Mudando se vai ao longe: 30 anos de transformação constitucional incessante

CEPESP  |  24 de outubro de 2018
COMPARTILHE

Por que a Constituição Brasileira abarca tantas políticas públicas?

shutterstock_1092795071

Por Cláudio Couto e Rogério Arantes*

Ganhou destaque neste conturbado processo eleitoral a discussão sobre a elaboração de uma nova Constituição. Do lado de Jair Bolsonaro veio a ideia, propugnada por seu candidato a vice-presidente, Hamilton Mourão, de uma Carta elaborada sem representantes eleitos, redigida por notáveis indicados pelo presidente e, depois, submetida à vontade popular mediante um plebiscito. Uma proposta desse tipo é quintessência do bonapartismo, alicerçado sobre a afirmação plebiscitária da preferência popular, mobilizada por uma liderança carismática em seu momento de grande popularidade. Nada mais eficaz para esmagar as oposições, da mesma forma como fez na Venezuela o chavismo, ainda que recorrendo à eleição para a formação de uma assembleia constituinte. Por lá, contudo, essa nova assembleia se impôs logo em seguida aos poderes constituídos, afirmando-se como poder constituinte soberano não apenas para redigir a Carta, mas para roubar aos demais a função de governar o país.

Do outro lado, no plano de governo petista, consta a ideia da convocação de uma nova Assembleia Constituinte. Diz o texto:

“Para assegurar as conquistas democráticas inscritas na Constituição de 1988, as reformas estruturais indicadas neste Plano e a reforma das Instituições, é necessário um novo Processo Constituinte. Para tanto, construiremos as condições de sustentação social para a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, livre, democrática, soberana e unicameral, eleita para este fim nos moldes da reforma política que preconizamos. O governo do Presidente Lula participará logo após a posse da elaboração de um amplo roteiro de debates sobre os grandes temas nacionais e sobre o formato da Constituinte.”

A proposta entrou no plano de governo por pressão das alas mais à esquerda do partido, talvez por inspiração nos processos refundacionais ocorridos recentemente noutros países da América Latina, como a mesma Venezuela, Bolívia e Equador. Tal ideia, que já havia sido cogitada pelo governo Dilma frente às grandes manifestações de junho de 2013, parece no momento atual – de forte polarização e de grande desconfiança dos setores mais ao centro quanto às credenciais democráticas do PT – ainda mais inoportuna. Tanto é assim que em debate ocorrido no primeiro turno, Fernando Haddad foi instado a defender a proposta e, visivelmente constrangido, teve que ouvir de seu oponente, Ciro Gomes, a seguinte afirmação: “Você não acredita numa única palavra do que acabou de dizer. Não existe poder constituinte no presidente da República”.

Com efeito, já no início do segundo turno, Haddad abandonaria a ideia: “nós revimos o nosso posicionamento. Nós vamos fazer as reformas devidas por emenda constitucional”. Também Bolsonaro acabou por rechaçar a proposta de uma nova Constituinte feita por seu vice, a quem chamou de Augusto Mourão: “Eu o desautorizei. Ele não poderia ir além daquilo que a Constituição permite. Jamais eu posso admitir uma nova constituinte até por falta de poderes para tal”, disse ao Jornal Nacional.

A mudança de posição dos dois candidatos em relação ao que imaginavam seus aliados é duplamente sintomática.

Por um lado, decorre da necessidade de demonstrar moderação num tema sensível – o respeito à ordem constitucional. Por outro, resulta de uma constatação óbvia, mais clara na fala de Haddad do que na de Bolsonaro: mudanças constitucionais podem ocorrer por emendamento constitucional, sem que seja necessário elaborar uma nova Carta.

Este foi o caminho, aliás, que seguiram os presidentes e legislaturas, ao menos desde o início dos anos 90. Como mostramos em diversos de nossos trabalhos publicados ao longo dos últimos vinte anos, a Constituição de 1988 tem sido objeto de emendamento constante, mais por imposição de suas próprias características do que por inclinações específicas ou programas partidários dos diferentes governos e parlamentares que nos governaram nesses trinta anos.

Mais do que estabelecer normas tipicamente constitucionais, voltadas a traçar as principais características do Estado e da nacionalidade, dos direitos de cidadania civil e social, bem como das regras do jogo político e administrativo, a Carta de 1988 estipula muitas políticas públicas. Mesmo quando relacionadas àqueles elementos tipicamente constitucionais, as normas que tratam de políticas públicas descem a detalhes e enveredam por controvérsias partidárias. E tanto detalhes como controvérsias são material particularmente perecível, requerendo assim sua atualização ou modificação, de acordo com as necessidades do tempo e as variações da vontade popular expressa nas urnas.

Desse modo, se uma constituição contiver muitas políticas públicas, atrairá para si a política governamental e o jogo político cotidiano, já que seus dispositivos terão grande sobreposição com as questões que são objeto da disputa política entre os partidos, entre o governo e a oposição e entre os diversos grupos de interesse presentes na sociedade e no Estado. Ademais, se essa constituição contar com regras de emendamento relativamente flexíveis, que facilitam o emendamento, é altamente provável que será bastante emendada. Pois a Constituição de 1988 atende a essas duas premissas: contém muitas políticas públicas e sua regra de emendamento é pouco exigente se comparada às vigentes noutros países. Desse modo, além de atrair o jogo político para si, deixa-lhe as portas parcialmente abertas para contínuas modificações.

Poder-se-ia perguntar então por que a Constituição Brasileira abarca tantas políticas públicas.

A resposta não permite apontar para um único fator. Em primeiro lugar, o processo constituinte foi o desaguadouro natural de muitas demandas sociais represadas durante os anos de autoritarismo, demandas que extravasaram os elementos propriamente constitucionais e se traduziram em interesses específicos. Sob esse aspecto, contudo, não somos tão peculiares; diversos países que transitaram para a democracia também experimentaram essa aluvião de expectativas. Daí vale apontar um segundo fator, institucional: as regras de elaboração da constituição.

Elaborada de forma bastante descentralizada, abriu espaço para a inclusão em seu texto dos mais variados temas.

Além disso, a regra de aprovação das matérias era a maioria absoluta dos constituintes (50% + 1). Desse modo, não era tão difícil incluir algo e se abria espaço para um grande toma-lá-dá-cá, em que a aprovação da matéria de interesse de um era a contrapartida da aprovação do que interessasse a outro. Lograva-se assim inserir na Constituição temas que, a princípio, poderiam integrar a normatividade infraconstitucional, seja em leis complementares, seja em leis ordinárias. Uma vez constitucionalizada uma questão por maioria absoluta, seria necessário um quórum de três quintos para lhe modificar ou remover daí por diante.

Desse modo, a geração constituinte amarrou as gerações futuras a decisões sobre temas não propriamente constitucionais, mas de interesse daqueles parlamentares naquele determinado contexto. O quórum necessário, mesmo que baixo para emendar uma constituição, pode ser considerado alto para decidir sobre políticas públicas, acarretando assim uma elevação dos custos de construir coalizões para governar. Se precisam emendar a constituição para seguir adiante com sua agenda, os governos não podem contentar-se com uma maioria absoluta, ainda que com alguma sobra; têm de buscar coalizões supermajoritárias, em que 60% dos votos é o minimum minimorum.

Foi assim para todos os presidentes eleitos depois de 1988, como estes trinta anos de política constitucional têm demonstrado. Claro que isso custou e vem custando caro ao país, tanto em termos de coordenação, como no que concerne à repartição do poder entre um número maior de parceiros. Em síntese, a necessidade de emendar constantemente a constituição torna o nosso presidencialismo de coalizão um presidencialismo de supercoalizão.

Temos uma Constituição cujos dispositivos que podem ser classificados como política pública é da ordem de 30,7%. É a maior proporção de todas as nossas cartas, historicamente falando. Antes dela, em termos relativos, a que mais chegou perto foi a efêmera carta de 1934, com 15,2% – mas se tratava de uma constituição bem mais curta e, portanto, esse percentual representava muito menos políticas públicas constitucionalizadas.

A atual Constituição foi emendada 105 vezes – 99 pelo rito regular e 6 por ocasião da Revisão Constitucional de 1993-94.

Dessas emendas, 54,5% dos dispositivos adicionaram novas normas ao texto constitucional; outros 12,1% acrescentaram novas normas apenas ao texto das emendas, sem sua incorporação ao texto principal consolidado. Desse modo, dois terços dos dispositivos das emendas produziram mais texto constitucional. Apenas 2,6% revogaram normas originais da Carta de 1988. O restante basicamente modificou normas, algumas delas já resultantes de emendamento (afinal, há emendas sobre emendas).

Esse crescimento se deu sobretudo na forma de novas políticas públicas constitucionalizadas. Hoje temos 52,3% mais políticas públicas no texto principal da Constituição, excluído o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Mas também o ADCT cresceu bastante – 121% – sendo que, desse crescimento, 97,8% são políticas públicas. Também nos dispositivos constantes unicamente das emendas (que denominamos como paraconstitucionais) preponderam as políticas públicas: 85%. Inegavelmente, quem emenda a Constituição o faz principalmente para alterar políticas públicas, não para mexer com direitos ou regras institucionais de funcionamento do Estado.

Esse processo de modificação frequente, que se acelerou após a Revisão Constitucional, foi mantido por todos os governos até 2017 e apenas cessou em 2018 em virtude da intervenção federal no Rio de Janeiro – já que não é permitido emendar a Carta durante intervenção em unidades federativas. Na média de dispositivos nas emendas, os governos FHC e Lula mantiveram-se bastante ativos, com cerca de 5 dispositivos por mês, tendo havido uma queda no governo Dilma (para menos de 2) e uma retomada forte no governo Temer, com quase 9 dispositivos editados por mês até 2017. Fica claro que governos mais bem-sucedidos em sua relação com o Congresso Nacional são impulsionadores do processo de modificação constitucional.

Essa modificação, contudo, não ocorreu de modo uniforme nos diferentes governos. Enquanto durante FHC e Lula se produzia cerca de duas políticas públicas para cada norma propriamente constitucional, ao longo do governo Dilma essa razão subiu para quase 9 e, no governo Temer, explodiu para quase 34. Diferentes governos, diferentes agendas.

Apesar dos problemas relacionados aos custos de construir coalizões ampliadas para governar em decorrência da necessidade de emendar a Constituição, a boa notícia é que constituições longas e bastante modificadas tendem a durar muito tempo, como demonstraram em seu extraordinário trabalho de pesquisa comparada Zachary Elkins, Tom Ginsburg e James Melton (The Endurance of National Constitutions. New York: Cambridge University Press, 2009). Contudo, o que os pesquisadores observaram foram constituições algo distintas da nossa. A extensão dos textos constitucionais normalmente tem pouco a ver com políticas públicas, mas sim com normas propriamente constitucionais. Assim, o emendamento verificado mundo afora está mais relacionado à atualização de regras do jogo e com a instituição de novos direitos do que com a lida diária de problemas comuns de governo. Será que a mesma lógica identificada por eles numa ampla população de constituições valeria também por aqui?

A nossa Carta já ultrapassou a mediana de vida das constituições no mundo, que é de 19 anos.

E se o recuo sinalizado pelos candidatos finalistas com respeito a uma nova constituição se confirmar, é de se esperar assim mesmo que o futuro governo recorrerá ao contínuo processo de emendamento a fim de implementar suas políticas, requerendo para tanto uma supercoalizão congressual.

Resta saber se a agenda do futuro governo, sobretudo se o vencedor for o candidato antissistema, se este se restringirá apenas a políticas públicas, ou se avançará também sobre direitos e regras do jogo democrático. Se considerarmos suas posições acerca desses temas, é de se esperar que a agenda caminhe perigosamente nessa outra direção, ensejando uma disputa política mais severa no legislativo e também nas cortes. Para uma constituição que sobreviveu a três décadas de permanente emendamento, este será provavelmente o seu maior teste de resistência.

Texto publicado originalmente no site Jota.

****

CLÁUDIO GONÇALVES COUTO – Possui graduação em Ciências Sociais (1991), mestrado em Ciência Política (1994) e doutorado em Ciência Política, todos pela Universidade de São Paulo (2000). Realizou estágio de pós-doutorado na Universidade de Columbia (EUA) com apoio da CAPES (2005-6). Atualmente é professor adjunto do Departamento de Gestão Pública e Coordenador do Mestrado Profissional em Gestão e Políticas Públicas.

ROGÉRIO BASTOS ARANTES – Professor Doutor do DCP-USP. Possui graduação em Ciências Sociais (1990), Mestrado (1994) e Doutorado (2000) em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Dedica-se ao estudo das Instituições Políticas

Deixe seu comentário