisa Nacional sobre o Uso do Crack, que entrevistou cerca de 8 mil pessoas que faziam uso de crack em cenas abertas de uso em todo país, o III Levantamento Nacional sobre uso de drogas pela população brasileira, que foi o primeiro estudo deste tipo de representatividade nacional, com mais de 16 mil entrevistados, e a Pesquisa DiVaS (Diversidade e valorização da Saúde), a maior pesquisa do mundo já finalizada com a população de travestis e mulheres trans. Durante o desenvolvimento dessas pesquisas trabalhei em parceria com gestores, pesquisadores e representantes da sociedade civil do país e pude contribuir na construção de estratégias de atenção e cuidado em saúde.
Como desafios, destaco as dificuldades de se fazer pesquisa no Brasil, falta de estrutura e financiamento, especialmente em estudos na área de saúde pública e com populações vulneráveis, muitas vezes invisíveis ou vistas como um problema aos olhos de gestores. Além disso, os desafios de ser mulher e mãe cientista em busca de espaço e reconhecimento em uma área ainda ocupada predominantemente por homens.