Depois de três anos de dura crise – política e econômica -, com empresas públicas respirando por aparelhos e companhias privadas quebradas ou lutando para rolar dívidas, está na hora do país discutir uma espécie de Lei de Recuperação Moral das Empresas. Essa é a avaliação de Marcos Fernandes, doutor em Economia pela USP, com pós-doutorado pela Universidade de Londres. Professor da FGV, em São Paulo, e pesquisador do CEPESP, Fernandes avalia que a experiência da Operação Lava Jato, iniciada em março de 2014 e ainda não concluída, aponta para a necessidade de se desenhar um sistema de incentivos para “maximizar a prevenção”, mas, sobretudo, para “apressar” a separação entre o empresário que cometeu um crime de corrupção da empresa que ele comanda. Isto é, separar o CPF do CNPJ.
“Errou, perdeu. Ponto final. Note-se que a decisão do conselho de administração da JBS em colocar o pai dos criminosos irmãos Batista representa tudo o que não deve ser permitido, dado que isto é um sinal torto, um incentivo torto à gestão duvidosa e, por vezes, criminosa”, afirma Fernandes nessa entrevista concedida ao blog do CEPESP.

O professor-doutor também elogia as privatizações e a busca por uma reforma dos gastos obrigatórios federais, notadamente com a Previdência, mas lamenta que isso esteja sendo tocado por um governo sem legitimidade e também envolvido em investigações e acusações formais de corrupção, que incluem o próprio presidente da República, Michel Temer (PMDB), que foi vice-presidente de Dilma Rousseff (PT) entre 2011 e 2016. “Mas a realidade prática por vezes nos coloca diante de oportunidades que não podem ser perdidas. Por sinal, temos evidências que os primeiros processos de privatização produziram resultados bem rentáveis”, aponta ele.
Diversos outros pontos são tratados na entrevista. Leia abaixo!
5 Perguntas para Marcos Fernandes:
1) O setor privado de construção civil, petróleo e gás e energia está com planos de investimentos e contratações suspenso há três anos consecutivos, por conta das operações de combate à corrupção. Os acordos de leniência, que permitiriam as empresas continuarem operando, não andam. Como separar a investigação de indivíduos (CPFs) da operação normal das companhias (CNPJs)?
Marcos Fernandes: A Operação Lava Jato e outras recentes no Brasil são uma novidade e criam novas situações que exigem um aprendizado, um learning by doing por assim dizer, em termos de inovações institucionais e jurídicas. Dentro desta perspetiva, precisamos, no meu entender, de mais agilidade na recuperação moral das Pessoas Jurídicas, separando-as das pessoas físicas quando há algum tipo de irregularidade. Sustento que precisamos ampliar a legislação com uma Lei de Recuperação Moral das Empresas, aproveitando a experiência da Lava Jato, com a contribuição de juristas, para o desenho de leis coerentes, com o direito empresarial e de economistas e assemelhadas e assemelhados, pessoas de finanças corporativas, para desenhar um sistema de incentivos, subjacente à lei (como aconteceu com a Lei de Falências), para maximizar a prevenção e, contudo, quando ocorre um problema de crime e corrupção, apressar a separação entre PJ e PFs.
Obviamente, precisamos apressar a mudança da estrutura de governança corporativa de várias empresas brasileiras, mesmo aquelas com controle familiar total ou parcial, para salvá-las, punindo de forma exemplar os proprietários familiares, quando for o caso, da anuência ou envolvimento direto dos mesmos em crimes corporativos em geral, retirando-lhes como forma de punição – e alerta para prevenção – o controle da empresa. Errou, “perdeu”. Ponto final. Note-se que a decisão do conselho de administração da JBS em colocar o pai dos criminosos irmãos Batista representa tudo o que não deve ser permitido, dado que isto é um sinal torto, um incentivo torto à gestão duvidosa e, por vezes, criminosa. Por outro lado, em empresas com capital aberto de facto este problema torna-se facilmente contornável.
2) O governo Temer reduziu a exigência de conteúdo nacional nos leilões no setor de petróleo e gás e anunciou a privatização da Eletrobras, além do plano de também alienar o controle estatal dos Correios. Parece ser a maior rodada (em expressividade dos ativos) de privatização e redução do papel do Estado desde os governos Collor-Itamar e o primeiro mandato de FHC, quando Embraer, CSN, Vale e Telebrás foram privatizadas e Embrafilme e Portobrás foram extintas. Eram tempos de duro ajuste fiscal, tal qual agora. As privatizações poderiam ser melhor conduzidas se fosse de forma estrutural e não motivadas principalmente pela necessidade de geração de receitas primárias extraordinárias? O fato do governo estar assolado por investigações de corrupção, como ocorre agora, torna o processo eticamente questionável ou não?
Marcos Fernandes: Seria melhor fazer um processo de privatizações com calma, sem dúvida. Mas a realidade prática por vezes nos coloca diante de oportunidades que não podem ser perdidas. Por sinal, temos evidências que os primeiros processos de privatização produziram resultados bem rentáveis. Sobre o setor elétrico, há que se ter cuidado com o afogadilho. Sobre se seria melhor fazer isso com outro governo não há o que se questionar. Um governo como este não goza de legitimidade de facto, apenas de jure, está envolvido em corrupção, como observamos. A reforma da Previdência, por exemplo, sou a favor, mas ela demandaria mais debates, sobre alguns casos específicos, de grupos mais vulneráveis ao emprego intermitente, ao trabalho duro, etc.. Contudo, este governo não possui muita moral para propor decisões duras. Mais importante é que não há debate sobre a necessidade de reformas, de privatizações, o que abre espaço para ilações infanto juvenis de um crítico mais à esquerda (não a racional), em jornal de grande circulação, que associa Temer, o MBL, o ILSP, o movimento proibicionista de exposição de arte a uma estratégia para a diminuição na provisão dos serviços públicos, promoção da injustiça social e por aí vai. O problema, no nível das mentalidades, é que esse tipo de discurso pega, a despeito de seu flagrante conspiracionismo secundarista (argumentos excepcionais exigem evidências excepcionais, o que não é o caso), diante da suspeição do governo Temer e de seus articuladores.

3) A dívida bruta do setor público saiu de 52,3% do PIB, no início de 2014, para o atual patamar de 74% do PIB. Foram mais de 20 pontos percentuais em curto espaço de tempo – e continua subindo. Essa trajetória preocupa, mas como realizar um ajuste no lado da despesa se quase 90% do orçamento federal é engessado com gastos obrigatórios?
Marcos Fernandes: A Constituição de 1988 não existe enquanto tal. Quer dizer, ela existe, mas quantas PEC foram aprovadas desde o início dos anos 90 do século passado? Ela se tornou – como deveria ser – orgânica. Ela judicializava a política econômica – e ainda o faz. Precisamos reformar a Constituição, rediscutir como o Estado deve ser gerenciado e o gasto avaliado. A tarefa é complicada, pois as resistências corporativistas, muitas delas cristalizadas na própria Carta, são consideráveis. Grupos caçadores-de-renda enrolam-se na bandeira nacional para defender a Constituição quando, sabemos, estão a defender seus interesses cartoriais. Por outro lado há as mentalidades, como acima coloquei. Mudanças exigem a formação de mentalidades, construção de consensos e persuasão. Gramsci vale, continua valendo, e muito. O Teto de Gastos, enquanto durar, pode forçar tal mudança, explicitando na sociedade os conflitos distributivos e forçando o debate sobre desvinculação constitucional dos gastos. Ou, do contrário, resolveremos nosso conflito distributivo com inflação e, com certeza, outros conspiracionistas aparecerão para culpar o grande capital, os juros e as elites. De certo há elites sim responsáveis pela captura de renda que, se não desmantelada, levará o país de volta aos anos 1980: mas esta elite, boa parte dela, está dentro do Estado. A esquerda brasileira falha, no seu diagnóstico, ao subestimar o papel e os interesses de tais elites (ou ela representa, em parte, os interesses corporativistas de parte dela – isso exige pesquisa). O fato é que, mesmo para marxistas ou pós-marxistas de esquerda, tais como Nicos Poulantzas ( o Poulantzas II, mais velho) e Claus Offe, a burocracia estatal tem interesses específicos, quase de classe.
4) A taxa básica de juros deve atingir 7% ao ano em dezembro. Será a menor já registrada desde a criação da Selic, ficando abaixo dos 7,25% a.a. atingidos no governo Dilma, entre o fim de 2012 e o começo de 2013. Naquela oportunidade, a inflação sempre rondava 6%, chegando a bater em 11% em 2015; agora está abaixo de 4%. Temos, enfim, um quadro para juros baixos de forma sustentável?
Marcos Fernandes: Não sou macroeconomista que atua no mercado ou pesquisador, mas pelo que os analistas e colegas que respeito dizem, sim, temos condições para juros baixos permanentes. Mas isto depende das reformas e da obtenção de um ajuste fiscal de longo prazo. E há sim uma economia política da política monetária, mas sem teorias conspiracionistas. É natural que interesses se organizem em torno de políticas econômicas, pois ela têm efeitos redistributivistas. Mas é sempre bom lembrar que rentistas não são somente, como um comentarista econômico coloca com propriedade, os donos do dinheiro grosso, mas também o proletariado da Petrobrás, da Caixa, do BB e dos Correios, assim como trabalhadores de diversos setores da economia e modestos correntistas de bancos.
5) Viemos de uma dupla recessão (2015 e 2016) para um crescimento tímido, quase estatístico, agora em 2017. Que avaliação o senhor faz quanto ao desempenho econômico e do mercado de trabalho em 2018?
Marcos Fernandes: Não posso falar do mercado de trabalho, principalmente porque é muito difícil esta área, pois meu campo é economia normativa. Os colegas que conhecem o tema e o estudam acham que a recuperação ainda será lenta e baseada na informalidade (não sabemos ainda os impactos da terceirização). O que tenho autoridade a falar, como economista formado, é que recuperação econômica é diferente de crescimento, embora eles possam ser observados ao mesmo tempo, sob situações de reversão de expectativas e/ou com políticas públicas que incentivem a acumulação de capital no médio-prazo, mormente a associada ao capital de infra-estrutura. O que vemos agora é reocupação de capacidade instalada e de emprego perdido (isso mais lentamente). Crescimento econômico depende do deslocamento da função de produção para cima, no jargão da profissão, ou, abusando mais ainda dele, do deslocamento da fronteira de eficiência para direita: isso depende, no médio prazo, de acumulação de capital, logo de investimento que, no nosso caso, com nossa poupança doméstica medíocre, depende de poupança externa. Depois, no longo prazo mesmo, somente reformas institucionais redutoras de custos de transação (e que alteram incentivos tortos, de captura de renda) e de risco jurídico, e capital humano, podem gerar crescimento que se sustente. Enfim, apenas observamos agora uma tímida recuperação.
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Perguntas formuladas por João Villaverde, pesquisador assistente do CEPESP, da FGV em São Paulo.
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