O risco da política pública sem base científica: a revisão da lei de zoneamento e o desconto na outorga onerosa do direito de construir

CEPESP  |  19 de março de 2018
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São muitos os ajustes propostos pelo governo do Prefeito João Doria ao recém aprovado marco jurídico-urbanístico da cidade. Vamos focar em um: as mudanças envolvendo a outorga onerosa do direito de construir. A crítica apresentada nesse artigo tem dois objetivos. Em primeiro lugar, como as propostas de mudança estão em consulta pública, esperamos que os gestores repensem suas pretensões à luz de um comentário técnico. Em segundo, ilustrar os riscos de se tomar uma decisão que não esteja amparada em critérios técnicos nem nas evidências que são a base dessa coluna. Um trabalho quase de proselitismo para incrementar o uso do conhecimento científico nas decisões de políticas públicas.

O artigo se concentra em duas questões: a redução de 30% no valor da outorga, bem como o uso do custo de construção em vez do custo da terra como indicador da variação no valor da outorga. Estas propostas do Executivo chamam a atenção por ferir a lógica e finalidade de um instrumento urbanístico contemporâneo fundamental para a equidade entre os ônus e os benefícios produzidos pela cidade e o financiamento urbano.

Vamos partir dos argumentos apresentados pela própria prefeitura. Foram expostos dois motivos para a redução no valor da outorga: 1) queda na arrecadação associada à queda de consumo de outorga onerosa nos últimos anos; e 2) encarecimento da outorga como consequência das mudanças introduzidas pelo Plano Diretor aprovado em 2014. Para sustentar o segundo, a prefeitura apresenta um comparativo usando o CUB (custo unitário básico de construção) como base para definir  um valor médio da outorga na cidade. Com o desconto, o Executivo municipal prevê um incentivo às atividades econômicas, à produção de habitação e à maior arrecadação por outorga.

Qual a lógica de uma cobrança pelo direito adicional de construir? Esse instrumento se enquadra no conjunto de ferramentas fiscais e extrafiscais que procuram capturar parte da valorização do solo para o setor público. Como o  solo não se pode “mover” de um município para outro, em termos econômicos, esse é um fator fixo. Assim, toda a cobrança que se dá sobre o solo incide sobre o seu preço, traduzido no metro quadrado do imóvel.

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Edifícios comerciais à beira da Marginal do Pinheiros, na região da Avenida Eng. Luís Carlos Berrini. Crédito da foto: Pixabay

Via de regra empreendedores imobiliários operam em regime concorrencial com o lucro “normal” de mercado: aquele que garante um retorno parecido com o mercado financeiro adicionando-se o risco do setor. A única forma de se manter o preço ao consumidor final ocorre reduzindo-se o preço do solo. Portanto, do ponto de vista teórico, não há nenhum motivo para crer que a outorga pelo direito de construir teria impacto no mercado de imóveis do ponto de vista do consumidor final ou mesmo do empreendedor (assumindo que o empreendedor não é o proprietário do terreno).

O que um empreendedor imobiliário consome quando adquire outorga do direito de construir? Nada diferente de solo; assim, a arrecadação da outorga é o consumo de solo adicional (ou criado) na cidade pelo mercado imobiliário para fins comerciais.

O consumo do solo responde a ciclos no mercado imobiliário, com altas e baixas, geralmente em movimento oposto ao dos consumidores finais. Quando o mercado imobiliário fez um grande consumo de outorga, em 2011, estava estocando solo virtual ou criado para seus movimentos futuros. Em consequência, a subsequente queda na arrecadação obedece mais ao ciclo imobiliário do que às condições específicas da outorga do direito adicional de construir. A prefeitura tem consciência desse fato mas, por algum motivo, prefere não utilizar esse conhecimento para definir sua política.

Em debate promovido pelo Esquina Aberta no dia 6 de março, Heloisa Proença (Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento), ao ser questionada sobre a projeção da arrecadação se aplicado o desconto, respondeu:

O melhor ano de arrecadação do FUNDURB foi de 340 milhões em 2011 (…) Se você considerar esse valor em valor presente, representaria 500 milhões, então ela está despencando em 2016. No ano de 2017 (…) estava perto de 100 milhões até outubro, depois ela deu uma levantada, mas, como eu disse, ainda é resultado de projetos protocolados sobre a regra antiga. Então, ainda está difícil da gente avaliar e projetar isso, a gente tem muita coisa, as várias possibilidades de enquadramento de aprovação (…) o que a gente consegue saber, como a grande parte do que entrou ainda é da regra velha, e do que está sendo aprovado ainda é da regra antiga (…) então não conseguimos fazer essa projeção (…) porque você depende do desempenho da economia, do desempenho do setor, mas é lógico que a gente pode construir isso”

* A fala da secretaria pode ser vista a partir de 1h10m do vídeo abaixo

https://www.facebook.com/plugins/video.php?href=https%3A%2F%2Fwww.facebook.com%2Fconversasnaesquina%2Fvideos%2F2044734322407241%2F&show_text=0&width=560

Difícil entender a correlação entre a queda na arrecadação e a regra nova que, pela explanação da secretária, ainda não esta impactando os números. A maior arrecadação se deu em 2011, ou seja, três anos antes das mudanças. Como se não bastasse, o grosso das aprovações segue a regra antiga. Em geral, encontrar a causa exata das coisas é extremamente complexo, pois confundimos diversos fatores no mundo real. Nesse caso, o que chama a atenção é que não podemos falar de associação, que dirá de causa. A queda na arrecadação da outorga pode estar ligada a diversos fatores, mas certamente, nesse momento, não ao encarecimento da mesma.

Chama também a atenção o baixo volume captado por esse instrumento. Seguindo a fala da secretária, aprendemos que um dos maiores valores da série histórica ocorreu em 2011: em valor presente, o equivalente a cerca de 500 milhões de reais. Considerando que o metro quadrado de um imóvel novo vale 10 mil reais, esse montante representaria 50 mil metros quadrados, ou 500 apartamentos de 100 metros quadrados. Ou seja, uma pequena parcela da produção anual de novas unidades em São Paulo – quase 29 mil unidades em 2017, segundo entidades do setor. É difícil de acreditar que esse custo seja relevante na decisão de construção de novas unidades.

Custo da terra é uma coisa, custo da construção é outra

Dizer que a outorga esta muito cara é dizer que o solo (criado ou adicional) está muito caro.  Como fazer um comparativo que traga evidências para essa tomada de decisão de políticas públicas? A prefeitura escolheu usar uma medida popular no setor da construção civil denominado de “Custo Unitário Básico de Construção” (CUB), desenvolvido pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC). Esse índice é utilizado como referência no custo global de obra (materiais, mão de obra, despesas administrativas e equipamento).

O CUB faz sentido para identificar custos de construção na medida em que, por exemplo, o pedreiro recebe a mesma remuneração por hora se trabalha num empreendimento de habitação social ou em um de alto padrão. Mas não faz o menor sentido para identificar preços e variações no valor do solo (no caso, o solo criado). A terra tem preços variados pelo território da cidade – e essa é uma característica básica para entender o comportamento dos mercados fundiários.  Os mercados fundiários são intrinsecamente variados em preço e, consequentemente, em outorga de direito de construir.  Assim, usar o CUB para calcular variações na proporção da outorga onerosa do direito de construir é dizer que custo da terra é proporcional ao custo da construção e, pior ainda, que é homogêneo. Faz total sentido falar de valor médio de custos de construção, mas não do solo nem, por extensão, do solo criado. Localização, localização, localização, como diria o mantra do mercado imobiliário.

Por que então abrir mão do instrumento de finanças públicas e redistribuição urbana mais importante vigente hoje na cidade? Nesse caso, só vemos uma possibilidade: um grupo de interesse pressionando pela mudança. Isso é o que diz a lógica da economia política. Como explicamos acima, esse grupo deve ser formado por proprietários de solo; eventualmente, um grupo de empreendedores estocado em terreno. Ao setor público cabe a obrigação de usar o conhecimento teórico, bem como as evidências, para proteger o interesse público mais amplo. Existe uma ciência para entender como as cidades funcionam e para propor políticas públicas robustas. Se ignorarmos esses avanços, não iremos muito longe.

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Claudia Acosta, advogada, com mestrado em Estudios Urbanos (El Colégio de México), e em Direito e Desenvolvimento (FGV), especialista em políticas fundiárias para América Latina (Lincoln Institute of Land Policy) e professora da Universidad del Rosario (Colômbia), no curso de especialização em Direito Urbano

Ciro Biderman, pesquisador do Centro de Estudos de Política e Economia do Setor Público (CEPESP/FGV), professor das Escolas de Administração de Empresas e de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisador associado do Departamento de America Latina e Caribe do Lincoln Institute of Land Policy, do Departamento de Planejamento Urbano do Massachusetts Institute of Technology (DUSP/MIT) e do Laboratório de Urbanismo da Metrópole (LUME/FAU-USP)

* Artigo publicado originalmente na coluna do Cepesp no site Jota. Leia outros artigos da coluna.

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